Obama frustra promessa de igualdade entre brancos e negros nos EUA
RESUMO A era Obama foi incapaz de mudar as relações raciais nos Estados Unidos, que vivem o engodo da diversidade, termo que camufla a violência do racismo. Em tempos de movimentos como o Black Lives Matter, autores escrevem, em diferentes registros, sobre a farsa da América que integra brancos e negros.
*
"Não lamente, organize. Não se desespere, crie." Essa foi a mensagem escrita pelo jornalista Jeff Chang na noite da contagem dos votos que iria confirmar a eleição de Donald Trump como futuro presidente americano.
Publicada no Twitter e rapidamente retransmitida por seguidores, faz um aceno a fase parecida na história dos EUA: "não lamente, organize!" eram as palavras de ordem da campanha de um sindicato de trabalhadores na era Reagan (1981-89), outro republicano que recebia as chaves da Casa Branca de um democrata e figura tão midiática quanto o magnata nova-iorquino.
"Precisamos contar com a força criadora dos artistas para continuar a acreditar que a mudança é possível", diz por e-mail Chang, também diretor do Instituto para a Diversidade nas Artes, da Universidade Stanford, na Califórnia. Ele está lançando seu terceiro livro, "We Gon' Be Alright: Notes on Race and Resegregation" (Picador; ficaremos bem: apontamentos sobre raça e ressegregação). A obra trata da amplitude do racismo na sociedade americana sob o ponto de vista de um dos intelectuais mais ativos do movimento multiculturalista ali.
Alex Wong/Getty Images/AFP | ||
Membros do Black Lives Matter em caminhada no Dia de Martin Luther King, em Washington |
Os sete ensaios funcionam como peças argumentativas independentes e misturam reportagem, análise e opinião. Ao final, fica claro que, no que se refere a relações raciais, quase nada mudou na era Obama. Por esse raciocínio, o triunfo de Trump seria mera continuação lógica dos mandatos do primeiro presidente negro da América.
Chang destrincha as mortes de negros pela polícia, a posterior organização de protestos pelo país, o nascimento do movimento #BlackLivesMatter (vidas negras importam), o declínio e a subversão do conceito de diversidade, a ressegregação das escolas públicas e a gentrificação –tudo tendo como pano de fundo o que ele chama de "guerras culturais" que engendram o racismo. Além disso, assina um texto autobiográfico para explicar por que, num país onde todos são e estão separados em rótulos identitários, apesar do mito da integração racial, ele se sente obrigado a falar de si como "asian-american" (americano de origem asiática).
"Extremistas da guerra cultural regam as ervas daninhas da insegurança para que as do ódio cresçam. E fazem isso agarrando-se ao temor dos brancos sobre o futuro, combinando a insegurança econômica e o eclipse demográfico [termo decalcado de projeções segundo as quais, em 2042, os EUA serão majoritariamente não-brancos]".
Para o jornalista, que não acredita no uso do termo diversidade (segundo sua leitura, apenas uma ferramenta para nos desviar do verdadeiro debate sobre racismo), só a juventude poderá apresentar novas propostas. É por isso que a obra é dedicada aos "jovens que não abaixam suas cabeças".
Chang considera o movimento #BlackLivesMatter, nascido em uma mensagem de Facebook da artista Alicia Garza, uma dessas novidades. Ele sustenta que, na contramão da mobilização pela ampliação dos direitos civis dos anos 1960, a articulação de agora tem caráter ecumênico, inclui quem ficou à margem décadas atrás.
Os assassinatos de Trayvon Martin, Michael Brown, Eric Garner e Tamir Rice deram origem ao movimento mas também a outras demonstrações públicas de indignação. Obama disse em 2013 que Trayvon poderia ser seu filho –e depois teve de mudar o tom, quase como um pedido de desculpas à reação da opinião branca.
CORPO NEGRO
Mais contundente, no entanto, foi a resposta de Ta-Nehisi Coates, repórter e colunista da revista "The Atlantic". Em 2015, o jornalista lançou "Entre o Mundo e Eu" (Objetiva), carta a seu filho adolescente Samory Touré sobre a fragilidade do corpo negro nos Estados Unidos.
