Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
06/06/2012 - 17h04

A verdade sobre os casamentos forçados no Paquistão

Publicidade

CATHERINE DEVENEY
DO "OBSERVER"

Sairah Vanar é casada há quarto anos, mas nunca dormiu na mesma cama que o marido, Kabir. Mantém a porta do quarto sempre trancada. Caso esbarre com o marido nos corredores, ao voltar para casa da universidade, o cumprimenta com polidez, como faria no caso de qualquer outro conhecido. Kabir diz que a ama, mas Sairah acha que ele está apenas expressando antiquadas ideias asiáticas de orgulho e honra.

Sairah é miúda, com um jeitinho de criança; seus olhos escuros brilham por trás das lentes dos óculos. Ela apanha comida na cozinha e vai para seu quarto estudar, trancando a porta ao entrar. "Se eu não tivesse um ferrolho, viveria assustada", admite. "Sou pequenina, e ele é um sujeito grandalhão".

Os pais de Sairah dizem que seu casamento foi arranjado. Ela o define como forçado. Em outubro do ano passado, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, abriu um processo de consulta pública quanto ao contencioso tema do casamento forçado, e o prazo para consulta se encerra no final deste mês.

A consulta decidirá se casamentos forçados devem ou não ser encarados como crime, passível de pena de prisão. Descrevendo o costume como "pouco mais que escravidão forçada", Cameron disse que não deveríamos ignorar a questão devido a "preocupações culturais".

No momento, as potenciais vítimas de casamentos forçados contam apenas com a proteção das leis civis. As vítimas ou seus representantes, por exemplo professores ou assistentes sociais, podem solicitar uma liminar de proteção contra casamento forçado, conhecida pela sigla FMPO. A liminar impõe condições para tentar mudar o comportamento de quem quer que tente forçar outra pessoa a um casamento.

Mas é difícil fiscalizar seu cumprimento, e não existem sanções automáticas caso as liminares sejam violadas. Em novembro de 2011, a Escócia se tornou a primeira das nações do Reino Unido a transformar a violação de uma FPMO em crime, e Cameron prometeu fazer o mesmo para a Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte. Mas foi além, solicitando que o Departamento do Interior considere fazer do casamento forçado em si um crime.

A ideia de criminalizar o casamento forçado já foi debatida anteriormente, mas terminou rejeitada por medo de que resultasse em queda no número de denúncias. "Criminalizar o casamento forçado significaria varrer o problema para baixo do tapete", argumenta Sameem Ali, vereadora trabalhista em Manchester, vítima de um casamento forçado. "Caso a prática seja criminalizada, não teremos como contatar as vítimas. Elas não nos procurarão".

Ali foi levada do Paquistão ao Reino Unido e forçada a se casar aos 13 anos; teve seu primeiro filho aos 14. Seu parto aconteceu no Reino Unido, mas nenhum dos profissionais de saúde que a atenderam questionou sua situação ou considerou a questão como abuso contra menores. Uma lei não ajudaria a conscientizar sobre o problema? Ali diz que não.

As jovens asiáticas relutam em se opor publicamente às suas famílias. Ali foi enviada a um orfanato quando tinha seis meses, mas voltou para casa aos sete. Sua mãe a espancava, lhe faz agressões verbais e fez da menina uma empregada doméstica. No entanto, Ali diz que nunca recorreu a medidas judiciais. Por quê? "Porque eu não a odiava. Continuava a gostar dela".

Jasvinder Sanghera discorda de Ali. Sanghera fugiu de sua família há quase 30 anos para evitar um casamento forçado. Anos mais tarde, sua irmã se imolou para escapar a um casamento forçado. Sanghera quer uma mudança na lei. Ela dirige a Karma Nirvana, uma das poucas organizações assistenciais britânicas que lidam com casamentos forçados, e sua linha de assistência telefônica, bancada pelo Departamento do Interior, atende a 500 telefonemas por mês --12% das quais feitas por homens.

A Unidade de Casamentos Forçados do governo britânico atende a cerca de 1,5 mil casos por ano, mas a opinião geral é a de que muitos abusos passam sem denúncia. "As vítimas alegam precisar da plena proteção da lei", diz Sanghera.

A Karma Nirvana conduziu pesquisas sobre o assunto como parte do processo de consulta pública. Até agora, recebeu 1,62 mil respostas; praticamente todas apoiam a criminalização, excetuadas duas respostas neutras.

