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14/01/2013 - 14h45

Amputações, assassinatos e estupros em massa no Mali

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MARK TOWNSEND
DO "OBSERVER"

Mandaram todo mundo se reunir ao entardecer no mercado de Gao. Um homem acusado de usar tabaco foi escoltado diante da multidão por vários membros de uma dissidência da Al Qaeda chamada Movimento pela Tawhid e a Jihad na África Ocidental.

"Aí deceparam a mão dele. Queriam nos mostrar o que eles eram capazes de fazer", disse o açougueiro Ahmed, 39, que vive nessa cidade do norte do Mali.

Não parou por aí. A mão decepada foi atirada em um tonel de água fervente. Aí, segundo Ahmed, o homem foi imobilizado e durante uma hora a mão retorcida e deformada foi rudemente costurada de volta no seu toco. Ahmed, aterrorizado demais para revelar seu nome completo, fugiu de Gao no dia seguinte, 8 de novembro. "Eu precisava ir embora. Não conseguia viver minha vida."

Nicolas Richard/Reuters
Tropas francesas partem do Chade para Mali, para combater os rebeldes jihadistas que controlam o norte do país
Tropas francesas partem do Chade para Mali, para combater os rebeldes jihadistas que controlam o norte do país

Recentes testemunhos como esse, de pessoas chegando, sufocadas pela poeira vermelha do Sahel que entope cada poro, aos campos de refugiados nos dois lados da fronteira com Burkina Faso, indicam que a situação no norte do Mali está se deteriorando rapidamente. Dada a situação perigosa na região, foi impossível verificar os relatos, mas eles foram numerosos e perturbadores.

Militantes islâmicos que há seis meses tomaram o controle de uma área maior do que o Reino Unido impuseram sua versão ultraconservadora da "sharia", a lei islâmica. As histórias relatadas sugerem uma população subjugada por um regime acostumado a uma apavorante brutalidade.

Acusações de crimes de guerra incluem execuções sumárias, estupros em massa, racismo e ataques contra idosos por parte de crianças recrutadas como soldados pelos extremistas. Alguns afirmam que as crianças-soldados estão sendo forçadas a estuprarem mulheres.

Analistas alertam que a crise no Mali está desestabilizando toda a região do Sahel, o cinturão da África imediatamente ao sul do Saara, onde 19 milhões de pessoas vivem no limite da desnutrição. A chegada de terroristas islâmicos a esse cenário levou a ONU a descrever o Mali como "um dos cantos potencialmente mais explosivos do mundo". Horas depois disso, o primeiro-ministro do país foi forçado pelos militares a renunciar, complicando ainda mais qualquer tentativa de recuperar norte do Mali.

Na semana passada, os refugiados contaram como os ativistas islâmicos --uma mistura dos extremistas do Ansar al Dine, a Al Qaeda norte-africana, com o Movimento pela Tawhid e a Jihad na África Ocidental-- estavam perseguindo os tuaregues, cujas terras desérticas eles tomaram.

O refugiado Zicki Fli, 39, que chegou vários dias atrás ao campo de Goudebo, em Burkina Faso, disse: "Fomos caçados. Eles chegaram para nos monitorar e, se encontrassem a língua tuaregue, nos espancavam".

Fli ficou no Mali até que há dez dias, na localidade de Gossi, testemunhou algo que o fez mudar de ideia: "Um homem que eu conhecia ia encontrar sua noiva toda noite, mas alguém os viu e chamou os militantes islâmicos. Eles foram espancados com cassetetes cem vezes. Eles continuaram batendo até que os dois morreram".

Fli foi embora de Gossi na manhã seguinte, caminhando sete dias até o campo de refugiados para o qual sua esposa, Fadii, numa gestação avançada, havia fugido semanas antes, para dar à luz. Fli diz que Fadii está deprimida: eles não têm nada e não sabem quando, ou se, vão voltar para o Mali.

Toufenat Wallet Fikka, 37, falou há duas semanas com uma amiga de Timbuktu, que descreveu uma mulher tendo sua mão amputada e levando chibatadas após ser acusada de furtar uma quantia equivalente a pouco mais de £ 1 (R$ 3,20). "Eles não tinham provas. Muita gente está assustada ou fugindo. Ela contou que duas mulheres apanharam até cair no chão porque suas cabeças não estavam totalmente cobertas."

