Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
01/11/2012 - 16h02

Ousada, Voyager continua exploração rumo às estrelas

Publicidade

DALLAS CAMPBELL
CHRISTOPHER RILEY
DO "OBSERVER"

O ano de 1977 foi importante para a música. Foram lançados "Rumours", do Fleetwood Mac, e "Never Mind the Bollocks", do Sex Pistols. Elvis deixou o recinto pela última vez, morrendo com apenas 42 anos de idade. Mas, em meio a tantos fatos históricos para o rock'n'roll, outro álbum menos celebrado, mas bem mais significativo, estava discretamente sendo gravado.

Prensado em cobre em vez de vinil, e banhado a ouro para ter mais longevidade, "The Sounds of Earth" ("os sons da Terra") foi compilado pelo astrônomo americano Carl Sagan. Tinha uma variedade musical mais ampla do que a maioria dos outros álbuns lançados naquele ano, com o objetivo de sintetizar 5.000 anos de cultura humana --de uma canção aborígene australiana a Chuck Berry, passando por um raga indiano, gaitas de fole azeris, flautas de bambu, Bach e Beethoven.

BBC
Lançadas em 1977, sondas estão a mais de 14 bilhões de quilômetros da Terra, perto do limite do Sistema Solar
Lançadas em 1977, sondas estão a mais de 14 bilhões de quilômetros da Terra, perto do limite do Sistema Solar

Como qualquer coletânea, cada faixa foi cuidadosamente escolhida, e o mérito da sua inclusão foi ardentemente debatido. Mas, ao contrário da maioria dos outros discos, apenas duas cópias foram feitas. Elas foram colocadas dentro de capas de LP feitas de alumínio, com ilustrações que buscavam indicar de forma "clara", pictórica e universalmente inteligível do que se tratava e quais eram as instruções para tocar o disco.

Uma agulha de vitrola também foi incluída, para ajudar eventuais criaturas que toparem com aquilo no futuro a tocar a música e outras gravações. Numa cena que não estaria deslocada no recente "Prometheus", de Ridley Scott, os discos foram cuidadosamente aparafusados no lado de fora das duas sondas Voyager pelos últimos humanos a tocarem neles.

Os discos ficam sobre uma das dez faces de cada chassi, sobre o qual repousa uma parabólica de 3,7 metros de diâmetro, que domina a estrutura. "Membros" e antenas se projetam das sondas, como em insetos. Os geradores termoelétricos de radioisótopos, que alimentam as Voyagers nos mais escuros confins do Sistema Solar, se estendem a partir de um lado, logo abaixo da haste do magnetômetro, uma espécie de tromba com 13 metros de comprimento. Do outro lado da sonda, mais um amplo braço se destaca. Ele carrega os "olhos" da Voyager --câmeras, espectrômetros, detectores de partículas e outros equipamentos.

O desafio para o Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da Nasa, que projetou e fabricou as Voyagers, foi construir uma sonda capaz de sobreviver por muitos anos no espaço. No começo da década de 1970, quando a equipe do JPL iniciou o projeto, o grupo nunca havia feito uma nave apta para mais do que alguns meses de viagem interplanetária. Foi um grande salto criar algo que atingisse os planetas mais distantes do Sistema Solar, e talvez ir além.

"Naquela época, isso era um pensamento alucinante", diz John Casani, engenheiro de sistemas da Voyager. "Como construir uma espaçonave que possa sobreviver a falhas e continuar funcionando do jeito que der. Achávamos que conseguiríamos. Ninguém mais conseguiu!"

Seguiu-se meia década de labuta e de testes para criar uma sonda que estivesse à altura da tarefa. Quando ela estava quase concluída, Casani decidiu realizar algo ímpar, para celebrar os sacrifícios feitos pelos mais de 2.000 integrantes da equipe de engenharia e por suas famílias. Durante uma festa para celebrar o final da fase de projeto da nave, ele convidou todos a assinarem seus nomes em grandes folhas de papel.

