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03/03/2013 - 08h04

Histórias naturais

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MARCÍLIO FRANÇA CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma questão meteorológica

Quando menos se espera o círculo está formado. Uma pequena leva surge da avenida e começa a rodar. Logo aparecem outras, saindo das ruas laterais. Dez, quinze, vinte, incontáveis bicicletas, enfileiradas ou em nuvens, aproximam-se da rotatória e entram, fazendo crescer o zunido. A força do redemoinho arrasta as indecisas, as mais lentas, e a pista inteira gira, sempre em sentido anti-horário. Algumas, não resistindo à tangente, são cuspidas de volta na avenida. Atraídos pelo chiado, pelo movimento dos aros, os pedestres estacionam no meio-fio e assistem a tudo, refrescando-se com os golpes de ar. As bicicletas permanecem assim durante vários minutos, às vezes por mais de uma hora, e então se dispersam espontaneamente, tal como começaram. Essa agregação, essa roda, tornou-se de fato um fenômeno natural, regulado pelas mesmas leis que, fora do controle humano, comandam os furacões, as frentes frias, as marés. Os próprios berlinenses dizem que já é possível, com base na pura observação, calcular as chances de um novo evento acontecer, mas, como toda previsão meteorológica, essa também está sujeita à falha, à imprecisão.

O comportamento das águas

A recondução dos peixes ao seu hábitat natural tem sido feita com suavidade e sem grandes transtornos. Com a ajuda dos voluntários, que vão de casa em casa, os peixes são recolhidos pela manhã, e até o fim do dia já nadam soltos ' no mar, nos lagos, em algum rio. Mesmo as espécies mais frágeis ou temperamentais, como as de listras azuis (cujo tom varia segundo o humor), têm conseguido sobreviver. Os ineptos são sacrificados sem dor, e logo não haverá nenhum exemplar retido. O grande problema, entretanto, continua sendo o comportamento das águas. Apesar dos ritos meticulosos, obsessivos, que tentam preservá-las, a tarefa é quase impossível. Devolvidas ao curso natural, fora dos tanques e aquários, não há como conter o seu instinto suicida.

Desordem

O modo mais fácil de embaraçar dois ou três fios de lã é guardá-los na gaveta e esquecê-los durante algum tempo. O princípio vale também para linhas e barbantes, correntes de prata e fios de cobre, arames, tiras, cordões. Tudo acontece de maneira muito simples: basta não intervir e a natureza fará o seu trabalho --quase sempre irreversível. Tal fenômeno, porém, não se limita às gavetas; estende-se às formas vivas, ao espaço cósmico, e ainda aos mundos pequenos, microscópicos. Assim se compreende, por exemplo, a tendência de certas plantas muito delgadas a crescerem abraçadas, ou por que os cromossomos de uma célula (aquelas duas fitas atadas por um nó) decaem da forma espiral, compacta e elegante, para se embolarem em uma teia. Pela mesma razão é possível explicar pequenos incidentes do cotidiano, como as filas de banco (que inevitavelmente se enroscam) e alguns engarrafamentos. O princípio alcança mesmo os domínios da abstração: hoje se sabe, por exemplo, ao contrário do que postulou Euclides, que duas retas paralelas se encontram, e se confundem, no infinito. Algo semelhante ocorre com as memórias em série, mas ainda não há consenso sobre isso. No futuro, especula-se, o caso de maior impacto deverá ser o dos livros, ou das linhas gravadas nas páginas dos livros. Ao abrir um volume, por exemplo, você pode deparar com um pedaço de linha deslocado para a de baixo, ou com uma frase inteira embaraçada, trocada com outra. Esse tipo de desordem, essa confusão com as palavras, é, sem dúvida, o mais temerário de todos.

Sobre as nuvens

Em vez de, sem nenhum apetite, comer e beber o tempo inteiro, aceitando o que lhes é oferecido no corredor; em vez de, tão logo se acomodam, abrir o jornal com indiferença; em vez de chamar o comissário por nada ou, ignorando os demais, fechar os olhos e fingir dormir, os viajantes sobre as nuvens poderiam, apenas por experiência, atendendo ao que propõe o comandante, observar a janela, como aquele inseto que, tendo embarcado visivelmente por engano, agarra-se como pode à alça do compartimento de bagagens, sabendo que não está nos seus domínios.

SOBRE O TEXTO Estes contos fazem parte de "Histórias Naturais", livro inédito do autor, ainda sem data de publicação.

MARCÍLIO FRANÇA CASTRO, 45, escritor, é autor de "Breve Cartografia de Lugares Sem Nenhum Interesse" (7Letras), vencedor do Prêmio Clarice Lispector 2012 da Fundação Biblioteca Nacional

 

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