Um refugiado voltou ao Mali vestindo uma camiseta da ONG Oxfam e levando preservativos, principal arma da entidade para conter o crescimento populacional numa região que tem uma das maiores taxas mundiais de mortalidade infantil. Ao ser revistado pela polícia islâmica, ele foi açoitado 80 vezes com um "chicote de arame", e recebeu ordem de voltar no dia seguinte, para ser sentenciado.

Romaric Ollo Hien/AFP
Rebeldes islâmicos guardam aeroporto de Kidal, no norte do Mali
Rebeldes islâmicos guardam aeroporto de Kidal, no norte do Mali

Ele também fugiu para Burkina Faso. Quem vai embora diz que não há mais diversão por lá. Mahmoud Ag Hatalio trabalhava como DJ. Ele conta que a popular emissora de rádio La Voie de N'Tillit agora só transmite orações. Hatalio diz ter tido sorte: um amigo falsamente acusado de furtar uma bicicleta perdeu a mão em uma gigantesca tesoura de aço feita especialmente para isso por um serralheiro local, e depois também um pé, para deliberadamente tolher sua mobilidade.

"JOIE DE VIVRE"

Uma das metas parece ser desmantelar completamente a outrora famosa democracia laica e pluralista do Mali, simbolizadas por sua música popular e seu blues de renome mundial, e por uma lendária "joie de vivre".

Ahmed Abdullai, de Haribomo, a 30 km da fronteira com Burkina Faso, declarou que famílias, inclusive de tuaregues, estão sendo obrigadas a entregar seus filhos para a milícia. "Há muitos desses grupos islâmicos", disse o ex-professor de 37 anos. "As famílias estão sendo obrigadas a abrir mão dos seus filhos. Eles são ensinados a matar, estuprar. As crianças fazem qualquer coisa que lhes digam."

Kristalina Georgieva, comissária [ministra] da UE para a ajuda humanitária, visitou recentemente a região para apresentar um aumento na assistência, e disse que os relatos de que extremistas estariam assassinando anciões respeitados são particularmente perturbadores. "O efeito é descosturar o próprio tecido da sociedade. É muito difícil de reconstruir."

Para Georgieva, a grande preocupação é de que a transformação do norte do Mali em um enorme encrave jihadista leve a uma repetição da história recente da Somália. Outros alertam que militantes islâmicos estão estabelecendo um califado (um Estado muçulmano político-religioso) em todo o Sahel, com seus 5.000 km de extensão. Fontes de inteligência sugerem que milícias locais estão sendo assimiladas à estrutura extremista, e que o notório grupo islâmico nigeriano Boko Haram já foi visto no Mali.

Georgieva disse que "a situação está se proliferando, em metástase: há cerca de cem pequenos grupos dizendo-se envolvidos. Ninguém esperava que o Boko Haram explodisse na Nigéria, mas uma vez que aconteceu foi muito difícil de controlar. Poderemos ter uma situação da Somália outra vez se não fizermos nada".

O Exército malinês está fraturado e carente de recursos, enquanto a Europa, os EUA e governos africanos se desentendem sobre uma intervenção. O ex-primeiro-ministro italiano Romano Prodi, nomeado enviado da ONU para o Sahel, ainda não tem um escritório na região. "A velocidade com a qual estamos avançando rumo à mobilização precisa de muito mais urgência", disse Georgieva.

O que exatamente eles pretendem continua sendo algo meio misterioso. A ameaça de sequestro de estrangeiros é alta, e os campos de refugiados em Burkina Faso foram transferidos para longe da fronteira a fim de evitar invasões. No entanto, persistem rumores de que a Al Qaeda está operando em Burkina Faso --e em toda a região. As entidades humanitárias estão nervosas. Sete cidadãos franceses estão desaparecidos no norte do Mali. Em Bamaco, a capital do país, a tensão é palpável. A Air France não autoriza mais seus tripulantes a pernoitarem, por causa do risco de eles serem sequestrados.

A quantidade de extremistas islâmicos e quão bem equipados eles estão são temas abertos a conjecturas. Aboubacan Traoré, 27, que fugiu no mês passado de Timbuktu, descreveu o momento em que forças islâmicas fortemente armadas invadiram a cidade pela primeira vez. "Eles estavam atirando em todo lado. Eles tinham muitas pistolas, lançadores de granadas. Havia muitíssimos deles -- centenas."

