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02/03/2011 - 07h02

Leia troca de e-mails com o falso João Gilberto

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DE SÃO PAULO

Leia abaixo a entrevista do repórter Marcus Preto com o suposto João Gilberto. A troca de e-mails aconteceu no decorrer da madrugada do dia 2 de fevereiro.

*

Você me disse, no recado do Facebook, que precisava desabafar. O que está acontecendo, exatamente? Por que decidiu que era hora de entrar em contato?

Certo. Você é pego de surpresa. Um bombardeio, um escarcéu na imprensa sobre seu lar, sua casa. A casa da gente é um templo. Você escolhe quem entra e quem sai. Mas parece que a nobreza não conhece dessas coisas. Eu me sinto angustiado de ler na internet o tanto de desaforos, que eu devo ser despejado, que eu devo sentar na caixa do meu violão na porta do edifício. Isso me magoa profundamente. Muito mesmo. As reportagens só falam o que a nobreza lá deseja. Mas não me ouvem. Aí, fico aqui sofrendo calado. Acontece que eu paguei o aluguel corretamente e ela é ciente disso por quase 16 anos. Às vezes, quando ia viajar, deixava para ser pago até uma semana antes. Ela diz que não permito estranhos no meu apartamento. Não é verdade. Eu não permito pedreiro grosso tocar a minha campainha insistentemente às 8 horas da manhã de um sábado, batendo na porta com força, gritando para abrir, me assustando para fazer um conserto na varanda. Sabe o que era o conserto? Uma pintura! Mandei voltar na segunda, eu não estava em casa. Aí, deve ter dito a ela e ela agora resolveu querer aparecer. Só pode. Nem com o pedreiro fui agressivo. Ele sim, foi invasivo.

Vi muita gente sendo solidária a você na imprensa. Você pediu apoio?

O brasileiro é solidário. Você viu essas coisas da chuva na serra? O Brasil inteiro ajuda, manda mantimentos, uma coisa bonita. Eu estou sentindo pânico, medo de tudo isso. Você vive no seu silêncio, em meditação, tocando sua guitarra, refazendo canções, conversa ali na internet com um amigo. Aí, de repente, tem fotografia do seu edifício, no número do prédio, a rua, o andar, tudo exposto. Existem loucos soltos por aí. Me expuseram muito. Isso é porque eu fico sempre calado. Não processei uma revista ano passado que deturpou uma reportagem. Se tivesse feito isso, teriam mais respeito. Mas essa coisa de fofocas eu não gosto. Uma conversa boa, a Rosinha Passos, o Robertinho de Carvalho da Rita [Lee], o Danilinho Caymmi, o Jacques [Morelenbaum] são pessoas do bem e tem uns admiradores da internet muito queridos. Eu não pedi nada a eles.Não gosto do tumulto, da baderna. Quando vejo uma chuva de solidariedade, fico feliz. Mesmo com medo, mas isso me deixa feliz em saber que você foi importante para algumas pessoas. Isso é bonito mesmo.

Chegou a colocar algum advogado para tentar se manter no apartamento? Até quando, segundo as regras da "nobreza", você pode ficar morando nele?

Eu estou tão assustado com a rapidez dessas notícias da internet que nem procurei advogado e ando passando por dificuldades financeiras. Preciso ter calma. Não é assim --vap vup!-- e contrata advogado, e contrata novo assessor. Mas, antes de receber intimação, a imprensa fez o escarcéu. Agora a pouco, me mostraram foto do meu edifício num site. Lamentável.

É a ideia de sair da casa que lhe deixa em pânico?

Essa coisa das fotos na internet do edifício, ao mesmo tempo saber que vou. receber uma intimação antes de recebê-la: tudo isso desencadeou um processo que não estou conseguindo me concentrar nem no [Jornal] Nacional. Não tenho assistido aos meus jogos, às lutas da Sky. Você gosta do Wanderlei Silva? O rapaz luta muito. A luta é uma dança, tem uma harmonia. Se você parar para analisar, aquele Minotauro também. Lá no Japão, vi bonecos de brinquedo do Minotauro. O lutador é baiano, sabia?

Fora o violão e a TV, o que mais lhe diverte dentro desse apartamento?

