Diretora do Ipeafro rebate críticas de antropólogo a movimentos negros

Crédito: Folhapress
Abdias do Nascimento em foto do início dos anos 1980

ELISA LARKIN NASCIMENTO

RESUMO Em resposta ao antropólogo Antonio Risério, autora rebate críticas feitas a Abdias Nascimento, com quem foi casada durante 38 anos. Ela argumenta que movimentos negros usam o conceito de raça como construção social, não como fenômeno biológico, e explica a diferença no uso dos termos "negro" e "mulato".

No dia 20 de novembro, realizou-se a 14ª Marcha da Consciência Negra em São Paulo, com o tema "Contra o racismo e o genocídio: por um projeto político de vida para o povo negro".

Chamava-se a atenção, em dezenas de faixas e cartazes, para os altíssimos índices de assassinato de jovens negros e para a discriminação na saúde, no ensino, na habitação, no trabalho. Criou-se polêmica, porém, em torno da foto de uma só faixa, na qual se lia "Miscigenação também é genocídio".

Nesse contexto, o antropólogo Antonio Risério publicou artigo em que criticava duramente o movimento negro com base na citada foto. Abdias Nascimento (1914-2011) é alvo principal do ataque.

Crédito: Folhapress
Faixa em manifestação no Dia da Consciência Negra, em novembro

Durante os últimos 38 anos da vida de Abdias, fui sua esposa e companheira, traduzi seus textos, interpretei suas palestras, ajudei-o na pesquisa. Juntos fundamos o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, que hoje cuida de seu acervo documental e museológico. Enfrentei com ele inúmeras investidas dos que procuravam desqualificá-lo, sobretudo chamando-o de racista às avessas.

Tais agressões são dirigidas não só a ele, mas à coletividade negra que combate o racismo. E os defensores da miscigenação, apesar de sua aparente preocupação com as relações afetivas inter-raciais, nunca enxergam uma atitude antirracista no casamento de Abdias com uma mulher branca.

Desde a década de 1940, esquerda e direita miraram Abdias com a velha arma dupla que Risério volta agora a brandir, mesmo enferrujada: tachá-lo de fascista para desautorizar o combate ao racismo e acusá-lo de importar ideias norte-americanas, mote de quem se recusa a reconhecer a realidade discriminatória como característica própria à sociedade brasileira.

Várias análises na internet apontam o equívoco de Risério ao tratar os movimentos negros como uma turba única de "racialistas". Ele ignora a multiplicidade de vozes desses grupos e lhes atribui um suposto pensamento único a favor da "implantação de um apartheid amoroso-sexual no país".

Risério repete erro comum àqueles que acusam o movimento social de racialismo (crença nas raças biológicas). Rejeitam a noção de raça, considerando-a cientificamente falsa, mas a ela aderem com unhas e dentes ao defender a miscigenação, mistura dessas mesmas raças.

Se há um ponto de consenso nos movimentos negros, me parece que é este: raça existe, sim, mas como construção social, não como fenômeno biológico. Em sua introdução ao livro "O Negro Revoltado", escrito em 1951 e publicado em 1968, Abdias afirma exatamente isso.

Os racialistas da miscigenação costumam enveredar em tragicômicas aventuras de análise genética. Mas pouco importa o anúncio triunfal de que Pelé ou Neguinho da Beija-Flor têm tantos por cento de DNA europeu. O que define a identidade é o fenótipo socialmente interpretado.

EUGENIA

A frase na faixa não diz respeito a relacionamentos amorosos entre indivíduos, mas à miscigenação como ideologia e instrumento de engenharia social. Com a abolição da escravatura, o Estado brasileiro embarcou num projeto explícito, e bem documentado, de embranquecer o país.

Não se trata da tese de um ou outro teórico; foi instituída uma política de Estado. Junto com o incentivo à imigração de europeus, a miscigenação era instrumento dessa política, baseada na "ciência" da eugenia (controle social para assegurar a ascendência da "raça superior" branca).

O princípio da eugenia foi inscrito na Constituição de 1934 e em várias leis de imigração. Seus resquícios continuam vivos na sociedade brasileira, mascarados pela miragem de uma "democracia racial" que não corresponde à experiência vivida pela população negra.

É essa vivência que leva os militantes às ruas. Eles apresentam a sua realidade, geralmente ignorada ou recebida com indiferença por uma sociedade que se recusa a ver o racismo entre os principais motores das desigualdades que assolam o país.

"Mulato!", dispara Risério contra Abdias; repetindo o termo ao longo do texto, ele lhe empresta uma essencialidade quase palpável. Ele nega a existência das raças, mas acredita piamente na realidade biológica do mulato.

Procura desmascarar os "atuais neonegros" como "mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos". Observa que Abdias usava os termos "mulato" e "negro" com uma "estranha seletividade", incompreensível mesmo para quem não entende o conceito social de raça.

Ora, para Abdias, os termos eram metáfora simples a mostrar que a identificação passa não pelo suposto fator genético-biológico (que não existe), mas pela consciência e pela ação. "Mulato", para ele, é quem assume o discurso racista e quer se aproximar da brancura; "negro" é a pessoa consciente e comprometida com seu povo, sua identidade e sua herança cultural.

