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05/08/2012 - 08h00

Leão com Leão - Parte 2

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ANTONIA PELLEGRINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Filho de um influente crítico de arte, inteligente e disciplinado, ainda jovem o meu ex-marido se estabeleceu como o crítico e curador independente mais amado pela classe sem pelos no nariz nem hora para acordar --os artistas plásticos.

Equilibrávamos concentração com dissolução no virote às sextas-feiras, gastação de fígado e verbo, autojogação na lama, segundo nossa paródia dos clichês intelectuais: "Para extrair alternativas possíveis à experiência pós-utópica contemporânea e, nesta medida, dotar o fragmentado de sentido" e blá blá blá, e tome taturana, Walter Benjamin, Pipilotti Rist, até o trafica, que também tem direito a uma vida, não atender mais.

Aí, negão, era aquele constrangimento ao encontrar o porteiro, banho quente, Rivotril, abrir os olhos à noite sem saber se encomenda o caixão ou o Disk Cook.

Eu amava o modo como o Pedro cortava ao meio o canudo e desenhava as nossas iniciais com caneta-tinteiro preta na ponta de cada um, para nos proteger do contágio em narinas alheias.

Admirava como ele circunvagava o prato na boca acesa do fogão, abria o papelote, espalhava generoso volume sobre a superfície ressequida, sedenta de umidade, para esfarelá-lo com rigor e assim ganhar a geometria da linha.

Sob o olhar dele, eu aspirava de uma só vez, mobilizando brônquios, alvéolos e diafragma, jogando a cabeça para trás num gesto selvagem e estudado. Nos olhávamos, ele checava meu nariz e só então mandava ver.

No peito, os corações escoiceavam. Éramos Arthur e Marilyn, Scott e Zelda, Lou e Laurie, versão genérica e vagabunda. Dois doidos, dois cúmplices, dois frágeis.

Há uma qualidade do árido no pó, que exacerba o ego, resseca a boca e o desejo. Muita falação, pouca comunicação e nenhuma felação. E, quanto mais frequentes as farras, maiores as doses, mais vertiginosas as ressacas.

Eu já não fazia a mocinha, os 30 anos haviam riscado o meu corpo, a minha ferramenta de trabalho. Acostumada a sustentar uma prosa aditivada madrugada adentro, me vi aumentando intervalos entre um teco e outro, aguando uísques.

O cartão Flying Blue foi passado às minhas mãos, que, sem tanto método, transmutavam o padê em tiro, enquanto o Pedro seguia no front. Embora eu fosse atriz, minha formação teatral garantia-me outros assuntos além da minha pessoa, mas não havia repertório que sustentasse a estiva daquelas baladas, verdadeiras jornadas de trabalho árduo.

Tornei-me adepta do teco medicinal, a única rebatida saudável quando se está de cara cheia, e do táxi pontual. De rainha louca passei a coadjuvante na plateia, cada vez maior, de jovens artistas embevecidos pelos caminhos do raciocínio estético do meu marido. Embora eu fosse socialmente avalizada para a egolatria, o estardalhaço ingênuo e superficial de um ator não roça nem os calcanhares do projeto de reconhecimento e poder de um intelectual.

Enquanto eu bocejava diante daquele mito vivo, só crescia o quórum de jovens pintoras, escultoras e instaladoras, todas interessantérrimas, ávidas por serem mencionadas em suas críticas.

Eu já havia sido mijada diariamente em uma encenação no presídio, tinha conduzido o automóvel na fuga do sequestro do embaixador, fora empurrada de um penhasco por uma mão oculta que engendrara um "quem matou?" ao meu redor.

Precisava de realidade e o Pedro começava a falar, na terceira pessoa, sobre "a geração do Pedro". Na quarta joalheria aonde fui orçar novas alianças para comemorar o nosso quinto ano de casamento, chorei.