Nem tenho tocado mais! Porque não me concentro! É um medo contínuo. Você mora por quase 16 anos num local e os orientais sabem o que é isso. O lar vira o seu templo. Você medita e lança naquele ambiente sua energia vital, suas forças. Eu não queria ter que mudar para outro. Acostumei aqui. Estou cansado. Ultimamente, um cansaço quase crônico. Aí essa coisa de ter que mudar tudo? É triste. É lamentável. É triste, muito triste. Eu não toco há dias. Depois que criaram a minha internet, eu me divertia aqui, dava risadas altas na madrugada dos comentários dos meus amigos da internet. Até anedotas saem dali. É muito gozado. Revi netos de velhos amigos, pessoas que não via há anos. Isso ajuda a passar o tempo, os medos. Mas eu travei o muro da internet. Porque até ali, que tanto gosto, não consigo mais postar. Se durmo duas horas por noite é muito. Só penso nisso de despejo, de consideração com quem sempre pagou tudo certinho. É arrogância, o ego e um inimigo, as pessoas chegam num patamar e sentem o direito de mandar nas horas, nos minutos, nos segundos. Se acham deuses, né? Aí vêm as catástrofes naturais, esse monte de coisa feia que a gente vê na televisão. É falta de amor, o ser humano precisa reaprender a amar.

Só dorme duas horas? O que fica fazendo quando está acordado?

Eu nunca fui de dormir muito. Funciono bem de noite. Toco bastante à noite. Depois da internet, diminuí mais no violão. Mas eu dormia pelo menos umas quatro horas. Essa noite, fui dormir à meia noite e acordei antes das duas da manhã com o coração palpitando nas mãos, suando, medo, pesadelo, só pensando nessa bobajada de despejo, despejo, despejo.

Pretende gravar outro disco? O que gravaria?

A ex-mulher do Fernando Farro, a Selminha Boragian, disse que ele, o Baixo, me perguntou se ainda estava de pé o projeto. O projeto são as canções do Marino Pinto, que foi parceiro de Herivelto Martins. Todo mundo fala do Herivelto por causa da Dalva, né? Foi um grande. Mas o Marino Pinto tem pérolas! Queria gravar algo só com coisas do Marino. Eram planos concretos. Hoje, não sei mais. Esse ano, faço 80 anos. Queria cantar uma canção da Rita Lee e do Robertinho [de Carvalho] chamada "Caso Sério". Eu até refiz, uma madrugada dessas, a canção todinha. Tinha muitas pausas. Tirei. Ficou uma coisa bonita de se ver. Sempre gostei muito do Robertinho e da Rita. São pessoas doces. Delicadeza, hoje em dia, é coisa rara. Eles são delicados com todo mundo e me enviaram aquela gravação da moça do cabelo curtinho, uma loira, eu sempre esqueço o nome dela. Mas quem compôs foi Caetano [Veloso] e [João] Donato, se chama "Naquela Estação". Também refiz toda. Ficou muito bonita, viu? Se tiver um show esse ano, vou homenagear a Rita e o Roberto, o Caetano e o Donato, que são grandes artistas, maravilhosos. E amigos. Eu quero gravar o [samba] "Treze de Ouro". Você acredita que internet é uma beleza. Colocaram a gravação do "Treze de Ouro" dos Anjos do Inferno. Uma beleza. Eu toquei em São Paulo, em 2008. Você conhece? É linda.

O nome da cantora é Adriana Calcanhotto.

É isso mesmo o nome da moça! Adriana Calcanhotto. O nome dela é bem engraçado e eu sempre esqueço, porque é fácil de memorizar, né? Mas ela canta e toca muito bem, é do tipo da Rosinha Passos.

Você costuma cantar, em shows, sambas que nunca gravou, como "Odete" e "Carnaval da Vitória". Pretende incluí-los no disco?

"Carnaval da Vitória" é linda mesmo. Esqueci de cabeça a letra. "Lalarala, no carnaval da vitória, esperava uma coisa que o povo não fez, lara, hoje existe um sambista malvado..." Isso é gozado, né? "...um pito guardado, um coração ferido. Foi pra cima e voltou com glória." Veja como faziam canções lindas, né? Hoje é uma bobajada de dar medo. Você não tem mais o prazer de ligar o rádio. A gente escutava tudo isso lá em Juazeiro porque todo mundo tinha aquele rádio enorme e as rádios chegavam do Rio. Sabia que em Juazeiro o povo quase não torce pro Bahia ou Vitória? Influência do rádio! O que tem de flamenguistas no Nordeste não é brincadeira.