"Não sei o que significa crescer com um presidente negro, redes sociais, uma mídia onipresente e mulheres negras por toda parte com seu cabelo natural. O que sei é que quando eles soltaram o homem que matou Michael Brown, você disse: 'Vou indo'. E isso me toca porque, apesar de toda a diferença entre nossos mundos, na sua idade meu sentimento foi exatamente o mesmo", escreve Coates na primeira parte do livro.
Em "Entre o Mundo e Eu", Coates fala em "corpo negro" justamente para deixar todas as questões subjetivas do racismo fora do livro. A questão é objetiva: racismo mata –como escreve Jeff Chang na introdução de "We Gon' Be Alright".
"Nosso léxico inteiro –relações interraciais, discriminação, justiça racial, privilégio branco e mesmo supremacia branca– serve apenas para obscurecer a experiência visceral do racismo, o fato de que ele pode destruir cérebros, impedir de respirar, rasgar músculos, extirpar órgãos, quebrar ossos e arrancar dentes."
O conteúdo que Coates oferece ao filho não é nem um pouco otimista. Ele desfia todos os seus medos e as ameaças que vê pairar sobre a vida de um adolescente negro americano nos dias de hoje. Na segunda parte do livro, relembra a história de seu colega de universidade, Prince Jones, morto pela polícia em 2000.
Para Coates, a única razão de ser da conversa publicada em livro é ajudar seu filho a achar uma maneira "de viver livre em um corpo negro". Ele não espera que as coisas mudem tão cedo; a realidade não consegue desfazer a ilusão que muitos ainda nutrem sobre a existência de uma integração entre brancos e negros na América.
SARCASMO
O escritor Paul Beatty, radicado em Nova York, é outro desiludido, mas escolheu a ficção para falar de um país sempre desunido. Com seu sexto livro, "The Sellout" (ed. Farrar, Straus and Giroux; o vendido, em tradução livre), foi o primeiro americano a ganhar o prêmio internacional de língua inglesa Man Booker. Chamado por alguns críticos de "um romance de humor", o tomo é escrito com um sarcasmo ácido e enfileira sem eufemismos estereótipos do racismo e das divisões entre brancos e negros nos EUA. Impossível evitar o sorriso amarelo.
"Pode ser difícil de acreditar, vindo de um homem negro, mas eu nunca roubei." Assim começa a história de Me (seu nome completo nunca é dito), que será o narrador de seu próprio julgamento na mais alta corte americana.
Tudo se passa na periferia de Los Angeles, onde o protagonista vive de cultivar melancias e maconha. Quando a gentrificação faz seu bairro desaparecer, ele sente ir com ele sua identidade. De uma forma quase surrealista, Me acaba aceitando um desempregado negro como seu escravo e vira um defensor da separação dos estudantes por raça. As acusações de escravizar uma pessoa e de defender a volta da segregação nas escolas, num período em que o termo diversidade é brandido pelo senso comum, o levarão ao banco dos réus da Suprema Corte americana.
Beatty usa muitas vezes e sem pedir desculpas o insulto "nigger" –e é questionado por isso. Em uma entrevista à revista "Rolling Stone", diz que "muitas vezes o que é mais inapropriado é o mais necessário". Beatty conta que sua primeira experiência direta com o racismo se deu quando, no segundo ano primário, foi chamado de "nigger". Na hora de escrever "The Sellout", avaliou que não poderia deixar esse termo para trás.
É assim que se lê o romance: como uma conversa aberta sobre racismo escrita com o sarcasmo amargo de quem vive seu peso todos os dias.
A cena final da história descreve, sem muitos detalhes, o que acontece no tal bairro gentrificado um dia depois da posse de um homem negro (uma clara referência a Barack Obama). Um diálogo entre um personagem e Me, o narrador, gira em torno do fato de a América ter finalmente quitado sua dívida com a população negra. Me pergunta então: "E os índios? E os chineses, os japoneses, os mexicanos?".
Cada um com seu formato, ensaio ou ficção, os três autores compartilham uma visão: não sobrou, para o início da era Trump, nenhuma ilusão sobre grandes mudanças na sociedade no que se refere a racismo e integração de brancos e negros nos EUA.
IZABELA MOI, 46, é jornalista.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade