O casal de cientistas brasileiros que se destaca na luta contra a malária

Ruth e Victor Nussenzweig desenvolveram estudo-chave para a produção de uma vacina

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MARCELO LEITE
ilustração FERNANDO VILELA

RESUMO Ruth e Victor Nussenzweig, 88, ela, parasitologista, ele, imunologista, desenvolveram estudo-chave para a produção de uma vacina contra a malária a ser testada em breve. Radicados em NY há mais de 50 anos (a contragosto, segundo dizem), lembram realizações e dissabores da vida dedicada à ciência.

Crédito: Reprodução

Talvez só ocorra à irreverência de um pesquisador brasileiro descrever sua paixão pela ciência nos termos a que recorre o imunologista Victor Nussenzweig, 88: "Tem duas alegrias na vida: uma é o sexo, outra é [realizar] uma descoberta científica".

Diante do chiste, sua mulher, Ruth Nussenzweig, 88 (ela morreu em 2018), a maior responsável por uma descoberta fundamental sobre a malária, limita-se a levantar as sobrancelhas.

A conversa acontece no apartamento do casal na rua Bleecker, em Nova York. É nos Estados Unidos que, há meio século, eles dão vazão ao furor científico que Victor compara à pulsão sexual.

O Brasil, apesar da distância, está sempre presente naquela casa. Nas paredes, com quadros primitivistas como os do pintor Agostinho Batista de Freitas (1927-97). Mas também nos traumas da ditadura e nos estudos sobre doença de Chagas e leishmaniose.

Ao longo de duas horas de entrevista, os vermes, mosquitos e micróbios do gênero Plasmodium que ocuparam o centro da vida profissional dos Nussenzweigs são esconjurados com frequência.

Causador da malária, o parasita infectou em 2015 estimados 212 milhões de pessoas no mundo e matou 429 mil, a maioria crianças da África. Responde por 5% das mortes até os cinco anos de idade resultantes de infecções, só perdendo para pneumonia (16%), diarreia (9%) e sepse neonatal (7%).

"A fêmea do mosquito é uma FDP", diz Victor, recorrendo ao acrônimo que dispensaria em outros momentos da conversa, quando a cuidadora Esmeralda não estava na sala ampla do prédio de apartamentos da Universidade de Nova York (NYU). O imunologista se referia ao fato de a fêmea do anofelino necessitar de proteínas do sangue de mamíferos para amadurecer seus ovos.

Ruth, a menos falante do casal, respira com alguma dificuldade e compensa a ênfase minguante nas palavras com um ligeiro arregalar dos olhos claros, intensos. Entrou para a prestigiada Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos em 2013 por uma descoberta que em outubro completará 50 anos: a imunidade de roedores contra malária após irradiação de esporozoítos –uma das formas assumidas pelo plasmódio em seu ciclo de vida– com raios X seguida de injeção nas veias do animal.

A pesquisa de 1967 usou camundongos e a variedade Plasmodium berghei do parasita, que provoca malária em roedores. Na maioria dos casos, seres humanos caem doentes com P. falciparum e P. vivax, que chegam ao sangue por meio de picadas de mosquitos do gênero Anopheles e se instalam no fígado da pessoa, onde amadurecem e se reproduzem.

Os sintomas surgem de uma a quatro semanas depois: dores de cabeça, febre, vômito, anemia... Característicos da malária, também chamada de impaludismo e maleita, são os acessos de calafrios seguidos de intenso suor.

A espécie mais perigosa para humanos é o P. falciparum, que predomina na África, onde ocorrem 90% dos casos e 92% das mortes registradas no mundo. No Brasil, o mais comum é o P. vivax, causador de uma infecção mais benigna, recorrente na região amazônica. Em 2016, notificaram-se no país 129 mil casos (0,06% do total mundial), uma redução de 77% na comparação com 2006, e apenas 34 mortes (0,08% da cifra global).

MOSQUIRIX

O experimento de Ruth com roedores marcou o ponto de partida para a prolongada busca de uma vacina. Até então, acreditava-se que a imunização talvez fosse impossível, uma vez que as pessoas afetadas não adquiriam defesa contra a doença, mesmo após repetidos episódios.

Só agora a busca veio a dar frutos, e não de todo maduros.