Em 1977, quando fomos apresentar a primeira versão do texto do livro "O Genocídio do Negro Brasileiro" ao colóquio do 2º Festival Mundial de Arte e Cultura Negra e Africana em Lagos (Nigéria), Abdias era perseguido pelo governo brasileiro, que queria impedi-lo de falar.

A delegação oficial era composta de brancos, com a exceção de George Alakija, um senhor que seria considerado negro bem retinto e que cumpria o papel de porta-voz.

Um conjunto de delegações africanas e da diáspora pleiteou que a Abdias fosse dada a palavra. Alakija protestou: se isso fosse permitido, haveria problemas entre Brasil e Nigéria. Abdias caracterizava Alakija como mulato, não pela sua cor, mas pelo papel que cumpriu.

Da mesma forma, via em Luiz Gama um negro, não obstante sua parcial ascendência europeia, pelo compromisso e pela ação a favor de seu povo.

(Curioso notar que os serviços de inteligência e de repressão da ditadura militar no Brasil nunca trataram Abdias como mulato; sempre o descreveram negro.)

MULHERES

Risério afirma que, ao dizer-se negro, Abdias não olhava sua ancestralidade mista.

Sou testemunha: ele tinha aguda consciência de sua ascendência, pois acompanhou ao longo da vida a profunda mágoa de seu pai, José Ferreira do Nascimento —fruto da violação e do defloramento de uma moça negra por um senhor português que, a título de compensação, presenteou-a com uma máquina de costura, mas não registrou o filho.

O pai de Abdias vivia acometido pela vergonha de ter estampada na certidão de nascimento a frase "filho natural".

Uma das memórias mais vívidas da infância de Abdias era a da outra avó, que também fora escravizada, retornando transtornada do famigerado hospício paulista Juquery, onde aos "degenerados" negros eram aplicadas as torturas e os abandonos devidos, enquanto a "loucura moral" de brancos merecia diagnóstico e tratamento detalhados e cuidadosos.

Tais vivências não se encerraram num passado longínquo, conforme afirma o autor ao julgar "mais do que anacrônica a suposição de Abdias que sustenta o feminismo negro".

Quem vive as formas que assume o assédio sexual hoje em dia são as mulheres, e a experiência das mulheres negras é específica. Quem pode testemunhar sobre as formas de violência herdadas do passado escravista são elas. Certamente, elas continuam a carregar o peso do sofrimento e da morte de seus filhos: cerca de 73 deles são mortos por dia.

Indicadores mostram duras realidades que são resquícios vivos do passado eugenista, como o tratamento diferenciado dispensado às mulheres negras atendidas em hospitais: elas recebem menos anestesia e menos toques ginecológicos.

O jornal inglês "Globe & Mail" documentou em 2015 as pressões sociais do branqueamento bem presentes na vida de mães brasileiras; o trabalho de Lia Vainer Schucman registra as pressões da hierarquia de cor na sociedade paulista hoje.

Contrariando a ideia de que a miscigenação elimina o branco tanto quanto o negro, a brancura pode manter sua identidade a despeito da cor.

Ao assumir a cadeira no Senado em 1991, Abdias fez um discurso mostrando que não era o primeiro afro-brasileiro senador. Do Visconde de Jequitinhonha ao Barão de Cotegipe, de Torres Homem a Rodrigues Alves, duas dúzias de mestiços guardaram na Casa legislativa a sua identidade "branca".

O equívoco deriva da noção racialista de miscigenação assumida por Risério e seus colegas. O conceito social de raça permite entender perfeitamente a capacidade de se preservar a "brancura" de evidentes mestiços.

Jessé Souza argumentou que a herança da escravidão é o elemento definitivo que marca a sociedade brasileira até hoje. Gilberto Freyre descreveu em minucioso detalhe as torturas, os castigos e os maus-tratos sexuais a que eram subjugadas as mulheres negras escravizadas.

É notável a capacidade de Freyre e seus colegas de extrair desse registro a miragem da miscigenação como um quadro de idílicas relações amorosas. Tal doçura é uma magistral construção da brancura intelectual.

O que possibilita criar, a partir de uma história de violência racial e sexual, tal imagem de cordialidade e convivência amorosa? É a perene indiferença à experiência vivida pela população negra.

Essa indiferença marca o discurso de Risério, cuja paciência para ouvir pessoas negras é zero. Para ele, como para muitos intelectuais brancos, não lhe cabe ouvir, pois sua atitude é a de quem por direito define conceitos, atitudes, identidades e o que mais desejar. E essas definições não passam pela narrativa negra.

Em artigo recente ("Veja", 22/11), tive ocasião de mostrar como, ao longo da história, as vozes dos protagonistas negros, intelectuais e ativistas, receberam a absoluta indiferença da elite e seus acadêmicos. Essa indiferença —esse racismo— ajuda a fazer da sociedade brasileira uma das mais desiguais do mundo.

ELISA LARKIN NASCIMENTO, 64, doutora em psicologia pela USP, dirige o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros e é autora de "O Sortilégio da Cor" (Selo Negro) e da biografia "Abdias Nascimento" (Senado Federal). Organizou o livro "Adinkra" (Pallas) e a coleção Sankofa (4 volumes) (Selo Negro).

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