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21/09/2012 - 15h28

Woody Allen não se importa com críticas, mas ainda se preocupa com a morte

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OLIVER BURKEMAN
DO "GUARDIAN"

"Você equaciona a aposentadoria com a morte", o personagem de Woody Allen escuta de sua mulher, que é psiquiatra, nos primeiros minutos da nova comédia do diretor, "Para Roma, com Amor".

A fala é um autodiagnóstico evidente por parte de Allen. Em dezembro ele completará 77 anos --ou seja, muito além do momento em que "a morte passa a fazer parte de nossos cálculos temporais básicos", como ele diz--, e hoje ele está em sua suíte de edição em Park Lane, Manhattan, trajando calças e camisa cáqui e esforçando-se para manter a morte à distância.

Remo Casilli - 8.ago.11/Reuters
O ator italiano Roberto Benigni e o diretor Woody Allen durante as filmagens de "Para Roma, Com Amor"
O ator italiano Roberto Benigni e o diretor Woody Allen durante as filmagens de "Para Roma, Com Amor"

Em uma ou duas semanas ele vai terminar de rodar seu filme de 2013, que ainda não tem título; em seguida, enquanto o edita, vai começar a estudar ideias para o filme de 2014, debruçando-se sobre as folhas de papel em que anota ideias avulsas e que guarda numa gaveta.

Lá fora, o ar de Nova York está opressivamente úmido, mas, graças a ar condicionado e uma ausência total de janelas, o espaço de trabalho de Woody Allen é uma caverna fresca ("tenho um desejo intenso de retornar ao útero --de qualquer pessoa", ele disse à "Time" certa vez).

Woody Allen se destaca contra o tapete escuro, paredes escuras e móveis escuros --uma presença pequena, bege e laboriosa.

Uma ideia equivocada que é comum até hoje é que o Woody Allen real deve ser mais ou menos como é sua persona no cinema: insignificante, aflito, hipocondríaco, atormentado por terrores existenciais e vítima de ansiedade tão intensa que quase o paralisa. Mas é claro que aquele Woody Allen nunca teria sido capaz de escrever e dirigir pelo menos um longa-metragem por ano, como ele vem fazendo, com apenas duas exceções, desde 1966.

O Woody Allen que não está nas telas exala determinação focada; ele é cautelosamente amistoso e, hoje em dia, está um pouco surdo. Mas a parte da hipocondria é bem real, assim como a preocupação constante. O filme que ele está concluindo agora --um "drama sério" que acontece em São Francisco e é estrelado por Cate Blanchett-- está se revelando uma decepção, diz ele. Mas é sempre assim.

"Tenho uma ideia para uma história e penso comigo mesmo, 'meu Deus, isto é uma combinação de Eugene O'Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller'. Mas isso é porque quando você está escrevendo, não precisa enfrentar a prova da realidade. Você está em sua casa e a história está em sua cabeça. Agora, quando está quase pronto e eu vejo o que tenho, começo a pensar: 'O que eu fiz? Isto daqui vai ser um constrangimento. Será que consigo salvar?'. Todas suas ideias grandiosas voam pela janela. Você percebe que criou uma catástrofe e pensa: 'E se eu começar pela última cena, tirar este personagem, incluir narração? E se eu rodar mais uma cena para que ao invés de deixar a mulher, ele a mate?'."

A impressão é que essas saraivadas de autocrítica não são falsa modéstia nem medo real, mas outra coisa: as reflexões de um veterano que há muito tempo já aceitou o fato de que seu processo criativo sempre será um longo declive conduzindo à desilusão.

Woody Allen revela que nove vezes em dez, quando sai da sala de projeção depois de assistir à primeira versão do filme, ainda sem a edição final, "o sentimento é 'ok, não entre em pânico'. Nos outros 10% do tempo, 'ok, não ficou tão ruim quanto eu estava imaginando'".