O mais avançado deles, desenvolvido a partir do trabalho dos Nussenzweigs e batizado de Mosquirix pela farmacêutica Glaxo SmithKline (GSK), será testado em larga escala a partir do ano que vem em três países africanos: Gana, Maláui e Quênia.

A Mosquirix, também conhecida como RTS,S, não é a vacina dos sonhos de ninguém. A taxa de imunização entre crianças é de 36%, quatro anos após a injeção.

Agora se trata de comprovar que o mesmo nível de proteção pode ser alcançado nas condições reais dos serviços de saúde africanos. Esse programa piloto, que se estenderá até 2020, tem orçamento de US$ 49,2 milhões (cerca de R$ 155 milhões).

Parece muito dinheiro para uma vacina de baixa eficácia. Aplicada em massa na África, a RTS,S poderia em princípio evitar até um terço das mortes de crianças por malária –dezenas de milhares, talvez até uma centena. Um feito que poderia chamar a atenção do comitê do Nobel em Medicina.

"Minha mãe diria que é um monte de crianças [salvas]", afirma Michel Nussenzweig, 62, professor titular da Universidade Rockefeller e também membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos (leia texto sobre ele ).

O médico Victor Nussenzweig, que pesquisa a malária
O médico Victor Nussenzweig, que pesquisa a malária - João Carlos Volotão/Folhapress

FAMÍLIA

O clã Nussenzweig é uma usina de cientistas. Os outros dois filhos de Ruth e Victor também se encaminharam para a vida acadêmica: André, especialista em mecanismos de reparo de cadeias de DNA, atua nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA; Sonia, antropóloga da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, estuda práticas de profissionais de saúde.

Em que pese a letra divergente no sobrenome, o físico Herch Moysés Nussenzveig, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é irmão de Victor e, como esse e Ruth, integrante da Academia Brasileira de Ciências. Paulo Nussenzveig, físico da USP, é sobrinho do casal. Philip, neto, faz pesquisas na Universidade Cornell (EUA).

Apesar disso, Michel assegura que Ruth e Victor nunca pressionaram os filhos a seguir carreira científica. "Meus pais amavam o que faziam, falavam com paixão. Mas não nos direcionaram [para isso]. Sabiam que não era coisa fácil de fazer. Você fica trabalhando nisso por muito, muito tempo."

Só na NYU o casal leva mais de 50 anos. Sua imersão na ciência começou muito antes, como segundanistas da Faculdade de Medicina da USP, onde ingressaram juntos em 1948.

Ele, filho de um judeu oriundo da Polônia que vendia cobertores pelas ruas do Canindé. Ela, ainda Ruth Sonntag, seguia o rumo dos pais, médicos de Viena que emigraram para o Brasil quando a menina tinha dez anos.

O primeiro trabalho da dupla inseparável –namoro e casamento viriam anos depois– nasceu do desgosto que partilharam ao conhecer o expediente "medieval" então usado para diagnosticar o mal de Chagas. O método empregava o próprio inseto transmissor na pele do paciente.

Cinco barbeiros isentos do protozoário Trypanosoma cruzi, instalados em caixinhas com um dos lados fechados por gaze, eram postos sobre o braço do possível doente, ignorante do conteúdo. Em minutos, os insetos picavam o sujeito através da gaze, e o dispositivo era retirado. Um mês e meio depois, cortava-se a cloaca do bicho, e o conteúdo era examinado ao microscópio para verificar a presença de tripanossomos.

"Ruth e eu ficamos horrorizados", conta Victor. Partiram então para o desenvolvimento de um método de diagnóstico "in vitro". Sangue sabidamente infectado foi acondicionado em um tubo de vidro, para que barbeiros não infectados pudessem sugá-lo sem tocar a pele da pessoa.

Não foi trivial encontrar a membrana certa para selar a proveta.

A primeira tentativa, com "camisinhas de Vênus", na expressão deles, não deu certo. Foi numa visita ao mercado que o casal identificou o produto adequado: tripas usadas para fazer salsichas e linguiças. O barbeiro adorou.

Esperaram os 45 dias para ver se o protozoário se multiplicara no trato digestivo do inseto. Ao ver que o experimento dera certo, pularam como meninos pelos corredores de pé-direito alto da Faculdade de Medicina.