Ninguém duvida de que a crise esteja desestabilizando toda a região. Aproximadamente 350 mil malineses já fugiram das suas casas, quase metade deles para países vizinhos, incluindo 8.000 no campo de Goudebo.

Basicamente, as pessoas estão sendo expulsas das suas casas para uma terra que mal dá conta dos seus atuais ocupantes. A Oxfam está escavando poços às pressas para atender a comunidades que repentinamente precisam lidar com dezenas de milhares de recém-chegados.

Mas é a inevitabilidade da guerra que a maioria das agências teme: qualquer tentativa de limpar o mais recente ponto de concentração da Al Qaeda irá gerar um enorme fluxo de refugiados e animais para uma terra incapaz de sustentá-los.

RESPOSTAS URGENTES

Enquanto isso, a situação tende a piorar. Os preços dos alimentos no Mali e em Burkina Faso permanecem teimosamente altos, apesar de uma safra decente, deixando os mais pobres sem condições de alimentarem suas famílias.

Especialistas dizem que o acelerado crescimento populacional da região amplia o impacto que a rápida expansão da classe média global causa sobre os preços. A mudança climática tampouco pode ser ignorada. O Sahel sofreu três secas nos últimos sete anos.

Georgieva disse que a capacidade dos pobres para suportar esses choques praticamente desapareceu: a chegada de militantes islâmicos à região é um fator que vai longe demais. Apesar do aumento de 13% na safra agrícola de Burkina Faso, os especialistas são peremptórios em preverem que não haverá alívio para a crise alimentar na região em 2013.

Embora uma resposta rápida e coordenada das agências assistenciais diante das condições do Sahel tenha evitado por pouco uma "catástrofe" humanitária neste ano --a Comissão Europeia estima que 400 mil crianças na região tenham sido salvas da morte por desnutrição--, a mesma resposta urgente é novamente necessária.

Muitos temem que a complacência possa se instalar, e que as notícias sobre mais uma quase crise humanitária na África Ocidental dificilmente irão gerar muitas manchetes, enquanto verbas estrangeiras podem ser desviadas para auxiliar uma eventual campanha militar. "É por isso que o Sahel precisa ser nossa prioridade máxima no ano que vem", disse Georgieva.

Além da ameaça de uma guerra em grande escala no deserto, um conflito em escala micro já é evidente em campos de refugiados como o de Goudebo, com capacidade provisória para 20 mil pessoas. Visitantes podem se perguntar por que só os africanos negros, os "bellas", são vistos na fila para pegar água ou montando barracas para os refugiados.

O antigo sistema de castas dos tuaregues, no qual os bellas no passado eram escravos, sobrevive e faz com que os membros da tribo com pele mais escura ocupem as posições mais subalternas na sociedade tuaregue. Por outro lado, os tuaregues costumam ser chamados de "brancos", e afirmam ser rotineiramente vilipendiados pelos governos malineses desde a independência, predominantemente negros e sulistas, e que também se sentem incomodados com a reputação dos tuaregues de escravizar africanos negros.

A ONU se diz "profundamente ciente" da tensão em seus acampamentos, mas rejeita as acusações de que os bellas sejam escravos. "Eles são mais como serviçais --é uma relação de senhor e serviçal", disse uma fonte.

Mas a cor da pele domina muitas conversas com refugiados malineses. Mohamed Ag Almougamar acusa membros do Exército malinês de terem matado um grande número de tuaregues em Nampalari, uma rede de 22 aldeias no deserto do norte do país, com 11 mil pessoas.

O incidente, novamente impossível de verificar, teria ocorrido durante o verão boreal, e, segundo Almougamar, teve motivação racista. "Temos pele clara, somos mortos como ovelhas", disse ele.

Enquanto o Ocidente delibera sobre sua próxima jogada, com a França preferindo a intervenção militar imediata, e os EUA optando por uma resolução diplomática, parece certo que centenas de milhares de refugiados malineses, incluindo os tradicionalmente nômades tuaregues, estão fadados a permanecerem por meses a mais nos acampamentos.

Mossa Ag Wantaganatt, 46, que chegou a Burkina Faso no início do mês, disse: "Nossas vidas estão em suspenso. Estamos vivendo em uma gaiola".

Tradução de RODRIGO LEITE.

 

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