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26/02/2013 - 16h39

Javier Marías: uma vida de escrita

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NICHOLAS WROE
DO "GUARDIAN"

"O amor tem ótima reputação. Mas já vi pessoas gentis e nobres se comportarem muito mal quando estão apaixonadas".

*

Quando Javier Marías estava estudando filologia inglesa em Madri, nos anos 70, ele conta que comprava "com admiração e reverência" exemplares "da coleção Penguin Modern Classics, que então tinham a lombada cinzenta. Os escritores iam de Conrad a James, de Faulkner a Joyce, de Thomas Mann a Ford Madox Ford, de Woolf a Camus. Nem Nabokov tinha lugar lá". No ano passado, Marías se tornou um dos poucos escritores vivos a integrar a lista da coleção.

"Devo presumir, portanto, que vivemos uma era muito menos rigorosa que os anos 70", ele diz, modestamente. "Mas assim me sinto honrado, mesmo que me ache uma fraude".
Longe de ser uma fraude, é difícil imaginar muitos outros escritores vivos que se encaixam de modo tão natural na lista. Em termos comerciais brutos, como foi dito na época, se poderia afirmar que não foi uma má aposta de garantia, da parte de sua nova editora Penguin, dada a possibilidade de que ele ganhe um Prêmio Nobel, honraria para a qual sempre está cotado.

Em termos puramente literários, há poucos escritores com credenciais tão convincentes. Poucos autores sustentaram um engajamento tão longo com o cânone da literatura anglófona. Como tradutor, ele verteu para o espanhol o trabalho de Hardy, Yeats, Nabokov, Faulkner, Updike, Salinger e muitos mais.

Como romancista, entremeou suas obras de traços que remetem a esses escritores, e conta com um sustentáculo explícito em sua empatia por Shakespeare e Sterne, bem como por Cervantes e Proust.

"Jamais tive um projeto literário e sinto que passei minha carreira toda improvisando", ele disse recentemente. "Mas reconheço alguns temas recorrentes - traição, segredo, a impossibilidade de conhecer as coisas, as pessoas ou você mesmo com segurança. Há também a persuasão, o casamento e o amor. Mas essas coisas são o tema de toda literatura, não só dos meus livros. A história da literatura provavelmente consiste da mesma gota de água caindo na mesma pedra. Mas em idioma diferente, de maneiras diferentes, de formas diferentes, adequadas cada qual ao seu tempo. Mas continua a ser a mesma coisa, as mesmas histórias, a mesma gota na mesma pedra, desde Homero ou até antes".

Seu talento para o improviso o levou a vender milhões de livros, traduzidos para mais de 40 idiomas. Seu 12º romance, "Los Enamoramientos", sairá em inglês no mês que vem como "The Infatuations", e obras como "Todas las Almas", "Corazón tan Blanco" e, mais recentemente, a monumental trilogia "Tu Rostro Mañana", receberam elogios quase unânimes da crítica. Entre seus demais títulos está o de rei de Redonda, uma ilha desabitada no Caribe cuja titularidade monárquica vem sendo transmitida de escritor a escritor.

Alberto Aja/Efe
O escritor espanhol Javier Marias posa para foto antes de participar de uma coletiva de imprensa na Espanha
O escritor espanhol Javier Marias posa para foto antes de participar de uma coletiva de imprensa na Espanha

"Exerço minhas responsabilidades com leviandade", ele sorri, "mas sigo a tradição da nobreza intelectual". Ele criou um prêmio literário e concede ducados aos vencedores, que até o momento incluíram, entre outros, Alice Munro, AS Byatt, William Boyd e Umberto Eco.

"JM Coetzee foi o primeiro vencedor, e fiquei feliz por ele ter aceitado e entrado na brincadeira. Talvez seja a hora de eu começar a pensar em um herdeiro. Eu herdei o trono por abdicação, e por isso preciso encontrar outro escritor, já que o critério de transmissão não é o sangue, mas as letras".

María jamais visitou Redonda, mora em um apartamento repleto de livros em uma das mais velhas praças de Madri, e escreve com uma máquina de escrever elétrica; ele não tem Internet e é igualmente antiquado em seu prodigioso consumo de cigarros. Está envolvido em um longo relacionamento com uma mulher que vive em Barcelona. "É essa a minha sorte, em geral. Ou minhas namoradas eram casadas, na época em que não existia divórcio na Espanha, ou há alguma outra coisa no caminho".

