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28/07/2012 - 14h00

Refugiado do Sudão lidera seleção britânica de basquete na Olimpíada

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ANDREW ANTHONY
DO "OBSERVER"

Quando a equipe olímpica britânica foi anunciada, no começo do mês, a mídia dedicou muita atenção à ausência de um multimilionário radicado nos EUA, David Beckham. Já a presença de outro astro multimilionário que também atua no esporte norte-americano, Luol Deng, recebeu muito menos atenção.

Ainda que Deng seja pouco conhecido nas ilhas britânicas, nos EUA é muito mais famoso que Beckham, ao menos em termos esportivos. E também ganha melhor. As informações indicam que Beckham assinou um generoso contrato de US$ 32 milhões com o Los Angeles Galaxy ao se transferir para a Major League Soccer, a principal liga de futebol dos EUA; já o contrato de Deng com o Chicago Bulls atinge o extraordinário valor de US$ 71 milhões.

John Gress - 15.jan.12/Reuters
Luol Deng (camisa 9 do Bulls) tenta impedir ponto do jogador brasileiro Leandrinho em partida pela NBA
Luol Deng (camisa 9 do Bulls) tenta impedir ponto do jogador brasileiro Leandrinho em partida pela NBA

Deng e Beckham são patriotas e esforçados, e fazem questão de exibir a bandeira e promover o Reino Unido. Mas Beckham é um dos nomes e rostos mais conhecidos do Reino Unido, enquanto Deng não costuma ocupar as primeiras --ou as últimas-- páginas dos jornais britânicos.

Isso acontece porque o primeiro joga futebol, uma obsessão que consome os britânicos, e o segundo basquete, uma atividade que costumamos classificar mais como hobby do que como esporte, a exemplo do vôlei.

Mas Deng merece ser celebrado, e não apenas por suas realizações na National Basketball Association (NBA), onde é campeão e participante dos jogos dos "all stars". Se houvesse uma competição olímpica de histórias de vida inspiradoras, ele estaria entre os favoritos a uma medalha de ouro.

Ainda que seu nome pareça chinês, Deng, um homem de 2,03 metros, provém da tribo dinka, do sul do Sudão, famosa pela altura de seus membros. Fugiu de seu país devastado pela guerra aos cinco anos, com a mãe, três irmãos e oito irmãs, e viveu na pobreza durante quatro anos, no Egito. Seu pai, um político importante, estava preso no Sudão, e ao ser libertado conseguiu asilo para a família no Reino Unido.

Deng tinha nove anos ao chegar à Inglaterra, e falou sobre suas impressões iniciais em uma visita à quadra de basquete de Regal, no sul de Londres, não muito longe de Brixton, onde ele costumava treinar quando menino.

"Havia muito vidro, e era tudo muito limpo", ele diz, rindo de sua perspectiva como menino. "Não quero desrespeitar Alexandria, onde morei, mas não era tão limpa quanto o aeroporto de Heathrow. Eu nunca tinha andado de escada rolante, escadas que faziam o trabalho por você. Lembro-me de que usá-las me assustava".

Andrew Yates - 19.jul.12/France Presse
Deng, pela seleção britânica (esq.), tenta passar por Kevin Durant dos EUA em jogo preparatório para a Olimpíada
Deng, pela seleção britânica (esq.), tenta passar por Kevin Durant dos EUA em jogo preparatório para a Olimpíada

A despeito das escadas rolantes e de não falarem uma palavra de inglês, Deng e sua família se sentiram instantaneamente em casa em seu novo e desconhecido país. Em suas palavras, "chegamos à Inglaterra e deixamos de procurar por uma vida melhor, porque não existia vida melhor que aquela".

O atleta já explicou muitas vezes que mantém uma conexão indissolúvel com o Reino Unido, porque foi o país que deu uma chance à sua família. Contrariando as tendências modernas, ele vê a concessão de asilo como uma dívida que precisa ser paga.

