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15/06/2010 - 06h42

Leia diário de crítico internado em clínica de reabilitação para artistas

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DE SÃO PAULO

No início deste ano, a dupla de artistas alemães Benjamin Blanke e Claudia Kapp criaram o projeto Cold Turkey, em que pediram ao instituto KW, centro de arte contemporânea de Berlim, que bancasse a desintoxicação de personalidades do mundo da arte numa clínica de reabilitação nos arredores da capital alemã.

Receberam mais de 200 inscrições de interessados em participar do tratamento. A convocação foi feita por e-mail e a identidade dos participantes foi mantida sob sigilo. Um crítico de arte internado na clínica fez um diário anônimo publicado em inglês no blog da revista britânica "Frieze". Leia a seguir a tradução livre de um interno do projeto.

Primeiro dia

Fiz 41 anos há duas semanas. Sou alcoólatra. Também sou um crítico de arte que ganha pouco dinheiro então me inscrevi no programa de desintoxicação organizado pelo projeto Hotel Marienbad no KW Institute of Contemporary Art em Berlim, que tem como alvo escritores, artistas e curadores. Vivo longe de Berlim, mas a cidade evoca imagens dos excessos que vivo em minha própria cidade. Agora, no entanto, estou a uma hora de distância do hedonismo que imagino, numa clínica rodeada de árvores à beira do mar, onde barcos a vela navegam liricamente.

Hoje foi meu primeiro dia inteiro aqui. Estou numa ala para alcoólatras e pessoas que acreditam ser anoréxicas: figuras finas que se esforçam para manter os fiapos presos ao corpo em sincronia com seus movimentos. Vou passar sete dias aqui. Não houve atividades para mim hoje, então pude me familiarizar com o ambiente. Não sou o paciente mais jovem, mas muitos são mais velhos. Apesar da idade, não me vejo representado pela aparência de nenhum dos internos. A hora do almoço me lembrou de uma cena do hospital onde minha tia com mal de Parkinson vive: ninguém fala ou interage enquanto engole a comida para manter vivos seus corpos miseráveis.

Divido o quarto com um artista também aqui no projeto do Hotel Marienbad. Sabia seu nome --somos "amigos" de Facebook há um tempo. Uma vez entrevistei seu ex-namorado.

Também esperava parar de fumar aqui, assumindo que isso também não era permitido. Mas todos fumam, inclusive os médicos. Como não trouxe muitos cigarros, começaram a acabar lá pelas seis da tarde. Andando pela floresta ao redor vi uma placa com um grande barril de chope e uma flecha. Segui a flecha até encontrar um bar rústico. Não entrei em pânico, comprei os cigarros e fui embora. Mais cedo hoje, uma jovem enfermeira brigou comigo e com meu companheiro de quarto, dizendo que se fôssemos vistos além dos limites da clínica ela levaria uma bronca. Mas como não estou pagando, hesitei em dizer: "Não é seu trabalho nos manter aqui dentro?".

Segundo dia

Desde que cheguei, me dão uma pequena quantidade de um pó branco três vezes ao dia para reduzir a ansiedade que resulta da abstinência do álcool. O nome dessa droga holística é alemão e comprido; não consigo nem soletrar. É como cocaína ruim ao contrário --precisaria ingerir uma tonelada disso para sentir qualquer sensação de alívio. Em todo caso, a droga é holística e sua quantidade não é limitada, mas tenho vergonha de pedir mais doses. Não posso tomar nenhum outro remédio, mas meu colega de quarto ganha Valium todas as noites. Temos médicos diferentes; o meu disse que o risco de me viciar em outra droga é alto.

Fui a uma oficina de arte hoje pela manhã para brincar com argila. A cena fez pouco para dissipar minha ideia de que estou numa instituição para pessoas com saúde mental reduzida, ou, talvez mais interessante, descrentes ou passarinhos de gaiola. Enquanto uma jovem arte-terapeuta discutia um pedaço de argila amassada com um colega de tratamento, me vi completando suas frases e elaborando melhor seus conselhos sobre como manipular argila de forma instintiva. Quando comecei eu mesmo a moldar a argila, me lembrei de um artista que cria esculturas simplesmente arremessando pedaços de gesso. Fiz a mesma coisa. Amanhã, a terapeuta vai discutir essa obra comigo e delinear um novo projeto baseado em sua análise.

Depois da sessão artística, fui para uma aula de ginástica ministrada por uma mulher esperta que sem esforço nos garantia que a prática é útil para viciados em recuperação: "Tem a ver com retomar o controle sobre seu corpo, um viciado não tem controle". Seguimos seus movimentos corporais enquanto ela traçava analogias com a língua alemã.

E como ressacas e bebedeiras não tomam o meu dia, o tempo acaba parando. Mas tenho interesse renovado em preenchê-lo. Li oito capítulos de uma monografia sobre a história da arte asiática em dois dias.