É importante que a mensagem da sociedade seja clara, diz Sanghera. "Estamos tentando criar responsabilidade cultural, aqui. É nosso dever atrair atenção para esses casos. Se estudarmos os países nos quais casamento forçado é crime, como a Dinamarca e Alemanha, o número de denúncias não caiu depois da criminalização. A menos que as pessoas possam provar que haverá queda, eu quero a criminalização. Trata-se de uma violação que não deve ser tolerada, e que muitas vezes pode terminar, e termina, em violência, estupro e homicídio".

HORROR

Sairah, a jovem que dorme com a porta trancada, tinha 15 anos quando seus pais perguntaram se desejava ficar noiva de Kabir, 16, seu primo no Paquistão. Ela achou que era brincadeira. A família havia mudado da Inglaterra para uma pequena aldeia escocesa, e os pais sabiam que estava interessada em um menino branco da escola.

Ainda que ela não saísse com o menino, seus pais ficaram horrorizados. Para Sairah, sempre existiu um conflito entre sua vida como estudante britânica e sua vida como "boa" filha asiática, o tipo de jovem que não sai desacompanhada quando o grupo inclui homens.

Ela ocasionalmente brigava aos gritos com a mãe sobre as restrições à sua liberdade, mas terminou por aceitá-las porque em sua família todas as meninas passavam pela mesma situação.

A cultura ocidental branca também enfrentou dificuldades para aceitar a autonomia sexual feminina. Mas além de manter a honra familiar, controlar a sexualidade feminina é uma motivação comum dos casamentos forçados. Quando um namorado branco se tornou uma possibilidade, Sairah foi informada de que a honra de sua família dependia de seu noivado.

Para ganhar tempo, ela concordou em pensar a respeito, mas a resposta foi interpretada como consentimento e logo vieram os telefonemas de congratulações da família. Os pais acalmaram seus protestos. Nada estava decidido; eles iriam ao Paquistão para que ela pudesse conhecer o primo. Na escola, suas notas começaram a cair. Em casa, ela recebia dinheiro e presentes. Era como se tivesse se tornado uma celebridade.

"A atenção que eu recebia me interessava", admite Sairah. "Sinto-me muito idiota ao lembrar disso".

Ela passou seu 15º aniversário no Paquistão, e o que ela achava ser sua festa de aniversário na verdade foi sua festa de noivado. O primo Kabir, que não sabia dos planos de casamento, simplesmente os aceitou ao ser informado.

Em casa, Sairah tentou repetidamente romper o noivado. "Havia ocasiões em que eu pensava que não podia permitir que aquilo acontecesse. Mas em outras eu achava que eu estava falando de meu pai e minha mãe, afinal, e eles não tomariam más decisões por mim".

Sempre que ela dizia que não queria casar, havia lágrimas. Sairah nunca havia visto seu pai chorar, mesmo quando o irmão dele morreu. Ele não chorava diante da filha, mas ela via seus olhos vermelhos. "Ele sempre me pareceu uma pessoa tão forte, E eu tinha causado aquilo. Havia feito meu pai chorar. Fiquei arrasada".

Cameron se esforçou para estabelecer uma distinção clara entre casamento arranjado e casamento forçado. "O governo nos ofereceu uma definição clara da diferença", diz Sanghera, "mas o que as vítimas nos dizem é que a distinção nem sempre é evidente".

John Fotheringham, especialista em Direito familiar e infantil e participante do processo de consulta do governo escocês quanto ao casamento forçado, concorda. "Situações em que uma mulher é ameaçada de morte caso não se case com o homem escolhido são raras. Não é algo que seja dito com frequência. Mas os pais ameaçam se matar, ou cortar os fundos universitários de uma filha que não aceite".

VIOLÊNCIA

No passado a violência doméstica era vista como assunto privado. Uma questão de família com a qual ninguém deveria interferir. Foi preciso tempo para que a sociedade reconhecesse que viver com uma pessoa não confere propriedade sobre ela.

Há relutância semelhante em interferir com o casamento forçado, em parte, diz Sanghera, porque as pessoas temem ser definidas como racistas caso desrespeitem a cultura alheia. Mas o casamento forçado não é questão cultural. É uma questão de direitos humanos reconhecida internacionalmente, e prática proibida por todas as grandes religiões, incluindo o islamismo.