Ainda tentei o velho "vamos ter um filho", mas ouvi que "a minha abertura foi genial, a minha galeria vai levar a minha exposição a Berlim, meus agenciamentos estão se expandindo lá fora, não sei se é hora de...".

Talvez os casais comecem a se separar quando resolvem ficar juntos. As mãos que tocam aquele corpo nunca deixam de sonhar o mundo. No tempo, o impalpável vira lamento, um canto doce e sedutor aos ouvidos cada vez menos dispostos a escutar o que lhe diz o outro.

Eu queria fixar este átimo extraordinário, a partir do qual nada do que veio antes (ou seguirá depois) continua sendo o mesmo.

Olhar o fotograma que revela o momento em que o cupim, cego na escuridão da terra, encontra o solo e, sobre ele, o assoalho de madeira da casa; quando os olhos se fecham e o sujeito adormece com o cigarro aceso esquecido entre os dedos; o instante em que eu comecei a não fazer mais o Pedro feliz.

Na cama da minha mãe, onde fui morar depois de deixar a nossa casa, me sentia em um cenário surrealista. Debaixo daquelas cobertas, eu amputava o que em mim havia de melhor.

Fiz dos remédios e das mãos cuidadosas dos parentes as minhas maiores companhias. Já conseguia chorar baixinho quando vi brilhando no computador a mensagem falando em saudades.

Falando que ele tinha conversado com seus "verdadeiros amigos", e o que estava acontecendo, achava ele, "era uma espécie de 'ultimate fighting' com um inimigo que já cruzou o meu caminho outras vezes, causando dor e destruição: a Metafísica do Grande Gozo. É um inimigo ardiloso, porque, na verdade, ele não existe. Quando você paga pra ver, descobre que é feito de ilusão --mas aí já pagou caro demais".

Era confortável imaginar que eu havia sido trocada por uma fantasia, não por alguém. Era fácil acreditar que todos nós, em algum momento, temos contas a acertar com o que não existe, e ele não poderia entrar num ciclo novo de vida comigo sem zerar as pendências com o que não havia. Era feliz a ideia de que talvez não fosse o fim, só um período turbulento, integrado à relação.

Por mais tentador e bem embalado que fosse o discurso, a boca que o dizia vinha abaixo de um par de olhos esgazeados, o retrato de um homem dividido cujo quinto ato não se esgotara, estava apenas começando.

Se algum dia eu quisesse refazer meu casamento, era hora de sair de cena. Quando ele viajou para uma feira de arte no Sul, tirei tudo de casa.

Dali em diante, desapareci. São Paulo pra mim, balada pra ele. Fui finalista de um prêmio prestigioso, fechei um contrato com uma emissora de TV que me ajudaria quitar a casa própria e me colocava para trabalhar, mas, durante aqueles meses, raro o dia que não fosse feito afogamento.

No entanto, as brigas constantes, por SMS, e-mail e telefone, me faziam oscilar entre a dor, a raiva e, por fim, o ódio. E assim o fio cada vez mais tênue que nos ligava seguia firme.

-- Nunca imaginei que separar fosse um jeito de ficar ainda mais junto -- disse ele.

-- Será que a gente vai se perder de vez?

-- A gente nunca se perdeu. Em intensidade, os últimos seis meses valeram por dois anos.

-- Então, na soma, a gente tá junto há sete anos?

-- Se entrar na conta que a gente dormiu abraçados todas as noites desde que a gente se conheceu, acho que os cinco anos de relação viram oito.

-- Dez anos, e fôlego pra muito mais...

-- Pipa. Você tá dizendo que a gente vai voltar?

O presente exigia os cuidados dedicados a um recém-nascido, enquanto em mim, as duas forças da profundidade se enfrentavam feito o dia e a noite.

-- Pipa, você sabe que tá errando, né.

-- Cala a boca, Shiva -- eu disse.

Estávamos naquele clima de antessala de festa na varanda do apartamento de um amigo, com a praia do Leblon aos pés.