Meu médico disse que a clínica faria um exame do meu fígado para checar possíveis danos. O desejo de parar de beber costuma vir acompanhado da constatação de danos já causados. Às oito da noite, uma toalha encharcada em chá medicinal é aplicada contram eu fígado para absorver as toxinas. Amanhã começo a terapia Schema. Schema tem a ver com necessidades emocionais não sanadas que levam a comportamento disfuncional na idade adulta. "Mas não é todo mundo que tem necessidades emocionais não atendidas?", pergunta meu colega de quarto.

Terceiro dia

Minha arte-terapeuta sugeriu que eu fizesse uma vasilha de círculos em camadas, depois de discutir as formas espontâneas que fiz ontem. A sala de arte está cheia de vasilhas em formato circular. Mas o paciente ao meu lado estava moldando uma forma arredondada que me lembrou motanhas simbólicas que aparecem em mapas cosmológicos. Me perguntei porque a terapeuta aconselharia formas positivas para um paciente e negativas para outro. A barreira inglês-alemão também pode ser um problema. Ela me disse algo sobre construir fronteiras que eu não entendi muito bem. Mas, claro, o resultado final está longe de ser a questão.

Não tive sintomas ou crise de abstinência desde que cheguei. Os últimos três dias foram a primeira vez em cerca de cinco anos em que não bebi álcool, e eu bebo desde os 15. No meu primeiro dia aqui, o médico disse que a clínica tem um estoque de drogas anti-epilépticas, "em casos de emergência". Jesus.

Não tenho vontade incontrolável de beber álcool, mas eu quero. Numa sessão de análise hoje pela tarde listei as vantagens e desvantagens do uso do álcool e da abstinência. Não pude pensar em nenhuma desvantagem para a abstinência a não ser a ameaça de voltar a beber. Uma desvantagem engraçada para o abuso de álcool é esquecer o rosto de quem você seduziu quando lhe cumprimentam de novo com um grande sorriso. Estarei em Berlim na próxima noite de sábado. Um cenário perfeito para me testar.

Depois da terapia, respondi três questionários que tentam determinar minha auto-imagem. As perguntas parecem armadas para mostrar que você exagera em tudo por odiar a si mesmo e que isso é culpa dos seus pais.

Por exemplo, "Você se vê apegado demais a pessoas próximas porque tem medo que elas o abandonem?". Mas eu não entendo de terapia, e minhas respostas ainda têm de ser processadas.

Meu senso de violência também diminuiu com a sobriedade. Minha ansiedade, não. Outra pergunta era "Você sempre acha que sempre o pior vai acontecer em relação à sua saúde e/ou carreira?". Sim.

Quarto dia

Ontem pedi ao meu médico que definisse vício. Hoje me deram a informação: um viciado é alguém com dificuldade para controlar quanto usa ou por quanto tempo usa e que continua a usar apesar das consequências negativas. Além disso, nos níveis do vício, um viciado não-funcional é raro. Aqueles que conseguem manter empregos e relacionamentos são bem mais comuns.

O fato de eu enxergar profundidade no óbvio ou no intelectualmente falho diz muito sobre a casualidade com que tenho visto meu próprio vício em álcool até hoje, apesar do fato de eu ter viajado para outro continente para me tratar. Nunca pensei nos termos e consequências desse vício, só não queria mais beber tanto. Agora me sinto menos cínico em relação às experiências nesta clínica. Também me tranquilizo com outra informação dada pelo meu médico: o álcool está ligado a 40% ou 50% de mortes no trânsito, 86% dos assassinatos e 23% dos suicídios levados a cabo.

A aula de ginástica continua a chamar mais minha atenção. Hoje aprendemos a incorporar um fino bastão de bronze com uma superfície irregular aos nossos movimentos. Seus dedos do pé e da mão se movimentam ao longo dele, como se tocassem um instrumento, depois o deixa rolar pelos seus braços e mãos, jogando para lá e para cá entre os participantes. É uma espécie de automassagem e o resultado é uma grande sensação de relaxamento físico. Mas os comentários da instrutora --"Viciados em heroína e anoréxicos não conseguem sentir os próprios corpos."-- me dão calafrios.

Outra estatística que tem me dado o que pensar nos últimos dias é a afirmação de que 10% de toda a população é viciada em drogas ou álcool. Conheço só uma pessoa que não bebe ou não usa drogas. Conheço uma que bebe com absoluta moderação. Todos os demais bebem em excesso, usam drogas quando estão disponíveis e suas personalidades se alteram por conta disso. Essa estatística de 10% parece endereçada apenas àqueles que se consideram viciados.

Estou me transformando no tipo de puritano que nunca pensei que viria a ser.

Quinto dia

Uma mulher na minha aula de arte está modelando um busto de Hitler. Talvez seu alcoolismo/anorexia/vício em heroína está ligada a uma culpa coletiva ou ela é mesmo neonazista. Pensei em reclamar. Há criaturas sensíveis por aqui.