Ele então encomendou reproduções reduzidas em seis plaquinhas metálicas, ainda grandes o suficiente para que os nomes pudessem ser lidos. Elas foram então costuradas aos cobertores térmicos que ficam dentro do chassi principal, como homenagem àqueles cujo engenho, habilidade e apoio tornaram possíveis essas máquinas inigualáveis.

Com esses autógrafos e com os discos dourados a bordo, as sondas gêmeas foram lançadas do Cabo Canaveral no final do verão boreal de 1977, e colocadas numa trajetória de "grand tour" que permitiu sobrevoos breves, mas históricos, em Júpiter e suas luas, e depois em Saturno e seus anéis. Desviada para Titã, uma lua de Saturno, a Voyager 1 seguiria para fora do plano do Sistema Solar, na direção da constelação setentrional de Camelopardalis.

Já a Voyager 2 rumaria para um encontro com Urano em 1986 e Netuno em 1989, o que iria acelerá-la a mais de 80 mil km/h, atirando a sonda na direção da estrela mais brilhante do nosso firmamento --Sirius.

No decorrer dessa jornada pelos planetas gigantes, a sonda devolveu mais de 67 mil fotos --entre elas as magníficas imagens de mundos com os quais nem sonhávamos. Como disse o cientista-chefe da Voyager, Ed Stone, quando do sobrevoo por Saturno: "Nossas imaginações não chegavam nem perto do que a natureza oferecia". As imagens desafiaram nossa compreensão sobre a meteorologia e a geologia --redefinindo nosso entendimento sobre o Sistema Solar e sobre a ciência planetária como disciplina.

BBC
Sondas lançadas em 1977 atravessam 'mar magnético' no espaço para sair do Sistema Solar
Sondas lançadas em 1977 atravessam 'mar magnético' no espaço para sair do Sistema Solar

Antes da Voyager, esses eram lugares que só conhecíamos como embaçados pontinhos de luz vistos através de telescópios na Terra. Essas duas sondas no mais grandioso dos "grand tours" nos ensinaram mais sobre o Sistema Solar exterior nos últimos 35 anos do que todo o conhecimento acumulado na história humana. Essa foi, e ainda é, a maior viagem de descoberta da humanidade. Mas talvez seja apropriado que a imagem final capturada pela Voyager, a imagem pela qual a missão é mais lembrada, seja de nós mesmos.

Em fevereiro de 1990, a Voyager 1 foi instruída a voltar suas câmeras para trás e registrar um último retrato de família do máximo de planetas que fosse possível, vistos de forma irrepetível a 6 bilhões de quilômetros acima do Sistema Solar. A equipe de captura de imagens sabia que, dessa distância, cada planeta ocuparia menos de um pixel.

Seria a imagem mais distante já feita do nosso lar, capturando-nos como uma só mancha --um ponto quase invisível no oceano negro do espaço. De início, quando a foto foi impressa, a Terra foi confundida com uma poeirinha, que os cientistas da Voyager tentaram em princípio espanar da reluzente fotografia! Mas essa imagem visualmente modesta da Terra --um "pálido ponto azul", como descreveu Sagan-- era tão profunda quanto as espetaculares imagens da Terra inteira, capturadas cerca de 20 anos antes pelos astronautas da Apollo.

CINTURÃO DE KUIPER

Não muito tempo depois de tirar essa foto final, a Voyager 1 passou pela órbita de Plutão, e, no final de 2004, já havia entrado nos domínios do Cinturão de Kuiper --um grupo de mundos escuros, semelhantes a Plutão, feitos de rocha e gelo, e orbitando o Sol a tamanha distância que se tornam quase imperceptíveis. A Voyager 2 chegou a essa região logo depois. Hoje, as duas sondas continuam se distanciando de nós a 16 km por segundo.

Trinta e cinco anos depois de deixar a Terra, e estando agora a 18 bilhões de km de casa, a Voyager 1 está entrando na região do espaço conhecida como "choque em arco", que marca o limite entre os ventos solares e os galácticos --em suma, a periferia da influência do Sol. A Voyager 2 também encontrou essa fronteira, e ambas as sondas se preparam para mergulhar na região que os astrônomos chamam de "espaço interestelar".