-- Você pega mulher hétero, mulher gay, homem hétero e casal. Tem mercado pra caralho. O seu único ramo inexplorado é dos homens gays.

-- Digamos que não tenho ramo inexplorado. Tô apostando todas as minhas fichas nesse recomeço.

-- Aposta duas -- calculou a Jana.

-- Não bota pilha errada. Eu amo o casal e quero ter um filho com eles. Volta sim, amor, vocês têm loucura juntos e sem isso não existe casamento -- sentenciou a Carola, cuja relação mais longa durou seis meses.

-- Dá pra gente não decidir isso agora? Vira o drinque que o Namíbia já tá tocando.

-- Meu look tá uau?

-- Uau.

-- E o flash de calcinha quando levanto os braços?

-- Topo da cadeia alimentar. É isso: depois dos 30, ou a gente é magra ou é feliz.

Aí não chega ninguém, não chega ninguém, o povo chega todo junto, nosso núcleo abre a pista, a luz abaixa e o som aumenta. Comunicação corporal e fim de papo.

Refil da vodca cranberry, a gata amiga de uma amiga diz que me beijaria agora, então beijo, a luz da cozinha acende, saio do beijo bom, vejo o namorado dela olhando sem saco, ela vai falar com ele, espero que não role baixo astral, apago a luz da cozinha, ganho a sala.

Gatinho 3 me cata feito namorado, falando: "Água, tá dando pra ver a sua bunda, vem no meu quarto que eu vou mudar seu look", respondo NÃO, abocanho uma ameixa. A Jana avisa ao Gatinho 3 que eu não vou namorar com ele nem com ninguém porque voltei com o meu ex-marido.

Retoco o batom, retoco a dedada no saquinho de pedra translúcida acre aflitiva que dá buena onda, agita o coração e faz sorrir. Maxilar travado, quadril liberado, aumenta o som, uhuuh é lindo, a gente fica físico, fica doce, sente a pele roçar o oxigênio e isso é erótico.

Quem não tiver quem pegar que arrume. Inspira-expira, de olhos fechados amarra-se o ego no rabo de cavalo e entende-se por dentro a expressão bombar na pista. "Nossa, como você tá gata", "isso porque você ainda não me viu fodendo."

-- Vambora vambora essa festa micou. Agora é lá em casa.

Partiu pra casa da Shiva. Achei por bem mandar uma mensagem convidando o Pedro.

-- Mas o Pedro é jaira?

-- Ô. Ele só precisa entender que, assim como é indiscutível a superioridade do sexo com amor sobre as outras formas de sexo, também é indiscutível a supremacia do MDMA sobre a cocaína.

Da última vez, a Shiva bateu o carro no portão da própria garagem, então assumi o volante. O Pedro nos encontrou na porta da festa. Camiseta preta velha tigrada, calça jeans. Meu gato selvagem.

A Jana entrou no bagageiro da picape, a Carola se enfiou na cadeirinha de criança, a Shiva no banco de trás e o Pedro no carona, do meu lado.

No caminho, eu olhava nos olhos dele e colocava sua mão esquerda no meu peito. Eu estava com o diabo no corpo, mas o meu coração era daquele homem.

Na casa da Shiva, só chega neguinho trabalhado na "playlist" perigosa, na boca vermelha e no MD. A boca dos homens que não usam batom, a gente borra. Cheiro de sândalo, som na caixa, luz vermelha, luz azul, cortina fechada. As meninas dançando juntas.

Carola já não é mais menina: acendeu o primeiro cigarro e esfrega o pau duro contra a coxa das garotas ou a bunda dos rapazes. Shiva surge de braços abertos, com o famoso sutiã estruturado da puta russa. Acendo o beque numa vela, a chama come a erva e o meu cabelo.

