Diário de Cambridge: intelectuais discutem a era Trump

CHRISTIAN SCHWARTZ

Uma "intelligentsia" universitária encastelada, olhando a vida real do alto de sua sapiência, pode até fazer sentido em tempos de calmaria política e social. Mas, neste turbulento início de era Trump, ao qual se soma o "brexit", se ainda havia quem se isolasse física e metafisicamente do rés do chão no pequeno mundo da melhor elite intelectual, vai ficando cada vez mais difícil resistir à pressão para desembarcar da proverbial torre de marfim.

Há fartos indícios disso já nos primeiros dias do trimestre letivo em Cambridge, a cidadezinha encantadora no sudeste da Inglaterra onde o que não faltam são aconchegantes aposentos para recolhimento intelectual –dentro e fora dos muros dos 31 "colleges" que compõem a quarta mais antiga universidade do mundo, estabelecida por decreto real em 1231.

O King's, um dos "colleges" mais prestigiosos, recentemente abriu as portas para um "teach-in" –espécie de maratona de palestras e debates– organizado em solidariedade ao grupo Resist J20, o coletivo internacional de ativistas por trás dos protestos na estreia de Donald Trump como presidente (o J20 da sigla se refere à data em que ocorreu a posse, 20 de janeiro).

Uma pequena multidão de estudantes e pesquisadores passou um sábado inteiro atenta às lições sobre racismo e islamofobia, educação, ambiente e a temida ascensão do autoritarismo –ou, para ir direto ao ponto, de políticos e partidos direitistas, conforme avisava o título geral do evento: "The Rise of the Right" [a ascensão da direita].

INCREDULIDADE

O Centro para Discussão Política de Cambridge promoveu ainda uma mesa-redonda sobre o discurso de posse de Trump –assistido antes do debate num telão, ao vivo– da qual participaram o professor David Runciman, ensaísta e comentarista político com presença constante na imprensa britânica e titular do ótimo podcast Talking Politics (acast.com/talkingpolitics), e seu colega Aaron Rapport, além de uma das lideranças mais ativas nas manifestações que se multiplicam, a doutoranda em política Maha Rafi Atal. A tônica da noite não foi menos que alarmista: melhor se organizar antes que seja tarde.

Entre manifestações de incredulidade (Runciman disse que a posse o deixara mais chocado que a própria eleição de Trump) e alerta (para Rapport, um ataque terrorista de grandes proporções agora viria bem a calhar para a nova Casa Branca), a declaração mais contundente foi mesmo de Rafi Atal: "Isso é a coisa mais próxima de um fascismo americano que se poderia esperar".

O BEM SEM OLHAR A QUEM

Perto dali, mais um jovem pesquisador, Farhan Samanani, canadense de família imigrante como a nova-iorquina Rafi Atal, instruía uma pequena assembleia sobre outro coletivo que tem movimentado a elite acadêmica de EUA e Inglaterra: o "Do All The Good" –o nome é inspirado no lema metodista que chegou a virar mote da campanha de Hillary Clinton: algo como um chamado a se fazer o bem quando, como, onde e a quem for possível. A partir de um ambiente digital próprio que se assemelharia a uma plataforma de rede social, ainda em desenvolvimento, a ideia é se infiltrar nos hábitos de relacionamento virtual das pessoas para, pela mesma lógica que as induz a espalhar notícias falsas, por exemplo, disseminar iniciativas e ideias "do bem".

CONTRAPONTO IMPIEDOSO

Como nota dissonante a uma agitação política que é, em essência, anti-Trump, o pensador best-seller Nassim Nicholas Taleb –célebre por sua teorização sobre eventos de difícil previsão, os "cisnes negros"– não poupou o que considera erros básicos de avaliação por parte da elite acadêmica das ciências sociais, berço da maioria dos ativistas de esquerda. Numa concorridíssima conferência do ciclo Extremes, já disponível online (sms.cam.ac.uk/media/2406625), surpreendeu ao exibir num slide uma foto de Obama com um de seus principais assessores, Cass Sunstein, e confessar alívio por finalmente ver "esses caras" fora da Casa Branca.

Para Taleb, grande parte das políticas sociais do ex-presidente, marcadas pelo trabalho da equipe que Sunstein chefiava, simplesmente teriam se baseado em leitura condescendente (e equivocada) de dados e estatísticas –prática que o autor batizou de pikettysmo. A alusão ao mais recente herói da esquerda mundial, o economista francês Thomas Piketty, foi impiedosa: "Pikettysmo é quando o sujeito escreve um livro de 500 páginas para esconder o fato de que não sabe fazer contas".

CHRISTIAN SCHWARTZ, 41, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.

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