Ouve a música que é feita hoje?

Eu ouço a Dalva. A Gracinha, que vocês chamam de Gal Costa e conheci como Gracinha, em Salvador. Conheci a mãe dela! Ouço Caetano, o Chet Baker, o Duke Ellington e a Sarah Vaughan. Ouço Robertinho e Rita e ouço muito a Rosinha Passos. A Rosa passos é o exemplo de que, aqui no Brasil, a boa música não é bem valorizada. Você vai no Japão, na Europa, em Geneve, o povo adora a Rosa Passos. Uma cantora espetacular. Formidável.

Vai comemorar os 80 anos como?

Quero fazer um show. Esperar algum empresário honesto. O pessoal fala: "Ah, o João Gilberto é rico, está rico". Nada disso. Estou passando por dificuldades financeiras. E sou músico. Essa coisa de administrar dinheiro é para o dono dessas redes sociais dos celulares. Mas não quero fazer turnê grande porque cansa e estou com 80 anos. A minha cabeça funciona muito bem, melhor que muito moço aí, mas cansa aquela coisa de entra em avião, pousa lá longe, hotel, teatro, depois uma confusão de fotógrafos. Isso tudo, em certa época, vai virando algo desgastante.

O que achou das comemorações do cinquentenário da Bossa Nova?

Teve o show do Caetano com o Roberto Carlos eu não assisti na TV. Não me interessou. Para mim, isso não é comemorar a Bossa Nova. Só com canções do Tomzinho [Jobim] e do Vinicius [de Moraes]? Cadê canções do Donato, do Carlinhos Lyra? Está errado. Bossa Nova é Tom. É Vinicius. Mas é também Carlinhos Lyra, [Roberto] Menescal, Donato. Não vi o Caetano nem o Roberto cantar nada do Donato nem do Lyra, por quê?

Acha que a imagem que ficou do movimento corresponde ao que ele foi de fato?

Eu acho que foi esquecida. Porque o que eu vejo é repetição. É o "Fulana canta Bossa Nova", "Fulano canta Bossa Nova", "Ciclano canta Tom". Isso é bonito, mas não é bossa nova. Até porque bossa nova foi algo novo, diferente. E eu não vejo nada diferente. Vejo são repetições. Algumas, lastimáveis. E vejo o pessoal da época da bossa mesmo, como o Menescal e o Donato, que fazem coisa aqui acolá muito bonitas com cantores novos e coisa e tal. Mas não é bossa nova. Estava prestando atenção ali no [Arnaldo] Jabor, no jornal, ele falando desse Facebook que eu participo. Que o inventor criou isso numa dor de corno por causa da namorada, lá em Boston, e hoje faz tremer até a ditadura egípcia. Veja como e interessante. O facebook, a internet é bossa nova. olhe ai! É novidade que interfere em vários âmbitos. Bossa nova é isso. É tudo isso. Você já leu "Autobiografia", de um yogue do Yoganda? Você precisa ler. É um livro de cabeceira. E lá você vê ele explicando a questão dos ciclos cósmicos. A vida é feita de ciclos e tudo acontece no momento que tem que acontecer. E acaba quanto tem que acabar. Repetir o que passou é retrocesso. A bossa teve sua era, seu ciclo, a época propícia. Tudo estava escrito.

Falando em noticiário, Ana de Hollanda, tia de Bebel, é a nova Ministra da Cultura. Acha que ela vai fazer bem o trabalho?

Eu desejo que a Ana faça uma boa administração no MinC, porque é inteligente. Aliás, toda aquela família é especial. O Chico [Buarque], a Miúcha. A Bebel tem feito shows bonitos por aí, né? Como mora fora do Brasil, não temos tanto contato.

Você ouviu todos os álbuns de Bebel? Gosta deles?