Um dos meios de fazê-lo é sua lealdade à seleção britânica de basquete, que até pouco tempo atrás ocupava posição tão baixa no ranking mundial que parecia destinada a não participar nem da Olimpíada em sua casa. A seleção teve de se qualificar passando por uma série de torneios que envolveram visitas a países como a Bósnia e a Macedônia.

Para um astro da NBA, acostumado ao luxo, viajar de Chicago ao outro lado do mundo para defender uma equipe muito inferior em qualidade aos colegas com os quais está acostumado poderia ter parecido uma perspectiva menos que cintilante. O Bulls, o time que o emprega, certamente não gosta muito da ideia de cedê-lo para esses compromissos distantes. Mas Deng, 27, estava determinado a levar a seleção britânica a uma disputa olímpica, realizando um de seus sonhos.

"Quando meninos, nós costumávamos reclamar por não haverem jogadores de Londres entre os melhores do mundo, e conversar sobre a alta qualidade das outras seleções europeias", ele diz, explicando como essas passadas frustrações ajudaram a motivar a seleção. "Mas nós nos classificamos, e agora teremos a chance de provar nosso talento em quadra".

Seu sotaque é norte-americano e lacônico, mas os sentimentos continuam a ser os de um apaixonado morador do sul de Londres. A mãe de Deng ainda vive em South Norwood, onde a família se radicou, mas os elos emocionais mais fortes do jogador são com Brixton, onde começou no basquete sob o olhar atento de Jimmy Rogers, um jamaicano durão que desfruta de um status elevado no basquete britânico por seu rigor como técnico.

TORCEDOR DO ARSENAL

"Uma criança barulhenta" no Egito, como diz, Deng se tornou menos falante em sua escola londrina. "Eu observava mais do que costumava fazer no passado. O esporte se tornou minha maneira de falar".

A linguagem do esporte em que ele era mais fluente era o futebol e, até os 12 anos, esse foi seu único amor. Era torcedor do Arsenal, fã de Ian Wright e planejava se tornar jogador profissional.

"Quando comecei a jogar basquete, eu odiava o esporte, porque o futebol foi sempre a minha paixão. Gostava de fazer coisas com os pés. No Egito, quando menino, eu tinha muita habilidade no futebol. Nunca tinha jogado com uma bola oficial. Usávamos bolas de meia ou um balão com uma toalha em volta, e jogávamos descalços no chão de concreto. Quando cheguei aqui, tínhamos gramados reais e eu me saí bem, e levava o jogo a sério. Costumava ficar depois das aulas para treinar futebol no gramado."

Estimulado pelos irmãos, ele começou, sem muito entusiasmo, no basquete, mas faltava aos treinos para jogar futebol. No entanto, seu corpo que não parava de crescer tinha outros planos. Deng já tinha 1,93 metro aos 14 anos. Seus irmãos tem 1,93, 1,98 e 2,11 metros de altura. Deng tinha medo de ficar ainda mais alto. "Se ficasse alto demais", diz, "tinha medo de não dar certo no futebol, e decidi facilitar as coisas para mim mesmo".

Deng começou a treinar com a equipe juvenil de basquete do Brixton Topcats, e logo causou boa impressão. Todo adolescente enfrenta distrações que o afastam do esporte, mas a juventude urbana moderna também precisa enfrentar gangues e disputas urbanas que podem acabar em violência fatal. Isso foi problema para Deng?

"Estava apenas começando. A situação não era tão ruim quanto agora. Na época, só havia dois técnicos de basquete, Jimmy Rogers e Joe White, e o pessoal vinha de toda parte, mesmo do norte de Londres, para treinar com Jimmy, e por isso nos conhecíamos, ainda que viéssemos de territórios diferentes, o que tornava as coisas mais fáceis. Mas tenho amigos que estão presos. Nem todo mundo da sua turma vai atingir o objetivo que tinha. O que me ajudou é que tive bons amigos com visão semelhante à minha. E tinha minha família, grande mas muito unida."