Cinco instrumentos continuam funcionando em cada sonda, relatando a natureza desse novo ambiente no qual estendemos nossos sentidos; caracterizando os novos campos magnéticos e as partículas galácticas com os quais estão agora em contato.

Sua voz pública também continua a nos alcançar a tal distância. Apesar de estarem tecnologicamente congeladas na década de 1970, as Voyagers conseguiram abraçar a era digital --usando agora o Twitter para comunicar sua história. Quando um seguidor no Twitter perguntou "o que a Voyager 2 consegue ver", ela respondeu numa prosa adequadamente inspirada em Sagan: "Posso sentir as estrelas e seus sussurros em meio ao rugido do nosso próprio Sol".

Embora não tuítem diariamente, ambas as sondas conseguem manter contato diário com a Terra. Mesmo viajando à velocidade da luz, suas mensagens demoram bastante para chegar. "O tempo de deslocamento agora é de umas 15 horas em cada sentido", diz a atual gerente da Voyager, Suzanne Dodd. "Enviamos um comando no sábado de manhã, e ele voltou no domingo à tarde." Dodd está na Voyager desde meados da década de 1980, e compara os contatos com as naves aos cuidados dispensados a um cidadão idoso. "Às vezes elas precisam de um pouco de ajuste na sua audição!"

Não são só as Voyagers que estão envelhecendo. Todos na equipe passaram suas vidas tendo a missão como pano de fundo. "Quando comecei na Voyager, minhas duas filhas eram pequenas", diz Ed Stone, que está a bordo desde o primeiro dia. "Na época em que elas estavam na faculdade, havíamos passado por Saturno e estávamos a caminho de Urano. Elas se casaram e as Voyagers continuaram indo, e tivemos netos e as Voyagers continuaram indo, e nossos netos agora ficam sabendo do que está acontecendo com as Voyagers, assim como nossas filhas ficavam."

VOLTAS NA GALÁXIA

Exceto em caso de alguma grave falha de engenharia, as Voyagers devem continuar mandando notícias do espaço interestelar até por volta de 2025, quando o declínio da energia e do propelente necessários para voltar as parabólicas de comunicação na direção da Terra irá gradualmente impedi-las de ligarem para casa.

Se não fosse por essa diminuição dos materiais consumíveis e pelo risco de perder de vista o Sol, cada vez mais apagado e distante, a Nasa poderia monitorá-las por mais um ou dois séculos.

Mas mesmo sem energia as duas Voyagers vão continuar nos servindo. No ambiente benigno e praticamente vazio do espaço interestelar, essas sondas devem existir por milhões de anos. Vão durar mais que as pirâmides, provavelmente vão durar mais do que nós, e talvez mais do que a Terra em si; o único registro da nossa existência, dando voltas na galáxia para sempre.

Se outras criaturas inteligentes e tecnológicas algum dia as encontrarem vagando pela eternidade no espaço profundo, as sondas irão revelar algo sobre os seres que as construíram. Nosso tamanho e destreza poderão ser inferidos a partir da sua dimensão. Sua sofisticação em termos de engenharia irá contar a essas criaturas algo sobre nossas capacidades tecnologias e matemáticas, ao menos tal qual eram na década de 1970. Mas o projeto das Voyagers por si só não lhes dirá nada acerca de que tipo de criaturas realmente fomos.

Então, enquanto a equipe do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa dava os retoques nas Voyagers, no começo de 1977, o engenheiro John Casani sugeriu a Carl Sagan que fosse incluído a bordo de cada nave algo que explicasse isso. Sagan argumentou que a música seria a melhor forma de comunicar algo a mais a nosso respeito para outras criaturas. "Pode o significado da música ser entendido por alguém mais?", divagou Sagan. "As arrebatadoras emoções da música poderiam ser um mistério para eles, mas, para conseguirmos transmitir algo do que são os humanos, a música precisa ser parte disso", rememorou ele depois numa entrevista à rádio BBC4.