SANGUE AZUL

O segundo feito do casal na área de parasitologia também teve a ver com o mal de Chagas. Além da transmissão pelo barbeiro, a doença pode ser causada pela transfusão de sangue de doadores infectados por tripanossomos.

Num livro sobre corantes cedido por Michel Rabinovitch, da Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp), aprenderam que a violeta de genciana não era muito tóxica para humanos e matava o verme nematódeo Strongyloides stercoralis.

Era um bom candidato para tentar eliminar o T. cruzi das bolsas de sangue, e os Nussenzweigs constataram que funcionava em laboratório. Aí o colega Vicente Amato Neto, que se tornaria um renomado infectologista, "fez uma coisa completamente louca", à moda do século 19, nas palavras de Victor: administrou a si próprio o sangue com tripanossomos vivos tratado com genciana.

Os apelos da dupla para dissuadi-lo foram em vão. Comprovou-se assim que o método era eficaz também "in vivo". Por muito tempo o sangue de doadores de regiões em que a doença de Chagas era endêmica se apresentava com uma coloração azulada.

Formados em medicina, os Nussenzweigs se mudaram para Fortaleza com Michel, então com um ano de idade, a fim de colher amostras para uma pesquisa de doutorado sobre leishmaniose.

Victor dirigia um jipe da capital até Sobral por estradas de terra, recolhendo pelo caminho o sangue de cachorros (que compõem o reservatório de parasitas do gênero Leishmania, um parente dos tripanossomos). Na segunda viagem, conta o pesquisador, os cães disparavam pela caatinga quando davam com o jipe.

Ruth, grávida de Sonia, encarregava-se dos cachorros de Fortaleza. Cuidava também das amostras de sangue, que precisavam permanecer refrigeradas –desafio considerável numa capital nordestina dos anos 1950, onde o fornecimento de energia sofria repetidas falhas.

O casal resolveu o problema contratando um "interruptor humano". O cabra ficava ao pé do gerador vigiando uma lâmpada acesa dia e noite. Se ela se apagasse, indicando a falta de eletricidade na rede, o empregado ligava o motor do gerador.

DITADURA

Um cientista brasileiro, naqueles tempos, não conseguiria avançar muito sem se transferir para o exterior. Victor solicitou uma bolsa à Fundação Rockefeller para ir aos EUA, apenas para ouvir do representante no Rio que fosse pedir dinheiro a Josef Stálin, o ditador soviético.

Isso porque Nussenzweig era membro do Partido Comunista Brasileiro, assim como o amigo Luiz Hildebrando Pereira da Silva (1928-2014), com quem estudara do ginásio à medicina.

Ruth obteve em 1958 uma colocação para pós-doutorado no Collège de France, em Paris. Partiram para lá com dois filhos, Michel e Sonia, mais uma bolsa de 325 dólares mensais do CNPq, engordados por 60 dólares de uma instituição canadense.

O apartamento arrumado por um tio de Ruth, em frente ao jardim de Luxemburgo, não tinha aquecimento. Providenciaram um aparelho a querosene para o quarto das crianças. "Mas vivíamos felizes. Bons tempos", recorda Victor.

O casal voltou brevemente ao Brasil em 1960. Em 1963, seguiu para a Universidade de Nova York (NYU), ela para trabalhar com o húngaro Zoltan Ovary, ele para o grupo de Baruj Benacerraf (Nobel em Medicina de 1980).

Ruth diz que nunca se adaptou de todo. "Não gosto de viver nos Estados Unidos." Ao que o marido acrescenta: "Infelizmente a gente está preso neste lugar".

Tentaram voltar ao Brasil em 1964, mas o contato com a atmosfera criada na USP pela ditadura os fez mudar de ideia. Luiz Hildebrando estava preso num navio em Santos. Victor reuniu todos os seus livros marxistas e os queimou em uma chácara. "Fiz o que Hitler fazia", conta com amargura.

Contrariando conselhos de amigos, Victor foi à Faculdade de Medicina para recolher papéis comprometedores. Acabou convocado por um coronel destacado para a escola, que o interrogou sobre seus vínculos com o PCB. "Expliquei covardemente que não tinha nada a ver com comunistas."

PROTEÍNA

De volta aos EUA, Ruth conquistou a posição de professora da NYU em 1965. Dois anos depois, liderou o trabalho sobre imunização de roedores contra a malária. Em menos de uma década, tornou-se a primeira mulher a chefiar uma divisão (parasitologia) na universidade.