Na manhã de seu casamento, no Paquistão, as mãos de Sairah estavam sendo decoradas com desenhos em hena quando ela desmaiou, estressada. "Sabia no fundo de mim que não seria a mulher dele, porque não o amava".

As noivas asiáticas tradicionalmente se casam de vermelho, e usam joias pesadas de ouro. Sairah escolheu um traje verde, e uma correntinha fina ao pescoço. Foi sua maneira de se rebelar --aos 18 anos, ela não tinha força para mais que isso. "Mantive a boca fechada", diz.

Sairah admite relutantemente que tentou se suicidar diversas vezes, a partir dos 15 anos. "Não é algo que voltaria a fazer", acrescenta, rapidamente. Mas quando fala do desespero que causou as tentativas, fica claro que o casamento forçado é um problema intratável porque envolve mais que coerção. Envolve amor, e às vezes o amor se emaranha em estranhas noções de controle, privilégios e até crueldade.

Suicídio era preferível à desobediência, para Sairah. E seus pais viviam conflito semelhante. No ano passado, depois da mais recente tentativa de suicídio de Sairah, a mãe a levou consigo para casa a fim de cuidar da filha. Ao acordar depois de um sono profundo, Sairah sentiu que alguém estava ao seu lado no quarto. Seu pai estava deitado ao lado dela, acariciando seus cabelos gentilmente. "Logo que mostrei que estava acordada, ele saiu do quarto", conta. "Não queria que eu visse que estava preocupado comigo".

A história de Sairah é pungente porque contém elementos que todos somos capazes de reconhecer: uma dinâmica familiar complicada; a necessidade de aprovação de um filho que briga com os pais; a crença muitas vezes teimosa de que os pais sabem o que é melhor para os filhos e portanto os fins justificam os meios. Mas às vezes os "meios" envolvem violência.

O PAI DA NOIVA

Há algo que indica trauma na figura de Sahrish Rizvi, 20. Ela é a um só tempo vulnerável e exigente, emotiva e indisciplinada, alguns dias loquaz e em outros, silenciosa. Há momentos em que parece esgotada. Levada de Warrinton para o Paquistão aos 17 anos, ela diz que foi trancada em um quarto, espancada pelo pai e informada de que deveria se casar com o homem que ele escolheria, e não com seu namorado Abbas.

Passados dois anos, Sahrish ainda se sente machucada pelo acontecido. "Mudei como pessoa", diz, em voz quase inaudível. "Recolhi-me aos meus pensamentos. Adoeci, perdi peso. Embora esteja casada com Abbas, tenho outros conflitos. Não me casei como uma jovem asiática deveria".

Abbas estava estudando administração de empresas, com uma bolsa do governo paquistanês, quando a conheceu. O pai de Sahrish ficou furioso. Abbas é xiita, e tinha 29 anos. Sahrish, 17, é sunita. Abbas tentou falar com o pai dela ao telefone e garantir que amava sua filha. Conta que o pai ameaçou quebrar suas pernas. Sahrish amava e temia o pai, mas o desafiou. "Depois que conheci Abbas, nunca mais tive medo", diz.

Quando o casal solicitou proteção da polícia, ela conta, a atitude do pai mudou. Tudo havia sido um mal-entendido, e Sahrish estava autorizada a se casar com Abbas. O sonho dela era comprar o vestido de noiva em Dubai, e o pai a levou para lá a fim de fazê-lo. Mas insistiu em que fossem ao Paquistão.

Quando chegaram, conta Sahrish, ele disse que, se ela não obedecesse a suas ordens, jamais retornaria ao Reino Unido. Ela ligou para Abbas antes que seu celular fosse confiscado. "Estou com problemas", disse.

Abbas é membro de uma família com conexões importantes na polícia e nas Forças Armadas, e com a ajuda delas conseguiu o endereço de Sahrish. No Reino Unido, ele contatou a polícia, que estava investigando o homicídio de Shafilea Ahmed, um suposto crime de honra em Warrinton, e recomendou cautela.

Abbas instalou alarmes em sua casa em Manchester, e foi aconselhado a não sair mais que o necessário. "Honestamente, eu estava planejando comprar uma passagem para a Caxemira e salvá-la, porque tinha medo de que fosse morta. Quando você se apaixona, tudo muda. Lutei por ela porque estava cego de amor".

