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08/07/2012 - 07h00

A colossal biografia de Diderot chega ao Brasil

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MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

No dia 5 de janeiro de 1757, Luís 15 entrava numa carruagem quando um lacaio chamado Robert François Damiens tentou assassiná-lo com um golpe de punhal. O rei sangrou muito, mas depois de uma semana estava recuperado. Quis perdoar Damiens; o Parlamento de Paris -- instituição mais judicial do que legislativa -- entendeu de modo diferente.

Damiens foi condenado a ter a carne arrancada com tenazes, nos mamilos, nas pernas e nos braços. Chumbo derretido deveria ser jogado nos ferimentos. Em seguida, seu corpo seria despedaçado por quatro cavalos, cada qual amarrado a um de seus membros.

"Vai ser um dia duro", disse ele, ao ouvir a condenação. Assim foi feito, num espetáculo público.

SENSÍVEL

Agora é moda ver na Revolução Francesa a origem de todos os males do terror político. Costuma-se esquecer que, durante o Antigo Regime, a tortura era um espetáculo público, ao qual se costumava levar crianças pequenas para assistir. Denis Diderot (1713-84) foi considerado muito sensível pelos pais, por ter passado mal depois de ir a um desses programas; ele tinha três anos.

A execução de Damiens chegou num péssimo momento para o filósofo de 44 anos. Ao lado do matemático Jean Le Rond D'Alembert (1717-83), Diderot se dedicava ao maior empreendimento cultural do século, a publicação da "Enciclopédia".

A tarefa, envolvendo cerca de 150 colaboradores, destinava-se a oferecer a suma de todo o conhecimento humano, tanto em questões filosóficas e científicas, quanto no tocante aos ofícios práticos. Nos verbetes, recomendações técnicas se alternavam com a crítica aos costumes, aos preconceitos da época e às imposições das autoridades religiosas e políticas.

O projeto da "Enciclopédia" exigiu 20 anos e considerável investimento financeiro para completar-se. Contando inicialmente com a aprovação oficial, em pouco tempo os enciclopedistas veriam a maré política voltar-se contra eles.

LIBERDADE

O atentado ao rei deu ocasião para medidas especialmente restritivas à liberdade de pensamento. Em abril de 1757, Luís 15 deu a conhecer um decreto pelo qual "todos aqueles que estiverem convencidos de ter composto, mandado compor, e impresso artigos inclinados a atacar a religião, a comover os espíritos e a perturbar a ordem e a tranquilidade dos nossos Estados serão punidos de morte".

A complicada e muitas vezes emocionante história editorial da "Enciclopédia" ocupa vários capítulos da volumosa "Diderot", biografia escrita por Arthur M. Wilson [1902-79]. É esse livro, com 787 páginas, mais 205 de notas, que acaba de ser lançado no Brasil, numa tradução ruinzinha [trad. Bruna Torlay, Perspectiva, 1.024 págs., R$ 180].

Wilson demorou 36 anos para completá-lo. O original foi publicado em dois volumes. O primeiro, que saiu em 1957, ressente-se de certa secura, tendo de acompanhar os inícios, bastante incertos, da carreira de Diderot.

Depois de concluir seus estudos de teologia, o filósofo passou um bom tempo na vida boêmia, sustentando-se precariamente com traduções do inglês. Escreveu um livro de comentários matemáticos, um tratado explicando a teoria musical de Rameau, um panfleto sobre a prática médica e uma novela libertina, "As Joias Indiscretas", notável, entre outras coisas, por imaginar uma vagina falante.

Já era, como se vê, um espírito "enciclopédico". Mas foi por causa de textos mais especulativos --como "O Passeio do Cético", os "Pensamentos Filosóficos" e a "Carta sobre os Cegos", que se pergunta que conceitos de Deus e da moral teríamos, caso possuíssemos menos do que cinco sentidos -- que Diderot passou cerca de um mês preso, na torre de Vincennes. Foi o período de sua amizade com Jean-Jacques Rousseau.