Victor, num laboratório distante do dela, especializou-se na bioquímica do sistema imunológico.

Marido e mulher se debruçaram então sobre o enigma do mecanismo por trás da imunidade adquirida pelas cobaias injetadas com os esporozoítos irradiados com raios X.

Após vários anos, localizaram na proteína CSP o elemento desencadeador da produção de anticorpos. A caracterização dela foi publicada pela dupla no periódico científico britânico "Nature" (onde também saíra o trabalho de 1967 sobre esporozoítos).

Um dos experimentos para tentar repetir em humanos a imunização obtida com roedores foi realizado com voluntários em um presídio de Nova York. No entanto, Ruth, autora do estudo, não podia entrar na prisão masculina, território então proibido para mulheres.

A CSP tem um elemento crucial para a imunização: as repetições de um certo grupo de aminoácidos –o R da sigla RTS,S, a vacina que será testada de 2018 a 2020.

As outras letras do acrônimo surgiram do desenvolvimento posterior do preparado, que ganhou outra proteína capaz de estimular células T do sistema imune (o T da abreviação) e outra molécula associada com o vírus da hepatite B (o S, que entra na formulação tanto em ligação com as outras proteínas quanto em forma livre, daí a repetição da letra).

O desenvolvimento da RTS,S começou em 1984, no Instituto de Pesquisa do Exército Walter Reed, dos EUA, em associação com o laboratório GSK. Por muitos anos, os resultados obtidos em testes preliminares com animais e humanos foram decepcionantes.

Até que a empresa farmacêutica chegou à formulação acrescida de uma substância para aumentar a resposta imune, o adjuvante AS01 (além do nome comercial Mosquirix, do qual os Nussenzweigs dizem não gostar, a vacina é por vezes chamada de RTS,S/AS01).

Apesar do desempenho desanimador da vacina nas primeiras décadas, Ruth nunca perdeu a esperança na imunização.

"Vai funcionar", intervém, com determinação ofegante, quando Victor fala da Mosquirix no condicional. "Prefiro ser pessimista", contrapõe o marido. "Eu não. Sou realista. Funciona também em criança", rebate a mulher. "Tudo isso foi inventado pela doutora Ruth Nussenzweig", concilia Victor, por fim.

Eles chegaram a ser sondados para trocar a NYU pela GSK, mas preferiram seguir no ambiente de pesquisa acadêmica. Embora possuam algumas patentes registradas com a universidade, não esperam retorno financeiro algum da vacina, se ela passar na sua prova final em ambiente africano.

"Não estávamos interessados em dinheiro", afirma Victor.

ADEUS À POLÍTICA

Tiveram a certa altura uma discussão séria sobre a melhor maneira de trabalhar pelo futuro da humanidade. "Revolução seria muito difícil. Abandonamos a política", conta o marido, entre risadas. Decidiram então que o melhor era fazer ciência. "E fizemos!"

Só pararam recentemente. Ruth há alguns anos, após uma queda cujas sequelas limitaram significativamente sua locomoção. Victor há poucas semanas, no momento em que seu último orientando de pós-doutorado na NYU, Min Zhang, partiu para uma carreira independente.

Em sete décadas de pesquisa, Ruth publicou 309 trabalhos científicos, e Victor, 369.

Duas longas e produtivas vidas, decisivas para salvar talvez milhares de outras na África e inscrever os nomes de dois brasileiros na história da ciência.

Mas trajetórias construídas majoritariamente longe do Brasil, onde eles têm metade dos netos e almejavam passar o fim da vida. A meta foi abandonada com o passar do tempo; agora, a saúde de Ruth desaconselha longas viagens de avião –para não falar de uma mudança de país aos 88 anos.

MARCELO LEITE, 59, é repórter especial e colunista da Folha.

FERNANDO VILELA, 43, artista plástico, é autor de "Lampião & Lancelote" (Pequena Zahar), vencedor de dois prêmios Jabuti.

Erramos: o texto foi alterado

O texto atribuiu ao neurocientista Ivan Izquierdo 158 publicações indexadas no diretório PubMed, uma quantidade incorreta. Em seu currículo Lattes, o pesquisador informa autoria de 589 estudos.

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