FUNÇÃO TERAPÊUTICA

Não é preciso passar por 37 anos de psicanálise, como Allen vem fazendo, para perceber que essa atividade toda cumpre uma função terapêutica. E, de vez em quando, ela produz uma joia. "Meia-Noite em Paris", do ano passado, foi o melhor filme de Woody Allen em anos: uma fantasia de puro entretenimento em que Owen Wilson faz um roteirista de Hollywood em férias na França que, através de um Peugeot que faz viagens no tempo, é transportado para a Paris dos anos 1920, onde recebe conselhos amorosos de Ernest Hemingway e dicas editoriais de Gertrude Stein.

Para o personagem de Wilson, que enxerga essa era envolta numa aura de romantismo, é um sonho realizado --mas os parisienses dos anos 1920 também são nostálgicos, no caso deles, da década de 1890. Esse é o problema de ansiar pelo passado, diz Allen: ansiamos por ele porque é o passado.

O filme teve a maior bilheteria norte-americana de qualquer obra de Allen até hoje, superando "Hannah e Suas Irmãs". Mesmo os franceses o apreciaram, diferindo da sorte dos filmes europeus mais recentes do diretor: a crítica britânica recebeu "Match Point" com frieza, enquanto a espanhola odiou "Vicky Cristina Barcelona". Mas a verdade é que Woody Allen sempre foi adorado pelos franceses, que, conforme ele mesmo disse certa vez, cometem dois enganos a seu respeito: "Porque uso estes óculos, pensam que sou intelectual, e, porque meus filmes perdem dinheiro, pensam que sou artista".

Divulgação
Woody Allen com Judy Davis (esq.) e Alison Pill, que vivem sua mulher e sua filha em "Para Roma, Com Amor"
Woody Allen com Judy Davis (esq.) e Alison Pill, que vivem sua mulher e sua filha em "Para Roma, Com Amor"

Lamentavelmente, "Para Roma, Com Amor" encarna o outro resultado da abordagem itinerante de Allen. Percorrendo um roteiro turístico batido na capital italiana (a Fontana di Trevi, a Escadaria Espanhola), o filme narra quatro histórias que não se cruzam, de modo que seus astros mais atraentes --Alec Baldwin, Penelope Cruz, Roberto Benigni e o próprio Allen, aparecendo em um de seus filmes pela primeira vez desde "Scoop - O Grande Furo", de 2006-- nunca chegam a interagir.

Benigni, por exemplo, faz um funcionário de escritório romano que sai de casa certa manhã e, inexplicavelmente, é perseguido por paparazzi; as cenas mais engraçadas envolvem Allen, no papel de um diretor aposentado de ópera, descobrindo que o pai do noivo italiano de sua filha canta como um tenor de primeiro nível, mas apenas no chuveiro.

Segue-se um tour de teatros de ópera, com destaque para um chuveiro sobre o palco. Mas as histórias parecem não ir a lugar algum. Como escreveu Christopher Orr na revista americana "The Atlantic", "é como se Woody Allen tivesse um punhado de ideias iniciais, não tivesse conseguido se decidir por nenhuma delas, tivesse visto a contagem regressiva psicológica chegando perto da marca de um ano e então resolvido juntar todas as ideias que tinha". Cada vez mais, escreve Orr, a programação de um filme por ano "parece ser menos uma opção e mais uma compulsão". Depois de um encontro com o diretor, torna-se difícil discordar.

VERDADE CURIOSA

Considerando que o filme se declara uma carta de amor a Roma, incomodou Allen o fato de a crítica italiana afirmar que "Para Roma..." mostra a capital italiana segundo o olhar de um "outsider" --e um "outsider" que é uma celebridade mimada, que só conhece os hotéis cinco estrelas da cidade? "Minha experiência vem sendo que, com uma exceção ('Meia-Noite em Paris'), quando faço um filme num país estrangeiro, a plateia mais difícil para mim é a desse país", diz Allen.

"Na Itália, disseram 'esse cara não entende a Itália'. E não tenho o que argumentar em contrário. Sou americano, e é assim que vejo Barcelona, Roma ou a Inglaterra. Se a situação fosse inversa, e alguém de outro país fizesse um filme aqui, é bem possível que eu estivesse dizendo 'sim, o filme é ok, mas este cara não entende Nova York realmente'. E eu teria razão. Assim como tenho certeza que eles têm razão."