Na década de 1750, Diderot encontrou energia para inaugurar um novo gênero teatral, o "drama burguês", em que assuntos sérios e de alta emotividade não mais eram protagonizados por reis e príncipes, como na tragédia clássica, mas por cidadãos comuns, comerciantes e pais de família, em suas vestes contemporâneas e preocupações domésticas.

A segunda parte da biografia de Arthur Wilson foi terminada em 1972, e começa no capítulo 26 da atual edição da Perspectiva. Encontramos aqui um Wilson mais à vontade para se aproximar da pessoa de seu biografado.

Uma vez que se libertava do trabalho de escrever milhares de verbetes para a "Enciclopédia", contando basicamente com a ajuda de um só colaborador importante -- o metódico, mas pouco inspirado cavaleiro de Jaucourt --, Diderot ia dando vazão a seu vertiginoso gênio especulativo e à sua inclinação, que chegava às raias da imprudência, para ajudar os outros.

Por três anos, assim, Diderot foi enganado por um espião político, a quem abrigou em sua própria casa, pensando que necessitava de caridade. Nesse clima, é natural que Diderot tenha deixado muitas de suas obras sem publicar. Poderia, é claro, conseguir que fossem editadas num país mais livre, como a Holanda. Ou conseguir o apoio de algum soberano.

O apoio, na forma de ajuda financeira, chegou, para surpresa e relutância do filósofo, da parte de Catarina 2ª, a Grande, da Rússia. Diderot retribuiu com uma viagem a São Petersburgo (que o fez detestar ainda mais o despotismo) e com um plano educacional para o império -- evidentemente, não adotado pela soberana.

É mais um exemplo da modernidade de Diderot. Numa época em que mesmo alguns iluministas temiam a educação "do populacho", ele vislumbrava um sistema de ensino acessível a todos.

Diderot seria também um dos pioneiros da crítica ao colonialismo. Emprestou tempero literário e filosófico ao severo estudo do abade Raynal, "História das Duas Índias", que denunciou as violências europeias na América e no Oriente.

CRÍTICA

Pode-se creditar ainda a Diderot o título de fundador da moderna crítica de arte. Por anos, Diderot encarregou-se de escrever apreciações sobre as mostras oficiais de belas-artes. Seus "Salons" saíam no periódico mais exclusivo e mais "avançado" da época, a "Correspondência Literária".

Esse gênio tão variado se refletia, ademais, no interior de seus próprios escritos. Suas obras mais importantes, como "O Sonho de d'Alembert" e "O Sobrinho de Rameau", desafiam comentadores pelas copiosas digressões e pela multiplicidade dos pontos de vista. Como resultado, retém-se de seu pensamento o aspecto mais radical -- sua negação do livre-arbítrio, coerente com o materialismo, e mesmo o quase ateísmo, dos momentos mais ousados; e também uma frase, que lhe fez mais mal do que bem, ao ser associada com o terror revolucionário de Robespierre.

É aquela em que, num poema só publicado em 1796, Diderot se refere ao dia em que o último rei seria estrangulado com as tripas do último padre. Arthur Wilson esclarece: os versos, "que Diderot mui provavelmente teria assinado", são uma paráfrase de Jean Meslier, escritor ateu de começos do século 18.

A personalidade de Diderot, que emerge aos poucos na biografia, não é endeusada por Wilson. Vaidoso e sentimental, o filósofo era o que chamaríamos de um tipo "latino": falava sem parar, gesticulando e cutucando as pessoas; Wilson trata com equilíbrio, ademais, a ruptura entre Diderot e Rousseau.

"Eu morrerei como uma criança velha", escreveu Diderot. "Há alguns dias, dei com a cabeça num bloco de mármore; minha neta, que tem três anos, me viu com um enorme galo na cabeça, me disse, 'ah, vovô, também bates o nariz nas portas?' Eu ri, e pensei comigo mesmo que não havia feito outra coisa desde que vim ao mundo."

Diderot, no entanto, sabia bem a quantidade de portas que abriu para o futuro, a cada acidente desse tipo. O livro de Arthur Wilson relata-os com minúcia, clareza e simpatia.

 

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