Leia trecho de conto inédito da Nobel canadense Alice Munro; nova antologia sai em março

ALICE MUNRO
tradução PEDRO SETTE-CÂMARA

SOBRE O TEXTO Este trecho faz parte do conto "Liquens", que integra "O Progresso do Amor", livro inédito da Nobel de Literatura de 2013 que a Biblioteca Azul lança em março.

O pai de Stella construíra aquele lugar como casa de veraneio, sobre as falésias de argila que davam para o lago Huron. Sua família sempre se referia a ela como "a cabana de verão". David ficou surpreso quando a viu pela primeira vez, porque ela não tinha nada do charme do pinho nodoso, do aconchego de tábuas espraiadas que aquelas palavras sugeriam. Um garoto da cidade, oriundo daquilo que a família de Stella chamava de "um ambiente diferente", ele não tinha nenhuma experiência de lugares de verão. Ela era e é uma casa nua de madeira, pintada de cinza -uma cópia das antigas casas de fazenda das redondezas, ainda que talvez menos imponente. Na frente dela ficam as falésias íngremes - elas também não são imponentes, mas estão aí até hoje -e uma longa escadaria que leva à praia. Atrás dela fica um pequeno jardim gradeado, onde Stella planta vegetais com habilidade e jeito, uma faixa curta e arenosa, e uma selva de arbustos de mirtilos selvagens.

Na hora em que David vira o carro na entrada, Stella sai dos arbustos, com um coador cheio de mirtilos. Ela é uma mulher baixinha, gorda, de cabelo branco, que usa jeans e uma camiseta suja. Não há nada embaixo dessas roupas, até onde ele consegue enxergar, para apoiar ou conter qualquer parte dela.

"Olha só o que aconteceu com a Stella", diz David, encolerizado. "Virou uma ogra."

Catherine, que nunca vira Stella antes, diz, com decência: "Bem. Ela está mais velha".

"Mais velha do que o quê, Catherine? Mais velha do que a casa? Mais velha do que o lago Huron? Mais velha do que o gato?"

Há um gato dormindo no caminho ao lado da horta. Um felino macho, ruivo, com orelhas mutiladas na batalha e um olho acinzentado. Seu nome é Hércules e ele é da época de David.

"Ela é mais idosa", diz Catherine, num tênue enfrentamento. Mesmo enfrentando, ela é mansa. "Você está me entendendo."

David acha que Stella fez isso de propósito. Não se trata apenas de aceitar a deterioração natural -ah, não, é muito mais. Stella sempre faz drama. Mas não é só Stella. Existe aquele tipo de mulher que precisa irromper do invólucro feminino nessa idade, exibindo as banhas ou uma magreza indecente, deixando crescer verrugas e pelo na cara, recusando-se a cobrir as pernas macilentas, cheias de veias, quase jubilosa com isso, como se isso fosse o que ela sempre quisesse ter feito. Aquele tipo que desde sempre odiava os homens. Hoje em dia não se pode falar em voz alta uma coisa dessas.

Ele parou perto demais dos arbustos de mirtilos -perto demais para Catherine, que se esgueira para fora do carro do lado do passageiro e imediatamente está encrencada. Catherine é esguia o bastante, mas seu vestido tem uma saia cheia e mangas longas e onduladas. É um vestido de crochê, em tons de rosa-claro a rosa-choque, com inúmeras dobras pequeninas e irregulares que parecem rugas. Um belo vestido, mas longe de ser uma boa escolha para o terreno de Stella. Os arbustos de mirtilos ficam agarrando-o por toda parte, e Catherine precisa ficar se soltando.

"David, puxa, você podia ter dado a ela algum espaço", diz Stella.

Catherine ri de sua situação. "Tudo bem. Tudo bem, mesmo."

"Stella, Catherine", diz David, apresentando.

"Pegue alguns mirtilos, Catherine", diz Stella com simpatia. "David?"