Sagan rapidamente apresentou a ideia dos discos dourados, estimando que custariam US$ 25 mil. Casani concordou, e Sagan se pôs a escolher as músicas, na companhia de Ann Druyan, integrante da equipe. Eles tiveram apenas seis semanas para montar o álbum, a mais simbólica coletânea musical da história. Era uma tarefa quase impossível, como admitiu o próprio Sagan.

Uma frenética consulta com musicólogos mundo afora teve início, enquanto Druyan, que se tornaria esposa de Sagan, batalhava para localizar 26 gravações específicas, que refletiam algo do aparecimento e evolução da música sobre a Terra.

Quando o médico e autor de biologia Lewis Thomas foi questionado sobre quais faixas enviaria, ele rapidamente respondeu: "As obras completas de J.S. Bach...", antes de acrescentar, após uma pausa: "... Mas isso seria nos vangloriarmos!". Mas "The Sounds of Earth" tem mais Bach do que qualquer outro compositor, com três obras escolhidas para refletir a evolução do seu estilo.

Como em qualquer compilação, particularmente numa que se destina a representar algo da nossa diversidade como espécie e o que significa ser humano, há algumas omissões óbvias --no mínimo, os Beatles. Druyan torcia por "Here Comes the Sun", mas o pedido foi rejeitado pela gravadora da banda, que supostamente teria discordado em liberar os direitos "perpetuamente, por todo o Universo conhecido".

Mas a passagem mais notável nesse esforço para compilar o disco dourado diz respeito à obra de encerramento do álbum: a "Cavatina" do Quarteto de Cordas em si bemol maior, opus 130, de Beethoven. Ao pesquisar um artigo sobre o projeto para o "The New York Times", Druyan havia visto os diários de Beethoven, e "de próprio punho ele havia escrito: 'Será que eles gostam de música em Vênus? O que eles pensam dela em Urano...'" Ela sentiu que os discos eram uma forma de finalmente responder a esse impulso, a essa pergunta que Beethoven nos fez há tanto tempo.

Apesar da sua ambição, e das épicas escalas de tempo às quais a Voyager tende a sobreviver, dada a vastidão do espaço, essas duas pequenas sondas e seus discos dourados dificilmente serão encontrados algum dia. Mas Sagan foi suficientemente inteligente para perceber isso. Para ele, o que importava não era tanto o que os discos diriam para outras civilizações, e sim o que diziam sobre a nossa. Como o ponto azul pálido na foto capturada pela Voyager 1, a compilação fonográfica era um espelho para sobrevivermos a nós mesmos.

"Eis um momento em que de repente precisamos pensar sobre o que na nossa cultura nós gostaríamos que os outros conhecessem, e que nos deixaria orgulhosos", refletiu Sagan numa entrevista em 1982. "O disco deveria representar a espécie humana em sua integridade. Somos uma só espécie sobre o planeta Terra. A unidade da espécie vista aqui é um fato que é essencial para o futuro humano."

Conforme nossos primeiros embaixadores interestelares zarpam para esse novo mar, vale refletir mais uma vez sobre o ponto de vista inigualável que tal exploração para muito além do nosso "pontinho azul pálido" nos oferece. De tal perspectiva, as fronteiras nacionais se diluem, e as diferenças étnicas, religiosas ou ideológicas parecem uma forma irrelevante de definir nossa identidade.

Em meados de 1977, o lançamento da nossa mensagem coletiva em uma garrafa rumo ao oceano cósmico era um gesto altamente otimista, que colocou de lado brevemente todas as nossas diferenças tribais. Esse otimismo talvez seja mais bem resumido por uma das vozes ali gravadas. "Este é um presente de um mundo pequeno e distante, uma amostra dos nossos sons, nossa ciência, nossas imagens, nossa música, nossos pensamentos e nossos sentimentos. Estamos tentando sobreviver ao nosso tempo, pra que possamos viver até o vosso."

Tradução de RODRIGO LEITE.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página