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21/03/2013 - 15h00

Presença de refugiados sírios causa tensão e ameaça frágil paz do Líbano

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MARTIN CHULOV
DO "OBSERVER"

No limite da zona central reconstruída de Beirute, Abu Ziad, um empresário de Damasco, estava se acomodando no seu BMW zerinho, estacionado diante da maior mesquita sunita da cidade. O BMW série 7 preto era o carro mais caro do estacionamento, e atraiu a atenção de uma fila de compatriotas de Ziad que estavam à espera, impacientes, para pedir esmolas. Todos reconheceram as placas do carro do empresário, e expuseram seus argumentos em um dialeto que caracteriza os moradores pobres da Síria rural.

"Você é meu filho", disse uma senhora de costas encurvadas, usando um véu verde, enquanto exibia a ele a foto de um menino pequeno. "A vida aqui é cruel. Ajude uma pobre velha". Por alguns minutos, o magnata e os mendigos conviveram, todos forasteiros em uma terra que não muito tempo atrás dificilmente seria vista como refúgio por alguém desejoso de fugir aos problemas da região.

Anwar Amro/AFP
Menino refugiado sírio em casa alugada por sua família, em Halba, no norte do Líbano
Menino refugiado sírio em casa alugada por sua família, em Halba, no norte do Líbano

Mas agora, com a guerra civil que varre a Síria entrando em seu terceiro ano, o Líbano está passando por uma inversão de papéis que fez com que perto de um milhão de sírios buscassem refúgio no Líbano, 350 mil dos quais refugiados que fugiram com pouco mais que a roupa do corpo.

Outros, como Abu Ziad, membro da elite rica, bem como membros da classe empresarial e da classe média, estão comprando casas no Líbano em grande número, ou fechando contratos de locação por 12 meses com pagamento adiantado e em dinheiro. O êxodo de Damasco é tão pronunciado que algumas empresas sírias montaram equipes completas de funcionários no exílio a fim de administrar seus negócios na Síria remotamente.

A transformação do Líbano de caso perdido em causa de esperança, aos olhos de muitos sírios, vem, no entanto, causando considerável alarme em Beirute, cujas autoridades estão alertando quanto à falta de recursos para absorver e alimentar os recém-chegados, e quanto à fragilidade de uma sociedade na qual é sempre difícil conter as tensões étnicas e sectárias, e as tensões regionais refletidas na sociedade.

"Não é mais o lugar que conhecíamos no passado", diz Ziad, que está morando em Beirute com a família. "Quem imaginaria vir para cá com outro objetivo que não passar um feriado?"

"Antes disso tudo, costumávamos zombar dos libaneses e da atenção que dedicavam a definir quem era xiita, sunita, cristão e druso. Nunca imaginamos que o mesmo aconteceria entre nós. Agora veja o que temos. O que está acontecendo é um pesadelo. Serão precisos pelo menos cinco anos para que as coisas se aquietem", ele diz.

A imagem dos minaretes da gigantesca mesquita em estilo otomano se reflete nas lentes espelhadas dos óculos escuros de Ziad. Colina abaixo, adiante do santuário que celebra Rafiq Hariri, um primeiro-ministro que terminou assassinado mas cujo dinheiro construiu a mesquita e bancou a renovação do centro de Beirute nos anos 90, pode-se ver duas belonaves russas atracadas no porto. Horas antes, dois aviões de guerra israelenses sobrevoaram Beirute por horas, deixando trilhas brancas de fumaça visíveis no nublado céu de primavera.

A guerra civil do Líbano se esgotou 22 anos atrás, mas a influência das forças regionais que continuam profundamente interessadas naquilo que acontece aqui é evidente para quem quiser observar. Seis quilômetros a sudoeste do centro da cidade, o patrocínio iraniano ao Hizbollah está amplamente visível no setor xiita da cidade, com bandeiras e cartazes adornados pela imagem do aiatolá Khamenei, o líder supremo do Irã. E no norte do Líbano, o baluarte dos sunitas do país, bandeiras turcas e sauditas são vistas regularmente ao lado do estandarte libanês.

PARADOXO LIBANÊS

A duradoura dependência quanto a interesses externos e o influxo de recém-chegados a uma sociedade fragilizada causam profundo incômodo aos senhores feudais libaneses, que já há muitos meses tentam manter pelo menos uma aparência de distanciamento quanto à crise na Síria. Enquanto isso, os combatentes xiitas ligados ao Hizbollah e os combatentes sunitas que apoiam as forças lideradas por Hariri vêm desempenhando papel cada vez mais importante nos campos de batalha do país vizinho.

