Jornalista relembra visita do diretor de "12 Anos de Escravidão" a São Paulo
"Sinto muito se eu esperava ver negros na universidade. Nunca mais farei essa pergunta."
Com essa frase irônica e dita em tom mal-humorado, Steve McQueen despediu-se da turma de alunos do departamento de artes da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) que, em um dia de abril de 2001, compareceu a um encontro com o artista plástico britânico, que acabava de inaugurar uma exposição no MAM-SP (Museu de Arte Moderna de São Paulo).
Na época, aos 31 anos, antes de se tornar o diretor de três longas que ampliaram a difusão de seu nome -o mais recente, "12 Anos de Escravidão", concorre a nove Oscars no domingo que vem-, ele não parecia nada animado com a agenda de compromissos daquela estada na cidade.
Adriana Guivo/Divulgação/FAAP | ||
O artista plástico e cineasta Steve McQueen (de rosa), do favorito ao Oscar "12 Anos de Escravidão", durante sua fala para estudantes da Faap |
Diante dos alunos da Faap, sempre com ar provocador, indagou por que não havia negros naquela plateia universitária e em outras situações, como o vernissage de sua exposição, ocorrido na véspera.
Ao deixar clara sua decepção com o elitismo que vinha presenciando, McQueen desencadeou um clima de desconforto. A maioria dos estudantes reagiu com um "não é bem assim".
Alguém disse que ali era a faculdade mais cara do país e que, antes de tirar conclusões, ele deveria procurar conhecer melhor o Brasil, visitar diferentes regiões e se deparar com a
multiplicidade cultural do país.
"Vocês estão muito defensivos, parece que pisei em algo sensível. Não estou agitando bandeiras, mas, desde que aqui cheguei, percebo que as pessoas não ficam à vontade quando toco nesse assunto. É como se certas questões, no Brasil, estivessem deixadas de lado, tornando-se invisíveis", disse.
No fundo da sala, eu me surpreendia com aquele primeiro encontro com McQueen. Eu lá estava para escrever sobre o cogitado intercâmbio que deveria ocorrer entre estudantes brasileiros de artes e aquele artista plástico com nome idêntico ao de um dos atores mais famosos do cinema americano, que parecia avesso a bajulações sociais.
O texto me havia sido solicitado pelo No. (No Ponto), publicação virtual então recém-lançada, que deixaria de existir em 2007 (já com o nome No Mínimo). Se bem me lembro, não havia outra chance de contato com McQueen, que não estava marcando entrevistas durante a rápida passagem por São Paulo.
Aquele tumultuado encontro, no entanto, muito revelou sobre o artista, que ganhara o Prêmio Turner dois anos antes e que hoje é mais conhecido como cineasta.
Na exposição no MAM, foram exibidos três vídeos de McQueen, que considerava uma evolução ter abandonado os tradicionais desenho, pintura e escultura para fazer uso da câmera. "Estou interessado em fazer um trabalho que não seja rotulado", explicou, quando eu lhe perguntei sobre sua obra.
Suas videoinstalações ficaram na memória. Feitas a partir de registros nas antigas películas de 16 mm ou super-8, depois convertidos em vídeo, impressionavam pelo virtuosismo com que ele captava os movimentos. "Bear", em preto e branco e com 10 minutos de duração, mostrava dois negros, um deles o próprio McQueen, em uma luta quase ritualística. As imagens, projetadas do teto ao chão de uma parede, numa sala escura, interferiam na mobilidade e no sentido de espaço do observador, estimulando-o a se deslocar e despertando uma noção de ameaça.
"Quero que meu trabalho tenha o efeito de um bumerangue, que vai e volta. Prefiro filmar em preto e branco porque permite evidenciar os contrastes do movimento e os limites esculturais das imagens. A cor representa um excesso, que eu procuro sugar como se estivesse usando uma seringa. Por meio do silêncio que envolve a exibição dos filmes, procuro gerar um estímulo no observador, de maneira que ele fique mais sensível a si mesmo, percebendo sua própria presença e respiração", definiu McQueen.
A fragilidade humana, as situações de encarceramento físico e psicológico e também as injustiças sociais foram as conotações mais fortes deixadas pela obra de McQueen e por suas reações naquele encontro de quase 13 anos atrás. Hoje, dão coerência e alargam a compreensão sobre esse artista, que se diz influenciado apenas pela vida real.
ANA FRANCISCA PONZIO é jornalista, crítica e curadora na área de dança. Edita o site Conectedance (www.conectedance.com.br).
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