No Paquistão, Sahrish assistiu ao suposto sequestro de seu pai por homens armados, que disseram que não devia permitir que sua filha casasse com Abbas porque ele já era casado. Sahrish ficou confusa, e não acreditou que ele já fosse casado. Mais tarde, surgiu a suspeita de que seu pai havia encenado o sequestro.

Quando "libertado", ele trouxe uma foto que supostamente mostrava Abbas com a "mulher". Sahrish reconheceu a foto, e sabia que havia sido manipulada. Ela manteve o silêncio, e prometeu que não voltaria a se encontrar com Abbas.

Depois de uma denúncia de Abbas, as autoridades revistaram a casa de Sahrish no Paquistão. O pai dela não estava, mas sabia que a polícia voltaria. Acreditando nas falsas promessas da filha, voltou com ela ao Reino Unido. O pai foi preso ao desembarcar, e Sahrish foi colocada sob custódia protetora, e impedida de ver a família ou Abbas.

Pouco depois de completar 18 anos, ela se casou com Abbas, em uma cerimônia muçulmana apressada realizada sem a presença de familiares ou amigos. Abbas havia decidido que não desejava um processo contra o pai da noiva. "Na minha cultura, na minha religião, nos meus costumes, o pai de minha mulher é como meu pai. Por isso, eu agi com respeito. Mas ele nunca retribuiu, e continua a me odiar", diz Abbas.

Ele e Sahrish continuam a enfrentar essa dificuldade em seu relacionamento. Abbas reconhece a influência, o poder, dos elos familiares asiáticos. "Afetam a tudo. Sinto que eles podem convencê-la a voltar". Ele meneia a cabeça. "É difícil compreender os asiáticos. Se querem ser ruins, ninguém é pior. Se querem ser bons, são verdadeiros anjos".

Abbas acrescenta que é preciso fazer mais para impedir casamentos forçados. "Isso é um delito muito sério. Um delito no qual você mata alguém indiretamente, mata sua alma. Não é físico. É interno. A pessoa enlouquece. Fica impedida de agir".

Já existem leis para restringir diversos aspectos dos casamentos forçados: sequestro, estupro, agressão, abuso contra menores. A advogada Ali acredita que a legislação existente seja suficiente. Seu irmão foi sentenciado a quatro anos de prisão por conspiração para sequestro, depois que a polícia capturou um grupo de homens armados e portando um papel com o endereço de Ali, quando ela fugiu de seu casamento.

Mas Sanghera diz que uma lei específica poderia dar às mulheres mais força para escapar a seus problemas. Ninguém seria forçado a usar a lei. O que haveria a perder? "Sejamos claros: a ideia não é forçar ninguém a levar sua família aos tribunais", diz Sanghera. "Não quero ver muita gente presa por isso. As pessoas ainda poderão usar as leis civis se assim preferirem".

Mudar a lei pode enviar uma mensagem importante, mas não constituirá solução instantânea. Sahrish e Abbas não processaram o pai dela. Sairah tranca a porta do quarto mas não buscou uma anulação judicial de seu casamento. E isso ocupa posição central no dilema.

Há poucos crimes nos quais a vítima deseje manter um relacionamento posterior com o criminoso. Sanghera e Ali concordam em que educação é fundamental. A maioria dos envolvidos nesse tipo de crime não vê coisa alguma de errado em seu comportamento.

Sairah certa vez disse à mãe que não dormia com Kabir. Em lugar de se culpar pela triste situação da filha, a mãe gritou com ela, chorou e a acusou de causar vergonha à família. "Ela achou que eu fosse o diabo, e que aquele era um dos mais horríveis pecados".

Sairah agora tem um relacionamento sério e secreto com um homem chamado Salim. Os dois querem se casar, situação que coloca a ambos em risco. O tio de Sairah descobriu e ameaçou espancar Salim, e por isso ela teve de fingir que não tem mais contato com ele.

Na superfície, nada a impede de abandonar Kabir e viver com Salim. Ela planeja fazê-lo ao concluir o curso, diz. Quando for mais forte. Mas a verdadeira hesitação --a hesitação de toda vítima-- é que isso causaria um racha em sua família.

Ela manteria contato com as irmãs, mas perderia o pai. Sairah declara, tristonha, que talvez pudesse continuar a ver a mãe, sem que o pai soubesse. No momento, nada pode resolver seu problema. Por isso, ela continua a trancar a porta e esperar.

Alguns nomes foram alterados.

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página