"Los Enamoramientos", um dos raros romances de Marías com uma mulher como narradora, é, entre outras coisas, um estudo lúcido do amor. O título poderia ser traduzido como "as paixonites". Maria toma café da manhã no mesmo restaurante a cada dia, onde sempre encontra um casal que segue a mesma rotina. Depois de algum tempo, o casal deixa de ir ao café, e Maria descobre que o homem foi brutalmente assassinado e se envolve na vida da viúva, e nas ramificações emocionais da morte do marido.

"Amar e se apaixonar têm boa reputação", diz Marías. "E isso tem justificativa em certos momentos; mas às vezes é o oposto. Já vi pessoas muito nobres e generosas se comportarem muito mal porque estão apaixonadas. Há também essa ideia de destino. As pessoas se lembram de como se conheceram e imaginam o que teria acontecido se não tivessem ido àquele bar ou àquele jantar. Mas na realidade estamos muito limitados em nossa escolha de parceiros, por localização, classe, história, e pela disposição da pessoa a aceitar nossa sedução. Quantas vezes não somos a primeira escolha? Ou mesmo a segunda, a terceira?"

O livro já vendeu mais de 160 mil cópias na Espanha e recebeu um prêmio nacional de literatura que Marías recusou porque o prêmio de 20 mil euros era bancado pelo Estado. Ele já foi criticado como romancista por não se envolver diretamente com a turbulenta vida política da Espanha - ainda que na realidade a guerra civil e o domínio de Franco tenham sido presenças sombrias em seus livros - mas não demonstra reticência em se envolver com o dia a dia, em seu papel como colunista de jornal, função que exerce há 18 anos.

"Em minha função de colunista, escrevo como cidadão, e talvez tenha até opiniões demais" --ele já publicou um livro só com suas colunas sobre futebol--, "mas escrever como romancista é diferente. Não gosto dos romances jornalísticos que estão em moda agora. Se um bom livro ou filme toma um tema interessante do noticiário cotidiano --por exemplo, a violência no lar na Espanha, uma desgraça histórica--, todos aplaudem, mas é um aplauso fácil. Quem vai dizer que isso é ruim? As pessoas afirmam que um romance é uma forma de transmitir conhecimento. Bem, talvez. Mas para mim talvez seja mais uma forma de transmitir conhecimentos sobre coisas que você não sabia saber. Você diz 'sim'. E parece verdade mesmo que a sensação seja desconfortável. É algo que encontramos em Proust, um dos autores mais cruéis da história da literatura. Ele diz coisas terríveis, mas de uma maneira que nos faz saber que nós também experimentamos aqueles pensamentos".

Marías nasceu em Madri em 1951, o quarto de cinco filhos. Três de seus irmãos --o mais velho morreu antes que ele nascesse-- seguiram carreiras nas artes. O pai deles era Julian Marías, um importante filósofo cujas atividades republicanas lhe valeram um curto aprisionamento, depois da guerra civil espanhola, episódio que Marías usou em "Tu Rostro Mañana". Sua mãe, Dolores Franco, era tradutora e editou uma antologia de literatura espanhola antes de se casar e criar uma família.

Quando criança, Marías fez diversas viagens aos Estados Unidos com a família; seu pai estava lecionando lá depois de ser banido da universidade na Espanha. De volta a Madri, seus primeiros escritos vieram diretamente da leitura: ele criou histórias próprias com os personagens de "Os Três Mosqueteiros" e com Just William, de Richmal Crompton. "Crompton era muito popular na Espanha da minha época", afirma.

A casa da família estava repleta de livros, obras de arte e de conversação inteligente. Mas a entrada de Marías no mundo da escrita foi facilitada por um tio que trabalhava na produção de filmes eróticos e de terror. Durante as seis semanas que Marías passou no apartamento parisiense do tio, quando tinha 17 anos, ele não só assistiu a 85 filmes como produziu a base de seu primeiro romance, "Los Dominios del Lobo", publicado em 1971, quando ele tinha apenas 20 anos.

"Era uma espécie de tributo aos, e paródia dos, filmes norte-americanos dos anos 40 e 50. Uma obra de juventude, mas não o tipo de trabalho autobiográfico que os jovens escritores costumam produzir. E também não era mortalmente sério, como os jovens muitas vezes são. Eu na verdade não tenho vergonha do livro", afirma Marías.

Ele diz que a tendência dominante na Espanha da época era o realismo social. "Franco ainda era vivo. A ideia era que os escritores, na medida que a censura permitisse, tentassem conscientizar as pessoas sobre a terrível situação do país. Eu achava que a intenção era boa, mas que aquilo nada tinha a ver com literatura. Minha geração sabia que um romance não poria fim à ditadura, e assim, como escritores, fazíamos o que queríamos".