É uma verdade curiosa, porém, como observa Allen, que seus filmes --até mesmo os clássicos nova-iorquinos, sobretudo "Manhattan", que Allen protagonizou ao lado de Diane Keaton em 1977-- sempre apresentaram visões de outsider, até certo ponto.

Nascido no Brooklyn em 1935 com o nome Allan Stewart Konigsberg, filho de um joalheiro e uma funcionária de delicatessen, Woody Allen diz: "Minha visão de Manhattan veio em grande medida dos filmes de Hollywood. Onde eu cresci, não tínhamos apartamentos sofisticados de cobertura. Ninguém tomava Martini ou champanhe, ninguém tinha telefone branco. Essas coisas eu só via em filmes de Hollywood."

Talvez pelo fato de hoje em dia Woody Allen ser uma celebridade mimada --"tudo é feito para você por serviçais", ele diz, aludindo ao processo de fazer cinema--, a celebridade é o único tema no qual "Para Roma, Com Amor" passa uma impressão autêntica e pessoal.

Ele já tratou disso em "Celebridades", de 1998, é claro, mas no novo filme parece estar muito mais resignado à vida sob os holofotes. Quando a fama do personagem de Robert Benigni se evapora tão rapidamente quanto chegou, o personagem sente falta dela. A mensagem de Woody Allen --que, para os espectadores que não são seus fãs, com certeza parecerá um pouco arrogante-- é que a riqueza e a fama são divertidas.

"Há um monte de vantagens que você tem pelo fato de ser uma celebridade", ele diz. "Os tabloides, os percalços no caminho, vão e vêm. A maioria das pessoas não tem um percalço tão grande quanto o que eu tive, mas mesmo o grande percalço não é algo que coloque sua vida em risco. Não é como se o médico dissesse 'olhei estas radiografias do seu cérebro e vi uma coisinha crescendo ali'. Os tabloides podem ser administrados. O que eu não quero mesmo é que a radiografia mostre uma sombra em meu pulmão."

SOON-YI

O percalço ao qual ele se refere é o escândalo que, para algumas pessoas, lança uma sombra sobre todas suas realizações anteriores e posteriores: sua separação de Mia Farrow em 1972, depois de ela ter descoberto fotos que ele tinha feito da filha adotiva de Farrow, Soon-Yi Previn, então com 20 anos, nua.

Subsequentemente, Allen se casou com Soon-Yi. Seguiu-se uma batalha longa e acrimoniosa pela guarda dos três filhos de Farrow e Allen, batalha que o diretor perdeu (ele nunca foi o pai legal de Soon-Yi). Duas décadas mais tarde, não há muito mais o que dizer sobre o assunto.

Ou você toma o partido de Mia Farrow --"feliz Dia dos Pais, ou, como dizemos em minha família, feliz Dia do Cunhado", Ronan Farrow, filho de Woody Allen, que não fala com o pai, tuitou este ano. Ou você acredita no argumento de Soon-Yi de que Woody Allen "nunca foi qualquer tipo de figura paterna para mim", caso no qual a união deles não passa de mais um casamento entre pessoas de idades muito diferentes no mundo do cinema.

Ao que consta, a união de Allen e Soon-Yi é tranquila; eles têm dois filhos adotivos, de 12 e 14 anos. (Woody Allen diz que Soon-Yi não assistiu à maioria de seus primeiros filmes; não está claro se por falta de interesse ou por uma aversão a explorar os romances anteriores de seu marido.)

Pergunto se o incomoda o fato de que, para uma minoria considerável de sua plateia, ainda é o escândalo o que o define. "Acho que isso é verdade", ele responde, pensativo. "O fato de eu ter sido protagonista de um escândalo realmente cabeludo sempre fará parte do que as pessoas pensam quando pensam em mim. Isso não me incomoda. Não me agrada. É uma coisa que não vem ao caso, mas que é fato."

ENVELHECER

O que o angustia infinitamente mais --e isso não será surpresa para ninguém-- é o envelhecimento. Em certo sentido, não há nada de novo nisso: Woody Allen vem se confrontando com o horror da mortalidade desde que tinha 5 anos, afirma. Ou seja, quando escreveu o papel do obcecado com a morte Alvy Singer de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", em 1977, ele já tinha passado 37 anos se preocupando.

