Leia trecho de 'O Ofício', autobiografia irônica de escritor russo

A novela de Serguei Dovlátov será lançada em março pela editora Kalinka

Serguei Dovlátov tradução Daniela Mountian tradução Yulia Mikaelyan

SOBRE O TEXTO Os trechos nesta página integram a novela "O Ofício, uma Novela em Duas Partes", que a editora Kalinka lança em março. Na obra, o escritor descreve, com ironia, sua biografia literária em duas partes: "O livro invisível", escrita entre 1975 e 1976 quando vivia na URSS, e "O jornal invisível", que data de 1984 e 1985, quando já havia emigrado para os EUA.


pintura em branco com detalhes coloridos
Pintura feita para a 'Ilustríssima' - Guilherme Ginane

Primeira parte: O livro invisível

Prefácio

Apanho a pena com uma sensação alarmante. Quem se interessaria pelas confissões de um escritor fracassado? Que pode haver de edificante nisso?

Como se não bastasse, minha vida está aparentemente privada de tragicidade. Gozo de plena saúde. Tenho uma família que me ama. Estão sempre prontos a me oferecer um trabalho que me assegure uma existência biológica convencional.

Além do mais, levo uma vantagem. Sem esforço consigo cativar as pessoas. Pratiquei dezenas de ações puníveis por lei que ficaram impunes.

Fui casado duas vezes e nas duas fui feliz.

Finalmente, tenho um cachorro. Aí já é um exagero.

Então por que sinto meu corpo à beira de uma catástrofe? De onde vem a sensação de uma vida irremediavelmente inútil? No que consiste a razão da minha angústia?

Quero compreender isso. Penso sem parar. Sonho e espero evocar o fantasma da felicidade...

Pena que essa palavra tenha surgido. Pois as imagens que ela suscita vão do infinito ao zero.

Conheci um sujeito que dizia seriamente que seria feliz se o JEK [Escritório de Gestão Habitacional russo] lhe trocasse o encanamento de casa...

Um sentimento fútil me inquieta. A-há!, vão pensar, mais um que se acha um gênio não reconhecido!

Não é isso! Aí é que está, não é nada disso! Ouvi centenas, milhares de opiniões sobre meus contos. E jamais, em nenhum círculo de Petersburgo, do mais deplorável ao mais espetacular, fui considerado um gênio. Mesmo quando Goriétski e Kharitónenko eram tomados por gênios.

(Um esclarecimento. Goriétski é autor de um romance impresso em nove folhas de papel fotográfico superexposto à luz. E a personagem principal do romance mais maduro de Kharitónenko é um preservativo.)

Faz treze anos que comecei a escrever. Escrevi um romance, sete novelas e umas quatrocentas coisas breves. (Se apalparmos, é mais que Gógol!) Tenho certeza que Gógol e eu temos direitos autorais iguais. (As obrigações são diferentes.) No mínimo, um direito inalienável. O direito de dar ao público uma obra escrita. Quer dizer, o direito à imortalidade ou ao fracasso.

Por que, então, minha vocação corriqueira, honesta e extraordinária é reprimida por um sem-número de órgãos, personalidades e instituições de um grande Estado?

Eu preciso compreender isso.

Não vou me matar nessa composição. De uma maneira confusa, longa e pouco articulada, tentarei descrever minha biografia "artística". Serão as peripécias de meus manuscritos. Retratos de conhecidos. Documentos...

E como devo chamar tudo isso — Dossiê? Recordações de um literato? Redação de tema livre?

Será que isso importa? Pois o livro é invisível...

Do lado de fora, telhados e antenas leningradenses, o céu pálido. Kátia está fazendo o dever de casa. Aos pés dela, a foxterrier Glafira, que parece um toquinho de bétula, está pensando em mim.

Na minha frente, uma folha de papel. Eu atravesso essa planície, branca e nevada, sozinho.

Uma folha de papel, felicidade e maldição! Uma folha de papel, meu castigo...

Aliás, a introdução está se alongando. Vamos começar. Começar ao menos assim.

O primeiro crítico

Antes da revolução, Ágnia Frántsevna Mau era venereologista da corte. Sessenta anos se passaram. Ágnia Frántsevna nunca perdeu a presunção altiva palaciana e a franqueza clínica. Mau disse ao delegado do nosso apartamento comunal, o coronel Tikhomírov, o qual havia pisado na patinha do seu maltês:

– O senhor é um grande merda, mon colonel, com o perdão da palavra!...

Tikhomírov morava em frente, foi metido num apartamento comunal pavoroso por seu desinteresse partidário. Queria poder e detestava Mau por sua origem aristocrática. (O próprio Tikhomírov não tinha origem nenhuma. Foram as diretrizes que o criaram.)

– Bruxa! – estrondeou. – Fascista! Eu não cagaria no mesmo lugar que a senhora!...

A velha empinou tão bruscamente a cabeça que seu minúsculo medalhão de ouro voou:

– Será que defecar ao lado do senhor é uma honra tão grande?

As plumas descoloridas de seu chapéu tremeram de raiva...

Para Tikhomírov, eu era demasiadamente requintado. Para Mau, irremediavelmente vulgar. Mas eu tinha uma arma forte contra Ágnia Frántsevna: a cortesia. Mas a cortesia deixava Tikhomírov de orelha em pé. Ele sabia que a cortesia é a máscara dos vícios.

Eis que um belo dia eu papeava pelo telefone comunal. A conversa irritava terrivelmente Tikhomírov pelo descomedimento intelectual. Tikhomírov passou umas dez vezes pela estreita via comunal. Foi três vezes ao banheiro. Fez chá. Lustrou os sapatos, destituídos de individualidade, até brilharem como a aurora polar. Por razão desconhecida, trouxe sua motoneta até a cozinha e a levou de volta.

E eu seguia o papo. Dizia que Lev Tolstói, no fundo, era um pequeno-burguês. Que Dostoiévski se aproximava do pós-impressionismo. Que a apercepção, em Balzac, não era orgânica. Que Liuda Fedosséienko tinha feito um aborto. Que a prosa americana carecia de fermento cosmopolita...

E Tikhomírov não aguentou.

Ao esbarrar em mim, de propósito, com a barriga caída, ele gritou:

– Escritor! Vejam só, um escritor! Pois é mesmo um escritor!... É preciso fuzilar essa laia de escritores!...

Se eu soubesse, naquela época, que o grito do delegado do apartamento comunal, esmagado pelo excesso de peso intelectual, determinaria minha vida por tantos anos...

"...É preciso fuzilar essa laia de escritores!..."


Serguei Dovlátov (1941-1990) foi um escritor e jornalista russo.

Daniela Mountian, 41, é tradutora, doutora em literatura russa pela USP e editora da Kalinka.

Yulia Mikaelyan, 32, é tradutora, doutora em literatura russa pela USP e professora da Universidade MGIMO, de Moscou.

Guilherme Ginane, 37, é artista plástico.

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