"Já não é mais possível manter segredo sobre isso", disse Amin Gemmayel, ex-presidente do Líbano e líder da Falange, a organização política dos cristãos do país, que jamais esteve muito distante das tribulações históricas do país. "O Líbano era uma verdadeira democracia e um país liberal, e todos os demais países da região tiraram vantagem disso para criar redutos de proteção aos seus interesses em nosso território. Mas agora não existe mais liberdade, e sim o abuso da liberdade. É o paradoxo libanês".

Gemmayel está na antiga casa otomana que serve de lar à sua família nas colinas próximas a Beirute --o coração da zona cristã do país, onde há medo considerável quanto ao que virá a emergir das ruínas da Síria. Muitas dos refugiados, especialmente os vindos de Damasco, pertencem a diversas seitas cristãs, e alguns deles, como Ziad, perderam fortunas por conta da guerra e da insurgência que paralisam o país.

Gemmayel e outros líderes cristãos contatados pelo "Observer" dizem que o clima no Líbano é assustadoramente parecido com o do passado. "A situação é muito mais perigosa do que em 1975 [quando começou a guerra civil]", disse Gemmayel. "Na época, o país era dividido. Existiam fronteiras [entre as seitas, que formavam comunidades separadas]. Agora já não é mais assim".

Esses temores são ecoados do outro lado da cerca política. Mohammed Obeid, ex-diretor geral do Ministério da Informação libanês, que tem conexões com o Hizbollah e com o líderes do regime da Síria, diz que "há muita mistura entre os sunitas e xiitas, no Líbano. Existem pelo menos 200 mil casos de casamentos entre pessoas das duas seitas, e muitas famílias mistas foram formadas em diversas regiões do país".

"Em 1975, a guerra começou por conta das divisões entre cristãos e muçulmanos. Dessa vez, a maior preocupação é quanto à divisão entre sunitas e xiitas. Sempre que surge um confronto na região, o Líbano paga o preço. Da última vez, em larga medida por conta das ambições de Yasser Arafat [para os palestinos], tivemos 17 anos de guerra, não recuperamos a Palestina e perdemos o Líbano. Agora, o que temo é que os mesmos governos estejam cometendo os mesmos erros. [O ministro do Exterior francês Laurent] Fabius e os europeus, por exemplo, querem, sua fatia do bolo", Obeid afirmou.

Fabius deu a entender na semana passada que a França e o Reino Unido podem desconsiderar a oposição da União Europeia a propostas de armar os elementos da resistência síria que não estejam alinhados a grupos jihadistas. Alguns países membros da União Europeia, entre os quais a Áustria, que comanda uma força de paz nas colinas de Golã, na fronteira entre a Síria e Israel, reiteraram sua oposição à ideia depois que Fabius falou a respeito.

A capacidade do Líbano para absorver os choques da região continua a ser questionada por todos, das Nações Unidas aos protagonistas de passadas guerras. António Guterres, alto comissário da ONU para assistência aos refugiados, alertou na sexta-feira quanto a uma "ameaça existencial ao Líbano", causada pela crise na Síria, e apelou por ajuda ao frágil Estado libanês.

"Já percorremos esse caminho no passado", disse Munir Maqda, líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no campo de refugiados de Ain-al-Halwe, o maior dos 12 campos de refugiados criados no Líbano. "E estamos voltando a fazê-lo". Maqda contou a história de uma recente reunião em Damasco entre autoridades palestinas e sírias, para ilustrar o quanto o relacionamento entre os dois países se deteriorou em consequência da crise.

"O chefe do serviço de inteligência da OLP em Ramallah liderou uma delegação em visita a[o ministro assistente do Exterior Faiusal] Meqdad, em fevereiro", ele disse. "Dissemos que gostaríamos de manter os palestinos isolados, declarando neutralidade política".

O encontrou foi agendado depois que grande número de palestinos sírios fugiram de Damasco em dezembro, e quando irromperam confrontos no principal campo de refugiados, em Yarmouk --o que acrescenta mais uma dimensão à crise dos refugiados no Líbano.

"E ele nos disse que ou estávamos com eles ou estávamos contra", relata Maqda. "E que a decisão deles já tinha sido tomada".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

 

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