De fato, ao longo dos 10 anos seguintes, ele publicou apenas mais dois romances, enquanto sua carreira como tradutor decolava, especialmente com a versão de "Tristram Shandy" que ele traduziu em 1979 e lhe valeu um prêmio nacional (mas não estatal) de tradução. Ele define um tradutor como "um leitor privilegiado e um escritor privilegiado. Se você é capaz de reescrever em outro idioma algo que Conrad ou Sterne escreveram, aprende muito. Eu não me envolvi na indústria da escrita criativa, mas se eu fundasse um curso de escrita criativa só admitiria pessoas capazes de traduzir, e as faria traduzir sempre".

Nos seus anos como tradutor, ele descobriu que alguns escritores ajudavam o tradutor por terem estilos contagiosos. "Há um ritmo e cadência de prosa que, se o tradutor o captura, permite que surfe nas ondas da cadência. Eu me senti assim quanto a Conrad e, de algum modo, com Sir Thomas Browne. Mas não é algo de essencial para a boa escrita. Não consegui o mesmo com a prosa de Yeats, ou a de Isak Dinesen ou Thomas Hardy. Gosto de imaginar que minha prosa tem uma cadência capaz de contagiar, no bom sentido, ajudando o tradutor. E sempre quero ajudar ao máximo, porque me lembro de ficar irritado por não poder perguntar a Conrad que diabos ele queria dizer".

Marías diz que aquilo que é hoje visto como seu estilo característico --as sentenças longas, digressivas, quase musicais, que giram em torno de observações, reflexões e suposições-- demorou anos a ser desenvolvido e só aflorou realmente em 1986 com "El Hombre Sentimental", um romance sobre um cantor de ópera. "Eu tinha escrito quatro romances antes disso. A impaciência do mundo literário atual poderia significar que eu não teria a chance de chegar àquele ponto. Tantos escritores significativos devem ter sido perdidos por conta dessa impaciência. A mudança foi brutal".

Seu romance seguinte, "Todas las Almas" (1989), baseado estreitamente em sua experiência como professor na Universidade de Oxford nos anos 80, foi um sucesso, mas foi apenas com "Corazón tan Blanco", de 1992, que ele começou a frequentar as listas de mais vendidos. Depois de vender bem na Espanha, ele se tornou sucesso mundial quando Marcel Reich-Ranicki, o "Papa dos críticos" alemães elogiou o livro em um programa de TV.

"Ele era considerado um crítico duro, que certa vez havia literalmente rasgado um romance de Günter Grass. Mas fez algumas declarações exageradas sobre o meu livro, e disse que merecia estar no topo da lista de best sellers. O público seguiu obedientemente sua recomendação de comprar, como os alemães costumavam agir em certos momentos de sua história".

O romance vendeu 1,3 milhão de cópias na Alemanha e ganhou o prêmio Impact. A técnica de Marías para seus romances --"e eu sei que ela pode ser suicida"-- é começar com o mínimo de planejamento (o total de suas anotações para a trilogia "Tu Rostro Mañana", de 1,2 mil páginas, ocupavam quatro folhas de papel A5, e nem todo o espaço foi usado), e depois ele não reescreve muito o livro, "ainda que eu mude uma data da terça para a quinta-feira, e coisas assim".

É como andar na corda bamba, um exercício sustentado por uma memória que deve ser invejável, porque Marías organiza suas histórias em torno de complicadas digressões e repetições. "O que Sterne disse sempre me pareceu verdade, que ele progredia por digressão, e você percebe que coisas incidentais na verdade são parte da história. Gosto de usar um sistema de ecos e ressonâncias, e de personagens que reaparecem não só no mesmo livro mas de um livro a outro".

Ele descreve a atual situação espanhola como "assustadora" e critica o governo por usar a crise econômica para impor reformas nas leis trabalhistas, tornar mais rigorosas as leis sobre o aborto, cortar os gastos com cultura e educação e privatizar o sistema de saúde.

"São opiniões que sustento. Como romancista, não é a mesma coisa. Um romance é algo de mais selvagem, feroz, no sentido de que se pode dizer qualquer coisa, e o narrador e personagens podem dizer qualquer coisa. Mas ainda assim a história chega a uma espécie de verdade. É como o teatro, no qual você sabe o nome do dramaturgo mas quando a cortina sobe a plateia segue a convenção de não tomar as opiniões expressas no palco como as do autor. Com um livro, é a mesma coisa. Você passa da capa à ficha biográfica do autor, e depois talvez a uma dedicatória, e quando chega à página um a cortina sobe. Daquele momento em diante, o nome que está na capa já não importa".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

 

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