Hoje meu médico perguntou se alguma vez tomei a vacina contra hepatite B. A conversa foi a seguinte:

-- Sim. Não. Eu lembro, pedi isso a meu médico antes de mudar de país há dez anos, mas ele não queria me dar porque hepatite B não é endêmica no país onde vivo agora.

(O médico sorri.)

-- Por que?

-- A composição de seu sangue não é típica de um acoólatra.

-- Isso é um sinal de hepatite B?

-- Talvez. Não quero que entre em pânico.

-- Você está testando meu sangue para ver se tenho hepatite B?

-- Sim.

-- Hepatite B é sexualmente transmissível. Pode passar pela saliva também?

-- Não. Só sangue e esperma.

-- Como HIV?

-- Sim.

-- Mas eu pratico sexo seguro. É possível pegar por via oral?

-- Não.

-- Pode sim. Lembro ter lido sobre isso há uns anos.

-- Talvez sim.

-- Quando ficam prontos meus exames de sangue?

-- Podem estar prontos já.

-- Você me avisa quando estiverem prontos?

-- Sim.

Saí para a área de fumantes, onde duas anoréxicas bem vestidas e um turco grandão conversavam. Pacientes aqui não gostam de falar em inglês, então não puxei assunto. Fiquei ali, bufando, tentando lembrar meu último encontro sexual. Mas era tudo um borrão.

Hepatite B crônica o deixa amarelo, até seus globos oculares ficam amarelos. Você pode ficar preso à cama por até quatro semanas e dói para comer e beber. Lembrei que meu contrato de trabalho só dá direito a 14 dias de ausências por doença anualmente. Merda, merda, merda.

Voltei para dentro. O médico veio em minha direção, sorrindo. "Você não tem hepatite, e seus exames de sangue mostram que você foi vacinado contra a A e a B. Talvez tenha sido vacinado na infância." Toquei seu braço peludo em gratidão.

Esta é minha penúltima noite aqui. Tenho dificuldade para dormir, pela primeira vez desde que cheguei.

Sexto dia

O conteúdo de meus sonhos noturnos mudou nas últimas duas noites. Desde que posso me lembrar, e isso não é muito tempo, meus sonhos têm sido cheios de ansiedade: visões em primeira pessoa da minha própria queda, escorregões ou me equilibrando de forma precária. Sempre acordo antes do desfecho.

Agora sonho memórias distorcidas. Visito lugares conhecidos, populados com pessoas que conheci há anos mas que não vejo desde então. As cenas não são do meu passado, mas os contextos sim: uma escola de arte, um vilarejo estranho, aglomerações, artistas, a Redação de uma revista. Havia uma discussão nesses sonhos, mas não consigo me lembrar do que se tratava. As pessoas olham para mim em vez de eu olhar para o espaço.

Tive uma ultrassonografia hoje pela manhã. É incrivelmente esquisito e desconcertante ver seus órgãos internos ao vivo num televisor. Enquanto a médica mantinha a expressão fria, não pude evitar interpretar cada pequeno movimento de seu rosto como sinal de que acabava de descobrir algo terrível no meu abdome. Buracos negros flutuavam na tela.

Recebi os resultados depois: meu fígado tem pequenos arranhões, resultado exclusivo do abuso de álcool.

Hoje tive dois encontros breves com médicos para me despedir. Vou embora amanhã de manhã. Um deles disse que só 2% de alcoólatras que passam por desintoxicação voltam a beber de forma moderada e bem controlada. Ele disse para eu não tentar. Posso ligar para a clínica sempre que quiser ou sentir que vou cair de novo no vício. Irei a encontros dos Alcoólatras Anônimos quando voltar para casa. As drogas que venho tomando são antroposóficas e posso comprar mais delas antes de deixar Berlim.

Não posso imaginar passar mais tempo por aqui, mas não quero ir embora. A maior parte do tempo que estive aqui, fiquei sentado perto de uma janela do chão ao teto fazendo o que normalmente faço, mas sóbrio: escrever, mandar e-mails, assistir ao YouTube e pensar. De fato, acho que essa foi a primeira vez que escrevi algo para alguma publicação sem estar bêbado. Certamente foi uma rara semana em que respondi e-mails estressantes sem xingar ninguém. Alcoólatras convencem a si mesmos de que não funcionam sem álcool, não conseguem trabalhar, não aproveitam a comida, não dormem etc. Escrevi mais nesta semana do que normalmente. Por causa da minha energia maior também descobri que posso pensar em dois ou três artigos no mesmo dia. Antes era no máximo um.

Estou tomado pela culpa. Culpa pelo tratamento dado, pela preocupação demonstrada e pelo dinheiro gasto. Meus médicos me deram uma carta descrevendo meu tratamento e declarando meu histórico de abuso de álcool e drogas. Se estivesse no meu país de origem, acho que o médico só teria me dado um tapa e me chamado de fracote.

Não tenho medo de deixar a clínica. Não acho que vou voltar a beber. Sei que não preciso e, na verdade, nem quero.

 

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