Ouvi os discos da Isabel, gosto muito dela e fico feliz quando recebo elogios na internet dos shows dela. Ela sempre lutou pelo interesse dela. Merece toda a prosperidade do mundo.

Chamam você de gênio recluso. O que você pensa desses dois adjetivos: gênio e recluso?

Se eu não tirasse uma parte da minha vida, principalmente nos anos 50, quieto como lá em Diamantina, recluso, quieto, sentindo meu Eu, não sairia a Bossa Nova. Portanto, recluso é um adjetivo que não quer dizer antissocial. Eu sou caseiro, gosto de ficar em casa, gosto de tocar meu violão, de assistir os noticiários, assistir à missa cedinho na TV, de conversar com meus amigos da internet, os velhos e os novos. Tem cada menino novo e umas moças novas que sabem tudo de música brasileira. Alguns citam temas que eu nem sabia existir. Incrível aprendizado. Agora, se entende como recluso não gostar de restaurantes, de festas, da sociedade --aí podem me chamar de recluso. Eu gosto das coisas simples e da minha casa. Talvez por isso sinto tão com essa questão do despejo. Eu não sou gênio. Gênio é o Einstein, Bach, Jobim, Caymmi, Mozart, Beethoven, Newton. Eu batalhei em cima do meu ofício, que é tocar, tocar, tocar e tocar. As pessoas então julgam, sempre em primeiro lugar. Vivemos numa república democrática, onde ainda existe "condessa". Estranho, mas é assim. Tudo bem. Sensatez é sempre bom para o ser humano. Atitudes impensadas, impulsivas, a favor do ego, geram karma. Por exemplo: você sabia que a condessa que está me despejando construiu uma senhora mansão sobre um manguezal no sul da Bahia? Cadê o Ibama? Parece que os moradores do local não gostara muito disso.

Voltando à Bossa Nova. O que você se lembra da invenção da batida de violão que se tornaria o cerne do movimento, nos anos 50?

Os anos 50 que você diz foram os tempos de Diamantina, em Minas? Não é que [a batida] nasceu ali, mas foi ali que tive a oportunidade de treinar bastante. Tive muita paz naquela casa. Tinha poucos amigos ali. Conseguia me concentrar bastante. Tocava muito as coisas do [Dorival] Caymmi e do Noel [Rosa] lá. Às vezes, 19, 20 horas por dia, sem parar.

Leu os livros que contam as histórias da Bossa Nova?

Uma vez, eu conversei com o Tom sobre o livro do Ruy. O Tom disse que tinha uns dados errados sobre ele. Você viu aquela parte que fala da tangerina do hotel em Porto Alegre? Isso das tangerinas não aconteceu. A lembrança mais linda que tenho de Porto Alegre foi o contato com [o compositor] Lupicínio Rodrigues, um mestre. Uma pessoa de paz, do bem. Solidário. Uma vez, levei ele para o hotel e perguntei: "Lupicínio, o que você quer escutar?" Ele disse: "Farolito". Toquei umas duas, três, quatro, vinte vezes. Quando vi, já era alta madrugada, nem percebi. Acho que ele cansou e foi embora do meu quarto de hotel. Mas ele adorava me ouvir tocar. Mas não tive paciência de ler o livro do Ruy [Castro, "Chega de Saudade"] até o final. É a mesma coisa de você ver sua vida sendo contada por um estranho que sabe um pouco só de você. Isso é estranho. Mas vende, né? O povo lê e acredita em tudo. Não é bem assim Você tem que ter muita atenção no que você lê porque se não você fica mais alienado do que quem não lê. Mas ele foi muito generoso nesse momento em que estou sendo atacado, sofrendo com essa coisa de despejo. O Ruy foi de uma delicadeza, de uma solidariedade. Escreveu um artigo lindo em minha defesa. Assim como Rita Lee, a Rosinha Passos e o [jornalista] Luis Nassif. São pessoas que quero muito bem. Alguns amigos se omitiram.

Que amigos?

Os amigos que se omitiram prefiro não citar. Mas isso me deixou mais angustiado ainda. Pessoas que vi começando a cantar e dei todo o apoio viraram as coisas. Hoje em dia, penso seriamente em lançar um livro de memórias que venho escrevendo ao longo dos anos. Aí sim, eu quero falar de muita gente.

 

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