Dave Allocca - 16.mar.05/Reuters
Woody Allen e sua mulher Soon-Yi chegam à premiere do filme "Melinda e Melinda", em 2005
Woody Allen e sua mulher Soon-Yi chegam à premiere do filme "Melinda e Melinda", em 2005

Agora, porém, que está de fato ficando mais velho, ele encontra satisfação sombria em ter sua tese confirmada: "[Envelhecer] é um mau negócio. É a confirmação de que as ansiedades e os terrores que tive em toda minha vida tinham razão de ser. Não existe vantagem em envelhecer. Você não fica mais sábio, não fica mais tolerante, não enxerga a vida sob uma ótica mais feliz. Você tem que combater a decadência do corpo e passa a ter menos opções."

Em 46 anos como diretor, Woody Allen não mudou de ideia. Para ele, só existe uma resposta: assistir a um jogo de basquete, tocar clarinete. "A única coisa que você pode fazer é o que fazia quando tinha 20 anos --ou seja, se distrair. Envolver-me num filme ocupa toda minha ansiedade: será que escrevi uma cena boa para Cate Blanchett? Se eu não estivesse concentrado nisso, estaria pensando em questões mais amplas. Essas questões são insolúveis. É xeque-mate, não importa a direção em que você vá."

Além disso, ele acrescenta, debruçando-se para frente: "Se você é celebridade, pode conseguir atendimento médico bom. Eu posso ser atendido por um médico no fim de semana. Recebo os resultados de minhas biópsias em pouco tempo."

Allen não pensa em parar de fazer cinema, nunca. "Mas essa decisão pode ser tirada de minhas mãos de várias maneiras sinistras." São maneiras relacionadas à saúde, mas também ao dinheiro: a verdadeira razão da recente turnê cinematográfica de Allen por várias capitais europeus foi o fato de financiadores britânicos, espanhóis e italianos terem se apresentado, sendo que estúdios americanos não o têm feito.

"Poderíamos pensar que depois de um sucesso como 'Meia-Noite em Paris' --que rendeu muito dinheiro, não pelos padrões de 'Cavaleiro das Trevas', mas pelos meus--, haveria algumas empresas que iam querer fazer um filme comigo. Mas não recebo uma única oferta. Nem uma sequer. Até que uma empresa italiana com quem eu vinha tratando há anos se dispôs a bancar um filme." Soon-Yi, ele diz, "me vem pedindo sem parar" para viajar ao sudeste da Ásia; Allen diz que faria um filme em qualquer lugar, desde que pudesse encontrar a ideia certa.

Ele afirma, como já disse muitas vezes antes, que nunca fez um "grande" filme, se bem que isso não parece mais preocupá-lo. "Só estou tentando ser objetivo e honesto", ele diz. "Se você estivesse organizando um festival com dez filmes e exibisse 'Cidadão Kane' na segunda, 'Rashomon' na terça, 'Ladrão de Bicicletas', 'O Sétimo Selo', acho que nada que eu já fiz poderia ser incluído num festival com esses filmes, sem fazer feio."

Ele diz que, se está se exercitando na esteira e "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ou "Um Assaltante Bem Trapalhão" estão passando na televisão, ele muda de canal imediatamente; o mesmo se aplica até a seus favoritos pessoais, "A Rosa Púrpura do Cairo" e "Maridos e Esposas". "Se eu parasse para assistir, provavelmente pensaria 'meu Deus, será que posso recomprar esse negócio?'."

De vez em quanto algum crítico exasperado pede que Woody Allen se aposente, como se fosse uma ofensa contra o cinema continuar a fazer filmes que, como um todo, não se equiparam a seus triunfos anteriores. Mas esses críticos não entendem a motivação do diretor. "Fazer filmes é uma maneira muito agradável de ganhar a vida", ele diz.

"Você trabalha com belas mulheres e homens charmosos, pessoas divertidas e talentosas; trabalha com diretores de arte, figurinistas. Viaja para vários lugares e ganha dinheiro. É uma vida boa." E é uma maneira perfeita de ter sua atenção desviada do abismo. Desde que você tenha os meios para continuar, por que parar?

Tradução de CLARA ALLAIN.

 

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