Pedro estapeia o incêndio e eu só acredito que aquilo aconteceu por causa do cheiro. Ele ri de leve, me abraça, diz que eu preciso tomar cuidado. Vou tomar um drinque. Passo pelo Gatinho 3 que, na varanda, dá aula de boquete usando o próprio pau como material didático. O Pedro assume o iPod, tira "Continental Lover", OST & Kjex para colocar Madonna. Sou contra, Madonna é muito óbvio, mas a pista enche. Povo mainstream do caralho. Quando acaba a ginástica, lanço o velho "Dream Machine", Mark Farina, idos de 2003 --música para rebolar, afinal, nosso objetivo.

O Pedro sacando. Embora letrado, ele é muito literal. Vê quatro gostosas meio piranhas meio loucas e tem certeza de que vai rolar sexo.

Ele se aproxima numa coreô helicóptera, aquilo me aflige, eu digo "menos", "menos não. Não de você". Ah é? A Jana e suas pernas, que batem nos meus peitos, estão dançando num salto altíssimo e microssaia preta. O meu vestido reto e fechado é mais curto que o dela, me aproximo. Pedro-cão em frente ao frango de padaria.

Pego nas costas dela, aproximando nossos corpos magros. As bocas borradas de vermelho, nosso clichê. Eu digo a ela que beije-o também, mas ela entende tudo , e nada. Subo na mesa. Toca a faixa sexy-brejeira do Almaz, "Cirandar", e passo as mãos pelas pernas, levanto a saia que não tem mais para onde subir, revelando as coxas que todo mundo ali já está cansado de ver.

As meninas e Gatinho 3 na plateia. Alguém aumenta o som. Viro de costas, revelando a calcinha pink hanky panky. O Pedro sentado no sofá, meio me olhando e meio conversando com Gatinho 3.

Giro rebolativa, olhar baixo, sacando que ninguém mais conversa, só o Pedro. Porra, eu não sou uma stripper da boate Cicciolina. Vou até o ouvido dele e sussurro "se não tá gostando, vaza". Ele levanta e vai.

Fade out.

De volta à cama, ao remedinho, à merda. Quando você é vítima da loucura do outro, é ruim mas é bom, quando você e o outro são vítimas da sua própria loucura é uma bosta.

Um, dois, três dias. No quarto, apita uma mensagem de texto dele dizendo: "Vc não vale nada mas sou louco por vc".

A profundidade só tem dois registros: a intimidade e a dissolução.

-- Vamos ver o Gatinho 3 comer a Shiva.

-- Ele tem pau fino.

-- Quem falou?

-- Ele mostrou outro dia. Você não viu?

-- Se fosse ruim a Shiva não tava pegando.

-- Ele tomou Viagra pra ficar com ela.

-- Ele tem medo de mulher que nem ela.

-- Só a gente não tem medo da Shiva. Porque a gente é tipo ela. Toda ser.

-- O Pedro não tem medo da gente né, Pedro? Beija o Pedro, vai, Jana. Ele precisa cheirar outras mulheres, cheira elas, Pedro.

-- Ai, que beijo bom que o seu marido tem...

-- Ex-marido, agora ele é meu namorado.

-- Até quando, meu amor?

-- Até a gente cansar. A gente sempre acaba cansando. Só não cansa um do outro. Eu vou lá ver se o Viagra tá funcionando.

-- Não esquece de voltar e contar pra gente.

-- Tá. Beija o Pedro, Carola, mas não muito. Só um pouco, porque ele é o amor da minha vida.

-- Huuummmmmmmmm.

-- Galera, vem que o Viagra tá funcionando.

-- Nave-mãe se movendo em direção ao quarto.

-- Nem gosto tanto assim do Gatinho 3 pra ficar no mesmo quarto que ele de pau fino de fora. Vai que eu acabo pelada? Bota "The XX" de novo, vai.

-- De novo, Jana?

-- Ótimo. Mas bota aquela do "sometimes I still need you" que eu vou dançar pro Pedro, vou jogar amor, muito amor pra você. E, enquanto eu estou aqui, em cima da mesa, já que você vai ficar por aqui, beija ele, Jana.

 

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