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Vencedor do Nobel Tomas Tranströmer embaralha senso de realidade
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SÉRGIO ALCIDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
A premiação de Tomas Tranströmer com o Nobel de Literatura era esperada. O surpreendente é a curta justificativa que todos os anos acompanha o anúncio do vencedor: "Porque, através de suas imagens condensadas e translúcidas, ele nos dá um acesso renovado à realidade".
Tomas Tranströmer é o vencedor do Nobel de literatura
Leia trecho de poema de Tomas Tranströmer
Tranströmer "não acreditava" que ganharia Nobel
É justamente o senso da realidade o que a poesia de Tranströmer mais embaralha. De preferência, ele sempre a aborda naqueles instantes ou situações imprevistos, em que tudo ameaça desandar: uma derrapagem que poderia ter sido fatal, uma tarefa tão inevitável quanto absurda, uma crise de insônia ou, durante uma mudança, a visão do apartamento onde se residiu por décadas recém-esvaziado.
Não por acaso, um dos tópicos mais comuns dessa poesia é o contraste às vezes abrupto entre o sono e a vigília. "Acordar é saltar dos sonhos num paraquedas" -- diz o primeiríssimo verso de sua obra reunida, abrindo seu primeiro livro, publicado em 1954.
O tom, porém, mantém-se inenfático, avesso a exaltações: adere de modo discreto e comedido ao ângulo do cotidiano --mas um cotidiano que se crispa de repente.
São pequenos episódios de ruptura da normalidade, que ganham uma importância grande, do ponto de vista de um indivíduo. A partir deles, Tranströmer consegue relativizar a força com que a realidade pragmática e desencantada se impõe a cada um.
Os poemas de Tranströmer geralmente partem de uma situação concreta, mas "estão sempre apontando para um contexto mais amplo, o qual é incompreensível para a nossa razão cotidiana" --como ele próprio declarou em entrevista a outro importante poeta sueco, Gunnar Harding, em 1973.
Essa abertura de enfoque traz à tona um plano de religiosidade bastante incômodo no ambiente cultural da Suécia, onde a ideia de religião soa como uma reminiscência quase inconcebível.
"Reajo à realidade de modo a ver a existência como um grande mistério", dizia Tranströmer, esclarecendo que "em certos momentos, esse mistério traz uma carga mais forte, de maneira que tem mesmo um caráter religioso, e é frequentemente nesse contexto que escrevo".
Nada disto basta, porém, para fazer de Tranströmer um poeta religioso: não há nenhuma mística em sua escrita. O que se impõe, antes de qualquer revelação, é a perplexidade.
Sem respostas, diante do seu recém-descoberto desvão religioso, o sujeito aparece como a imagem descrita no poema "Noite de Dezembro, 1972": "vê-se um santo de madeira / sorrindo, desamparado, como se tivessem arrancado os óculos dele".
Talvez seja este o efeito que, para o comitê do Nobel, permite "um acesso renovado à realidade": o frescor que a humana perplexidade pode trazer para um mundo atravessado pelos dogmatismos da razão e da religião ao mesmo tempo - sem falar nos da política.
Ironicamente, o escritor agora premiado por seu acesso à realidade costumava ser criticado, no calor dos anos 1960 e 1970, por dar as costas "às realidades atuais", como um alienado. Sua resposta aparece com nitidez num poema chamado "Sobre a história": "Radicais e reacionários vivem juntos como num casamento infeliz, / modelados uns pelos outros, dependentes uns dos outros. / Mas nós, que somos seus filhos, precisamos nos libertar".
SÉRGIO ALCIDES, 43 é poeta e professor da Faculdade de Letras da UFMG
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