David sacode a cabeça, mas Catherine pega alguns. "Lindos", diz ela. "Quentes de sol."

"Não aguento mais olhar para eles", diz Stella.

De perto, Stella parece um pouco melhor -com sua pele macia e bronzeada, o cabelo infantil em cuia, os grandes olhos castanhos. Catherine, inclinada em cima dela, é uma mulher alta, frágil e ossuda, com cabelo louro e pele sensível. A pele dela é tão sensível que não aguenta maquiagem nenhuma e é facilmente inflamada por resfriados, por comidas, por emoções. Ultimamente ela tem usado sombra azul e rímel preto, o que, para David, é um erro. Enegrecer aqueles espaçosos cílios enfatiza o azul aguado dos olhos dela, que ficam parecendo não suportar a luz do dia e a secura da pele abaixo. Quando David conheceu Catherine, cerca de um ano e meio atrás, ele achou que ela tinha pouco mais de trinta anos. Ele via muitos resquícios de feminilidade; ele amava a tez clara e a fragilidade dela. Ela tinha envelhecido desde então. E, aliás, era mais velha do que ele tinha achado -já está beirando os quarenta.

"Mas o que você vai fazer com eles?", pergunta Catherine a Stella. "Geleia?"

"Já fiz uns cinco milhões de vidros de geleia", diz Stella. "Eu coloco os mirtilos em vidros pequenos com aquelas toalhas quadriculadas metidas a besta e dou de presente para todos os meus vizinhos que são preguiçosos demais ou espertos demais para catar os deles. Às vezes eu não entendo por que eu simplesmente não deixo a fartura da natureza apodrecer nos ramos."

"Mas eles não estão em ramos", diz David. "Estão nesses malditos arbustos espinhentos, que deviam ser retirados e queimados. Aí sim haveria espaço para estacionar."

Stella diz a Catherine: "Escute só ele, ainda parece um marido falando".

Stella e David foram casados por vinte e um anos. Estão separados há oito.

"Verdade, David", diz Stella, contrita. "Eu deveria removê-los. Há uma longa lista de coisas que eu nunca efetivamente faço. Vamos entrar e eu vou mudar de roupa."

"A gente precisa parar na loja de bebidas", diz David. "Eu não tive tempo."

Uma vez a cada verão, ele faz essa visita, sempre o mais perto possível do aniversário do pai de Stella. Ele sempre leva o mesmo presente: uma garrafa de uísque escocês. Este aniversário é o de noventa e três anos do sogro dele, que está num asilo a poucos quilômetros dali, onde Stella pode visitá-lo duas ou três vezes por semana.

"Eu só preciso tomar um banho", diz Stella. "E colocar alguma coisa mais vistosa. Não para o papai, que está completamente cego a esta altura. Mas eu acho que os outros iriam gostar, eu vestida de rosa, de azul ou algo assim os deixa alegres, como deixaria um balão. Vocês dois têm tempo de tomar um drinque rápido. Aliás, pode fazer um para mim também.

Ela os leva, em fileira, pelo caminho que dá à casa. Hércules não se mexe.

"Bicho preguiçoso", diz Stella. "Está ficando ruim feito o papai. David, você acha que a casa precisa ser pintada?"

"Acho."

"Papai sempre disse para pintar a cada sete anos. Eu não sei -estou pensando em colocar um revestimento. Mesmo depois que eu adaptei a casa para o inverno, parece que eu moro num engradado aberto."

Stella mora ali o ano inteiro. No começo, um ou outro dos filhos muitas vezes estaria com ela. Agora, porém, Paul está estudando engenharia florestal no Oregon e Deirdre está dando aulas numa escola de língua inglesa no Brasil.

"Mas você consegue uma cor como aquela no revestimento", diz Catherine. "É tão bonita, aquela cor desgastada pelas intempéries."

"Eu estava pensando em creme", diz Stella.

ALICE MUNRO, 85, escritora, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2013.

PEDRO SETTE-CÂMARA, 39, é tradutor.

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