Quando a irmã de Deng recebeu uma bolsa de basquete na Blair Academy, em Nova Jersey, ele foi autorizado a se mudar para lá com ela. No começo, sentia muita falta de casa e pediu para voltar a Londres, mas seu técnico disse que ele precisava aguentar o tranco por um ano. Ele o fez, e conquistou uma bolsa para jogar basquete pela prestigiosa Universidade Duke, na Carolina do Norte.

Jim Young - 12.abr.12/Reuters
Luol Deng enterra bola em jogo contra o Miami Heat pela NBA
Luol Deng enterra bola em jogo contra o Miami Heat pela NBA

O basquete universitário é um grande negócio nos EUA, e foi em Duke que o discreto Deng começou a perceber as vantagens de ser admirado pelo talento e não apenas pela altura. "No refeitório, se você joga pela Duke, todo mundo presta atenção. As pessoas olham quando você entra em algum lugar. Mas eu sempre pensava que amava o basquete e queria ser o melhor que pudesse, apesar de qualquer obstáculo. Era minha maneira de escapar à pressão".

A atitude o serviu bem, e fez dele um dos mais admirados e efetivos jogadores da NBA atual, capaz de deslumbrar pela habilidade com a bola e espantar os adversários com os arremessos de três pontos que se tornaram sua marca registrada.

Apesar de sua grande capacidade de salto, Deng manteve os pés no chão. Não quer saber de ser tratado como celebridade, vive discretamente e devota tempo e dinheiro consideráveis à Fundação Luol Deng, que financia programas de basquete no Reino Unido e no Sudão do Sul, país recém-criado.

Ele também tem planos para apoiar a reforma de hospitais no Sudão do Sul e, depois de uma visita ao campo de refugiados de Kakuma, no Quênia, quer trabalhar mais com refugiados.

Agora, planeja construir uma instituição no Sudão do Sul onde "as crianças não precisariam pagar, e receberiam tênis e uniformes para jogar. Elas chegariam, pegariam seu material de treinamento e se concentrariam no trabalho atlético dentro do ginásio. Depois do treino, deixariam suas roupas e seus tênis em seus armários, tomariam banho e se preparariam para voltar no dia seguinte".

Já em seu lar adotivo, o Reino Unido, as soluções não são tão simples. O que mais frustra Deng é que o país conte com tamanho talento afro caribenho e urbano desperdiçado. Países europeus como a Espanha e a Sérvia, que não contam com essa vantagem, superam os britânicos regularmente em quadra.

QUESTÃO DE CARINHO

Não é como se nossa obsessão com o futebol tivesse dado resultado. A Euro 2012 provou uma vez mais que nossos jogadores de elite sofrem de uma embaraçosa falta de talento. Assim, por que o basquete não vem se destacando? A questão é de dinheiro ou organização?

"Creio que seja uma questão de carinho", diz Deng. "Seria possível obter mais verbas e organizar melhor o esporte se as pessoas tivessem mais carinho, mas acho que isso falta. Há o futebol, e depois o rúgbi, e depois o críquete. Quando meninos, muitos britânicos jogam basquete, mas em certa idade eles param de jogar, param de se interessar ou saem do país".

O quadro é desanimador, mas Deng ignora o lado negativo. A esperança dele é que um bom desempenho olímpico propicie o estímulo de que o basquete britânico tanto precisa. A seleção tem chance?

"Honestamente", diz, "eu não sei. Sei que nos sairemos bem. Não duvido disso. Não sei dizer quão bem. Mas aposto em nós contra qualquer adversário".

Se o Reino Unido superar as expectativas e conquistar uma medalha, seria gratificante ser enfim reconhecido em casa?

"Não", ele responde com firmeza. "Não jogo pelo reconhecimento. Aqui no Reino Unido quero que o basquete melhore. Quero que os garotos tenham mais quadras. Quero que as crianças recebam mais atenção. Quero ver basquete na TV com mais frequência. Mas não me importo com ser reconhecido ao andar na rua. Só sei que, quando visto a camisa britânica, é algo que me dá muito orgulho".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

 

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