Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
17/11/2010 - 11h31

Teatro documentário transpõe histórias reais para o palco

Publicidade

LUCAS NEVES
EM BUENOS AIRES

Um decano da cátedra de filosofia da Universidade de Buenos Aires fala de sua ascendência paraguaia e, ao som de uma melodia de harpas do pequeno país, tira um colega para dançar.

Em um call center de Calcutá, operadores de telemarketing largam o falatório automatizado para cantar, falar de seu cotidiano e mandar fotos de si para quem está do outro lado da linha.

E, numa casa da zona leste de São Paulo, um casal vê seu relato de uma viagem às cataratas do Iguaçu recriado no chuveiro do banheiro.

O mundo de repente se pôs a fazer teatro de tudo. Ou talvez só agora tanta gente tenha parado para "editar" a encenação infinita.

É uma vertente robusta na Europa e na Argentina e que agora ganha musculatura no Brasil: o teatro documentário, calcado --e não apenas inspirado/baseado-- em notícias de jornal, documentos, relatórios, experiências e depoimentos sobre e de gente comum, como porteiros, médicos, instrutores de autoescola. Vale até botar a própria família em cena.

"Na Alemanha, há cursos de atuação para entrevistas de emprego. Se você vai à convenção da [montadora] Daimner Chrysler, é Shakespeare puro. A obra está lá, é um 'ready-made', o capitalismo no auge da performance", diz o suíço Stefan Kaegi, um dos pontas de lança dessa linha de investigação cênica, que integra o coletivo Rimini Protokoll.

Em "Cargo Sofia", adaptou a traseira de um caminhão frigorífico em plateia para embarcar espectadores numa viagem pela rotina de caminhoneiros que conhecem as estradas europeias.

Uma das paredes do compartimento de carga virava uma vitrine envidraçada em que ora eram projetadas imagens dos motoristas na cabine e seus relatos de solidão e saudade de casa, ora se espiava a repetição interminável de centros de estocagem, hotéis de beira de estrada, postos de gasolina e lanchonetes fast food em seus dias.

Já em "Chácara Paraíso", Kaegi reproduziu em uma unidade do Sesc de São Paulo um centro de treinamento da Polícia Militar que tinha até favela cenográfica. Lá dentro, PMs faziam o boletim de ocorrência da dura vida.

Divulgação
Cena da peça "Três Filósofos com Bigodes", da argentina Vivi Tellas
Cena da peça "Três Filósofos com Bigodes", da argentina Vivi Tellas, que quis buscar teatralidade no cotidiano

'REALITY THEATER'?

"Não é 'reality theater'", diz Kaegi, que se vê como um "curador da realidade", conduzindo o público a cenários e personagens que não encontra normalmente. "Nesses programas [reality shows], os participantes são mal selecionados, querem ser famosos. O termo documentário só denota que as pessoas não terão de atuar."

Dos atuadores profissionais, ele prefere certa distância. "Acho complicado treinar atores. Não gosto de ir ao teatro simplesmente para ver um sujeito virtuoso. O que me interessa é quem é aquela pessoa e por que foi transformada pela situação que agora lembra. Um ator seria uma caricatura que permitiria ao público relaxar."

Pensa de forma semelhante a argentina Vivi Tellas, criadora da peça descrita na abertura desse texto. Depois de chegar ao topo do circuito "convencional" com "A Casa de Bernarda Alba", achou que era o fim do teatro.

Resolveu partir do zero, buscando teatralidade no cotidiano de guias turísticas, DJs, mães e tias --as suas, no caso. "Me fascina o erro, o acaso, o inadequado. Com quem não é ator, tudo é imperfeito, frágil", diz.

Para virar cena, basta a quem cruza o caminho de Vivi ter um traço teatral mínimo: vida dupla, dissimulação, hábito de se dirigir a públicos ou pendor pela repetição de histórias. Ninguém está a salvo, pois.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página