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21/08/2010 - 06h42

Leia trecho inédito do romance "A Estátua de Sal de Sodoma", de Alberto Guzik

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DE SÃO PAULO

Confira abaixo trecho do livro "A Estátua de Sal de Sodoma", de Alberto Guzik, ainda não publicado. Crítico teatral, escritor, ator e professor, Guzik morreu aos 66 anos em junho passado.

*

"Eis que agora a mulher sempre tão lógica e objetiva aparece-lhe desprendida, tolerante, compreensiva em muito maior grau que ele. E isso faz com que Fernando se sinta muito mesquinho. Essa sensação o enraivece. Se pudesse, gostaria de feri-la. Mais de uma noite flagra-se em devaneios nos quais submete Ana a torturas cruéis e dolorosas, das quais se envergonha depois. Mas não consegue evitar esses pensamentos perversos. O impulso que os concebe é involuntário. E incontrolável. Quando Fernando descobre-se nesses exercícios, sacode a cabeça com força, para arrojar aquelas idéias para longe. Mas, coleantes e sorrateiras, eles voltam. E ele se sente mal. Foram semanas difíceis, penosas. Longas noites insones. Horas longas na frente do computador sem brotar uma só linha. Os espetáculos que viu então, analisou em comentários impessoais, que depois lhe pareceriam escritos por outra pessoa. Na noite do sábado em que Ana finalmente deixou a casa, Fernando foi jantar em casa de Luciano. Falou compulsivamente. Mal de Ana. Estava irritadiço e agressivo. Voltou para casa, ouviu Miles Davis e Charlie Parker bebendo conhaque e cerveja e vodca até o dia clarear. Passou o domingo de cama, uma ressaca ciclópica. Ligou insistentemente para o celular de Ana, naquele dias, pelos motivos mais banais. Ela se mostrou paciente e fraterna. Quando mais doce era o tratamento que lhe dispensava, mais ele afundava na depressão e na raiva impotente. Os dias evoluíram para semanas que completaram um dois três quatro meses de vida sem vida, sem calor, sem ar.

Num certo domingo, numa certa manhã de domingo, um domingo de julho, Fernando acorda, abre os olhos e fita o teto. O dia está frio, e ele não tem vontade de sair de sob as cobertas. Sente-se bem. Ajeita a grande manta xadrez, espessa lã vermelho-viva, e aconchega-se melhor no calor da cama. Gostaria de readormecer, mas adivinha que não vai conseguir. Está descansado. Deitou cedo ontem, e dormiu bem. Vem dormido bem nos últimos dias. Deixou de tomar o sonífero que o médico receitou no auge da crise. Sempre que tomava o comprimido, sentia-se grogue no dia seguinte, e não gostava disso. Não sabe por que tem dormido bem. Nem quer saber. Está muito cansado dos meses de sofrimento estúpido e incessante. Salta enfim da cama. Veste um moletom azul-marinho surrado que usa para dormir e meias de lã desemparelhadas. Esfrega as mãos e vai para a cozinha. Sobre o moletom enfia um suéter de lã velho e disforme. Avança pelo corredor acompanhado por Juão, que sacode sem parar o rabo cor de caramelo. Troca a água da cuia do animal, enche a outra de ração. Juão passa a comer com entusiasmo. Fernando o observa. Juão sempre foi seu cachorro, nunca do casal. Como de outras coisas, Ana abriu mão do animal sem nenhuma hesitação. Foi sempre Fernando que quis ter um cão. Põe água no fogo e assobia um roquezinho de Rita Lee. Faz café enquanto lê o grosso jornal dominical. Prepara ovos mexidos com presunto e queijo, torradas, abre uma embalagem longa-vida de suco de mamão e laranja e senta-se à mesa. Continua a ler o jornal até que os ganidos de Juão o levam a abrir a porta que dá para o quintal. Sai junto com o animal. As árvores estão desfolhadas. O jardim no inverno não tem exuberância. Tudo brota com dificuldade. Mas a observação de seu jardim sofrido não abala o humor de Fernando, que nota o prazer com que Juão rola na grama crestada. Enquanto caminha por seu corredor verde, recolhendo muitas folhas mortas, observando os canteiros da horta, pensa que precisa comprar equipamentos para o jardim. Há quanto tempo promete isso? Nunca foi prioridade. Agora será. Precisa voltar ao jardim. De que livro isso? Quem precisa cultivar seu jardim? Velhas lembranças do Cândido e o nome de Voltaire lampejam por seu campo de atenção. Absorto nesses pensamentos percebe pela primeira vez em semanas que algo mudou. Está leve. Sumiu o peso nos ombros. Deixou de doer. Sorri, aspira o ar frio. Juão late e corre de um lado para outro. Fernando não se incomoda com os estragos que o grande cão faz no pequeno jardim. Não é nada grave. Juão foi treinado a não escavar e destruir. Quando arruína alguma coisa, é por desajeito, não por instinto caçador. Fernando observa a pelagem curta do cão, seu brilho. Vai levá-lo para passear à tarde. Toca o telefone. D. Rita. Fernando vai almoçar em sua casa? Luciano estará lá.

Juão continua a brincar no jardim. Fernando desliga e vai para o quarto. Arruma rapidamente a cama, abre a janela e permite que o ar frio do dia invada o cômodo. Separa uma velha calça jeans, camiseta e suéter pretos, um gasto tênis All Star preto. Põe no aparelho de som um álbum de Nina Simone. Vai para o banho enquanto a voz grave e plena da diva enche a casa. Francês impecável. "Ne me quitte pas. Il faut oublier..." Fernando pára um instante quando Nina entoa o lamento. Mas não tira o cd do aparelho. A música não o magoa. Não agora. Tem a sensação de que conseguiu fechar um ciclo. O luto pelo casamento acabou. Ele está vivo. E livre. E pronto. Movido por esses pensamentos ele entra sob a água. Respira como se nunca antes tivesse respirado. Com uma liberdade que o espanta. Apronta-se sorrindo, enquanto Nina Simone continua a fender o ar com voz plena plangente. Observa Juão, que agora persegue alguma coisa junto do muro do quintal.

Desliga o aparelho de som, verifica as trancas das janelas, ativa o alarme. Aferrolha a porta da cozinha, deixa aberta a portinhola inferior para que o cão possa voltar para dentro da casa. Sai para a rua e sente algo que define como euforia. Quanto tempo eu não me sentia assim. Anos, muitos anos. Caralho, engraçado, é como se tivessem tirado toneladas dos ombros. Estranho. Inala profundamente o ar da manhã. Ruma para a Avenida Paulista e depois para a Liberdade. Seu alvo é a feira dominical do bairro japonês. Está atrás de mudas de bambu. Faz tempo planeja uma cortina de bambus no fundo do quintal. Em uma banca de plantas, na extremidade da feira, encontra as mudas. Guarda-as no banco de trás do carro e dá uma volta pela feira. Olha objetos, pensa em possíveis alterações na decoração da casa. Quem sabe pôr mais cor na sala. Quem sabe trazer seu escritório para o quarto da filha, que agora, com a saída dos móveis de Ana, ficou vazio. Quem sabe fazer do quarto do filho um para hóspedes? Compra um grande vaso de porcelana laranja. E também sua contribuição para o almoço: uma dúzia de sushis de atum e salmão, que a vendedora, solícita, embala com gelo seco dentro de um recipiente de isopor."

 

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