Briga judicial entre professora e aluna ilustra racha político no país

Em Santa Catarina, diferenças ideológicas entre duas historiadoras foram parar na Justiça

[RESUMO]  Historiadoras Ana Caroline Campagnolo e Marlene de Fáveri protagonizam caso emblemático do movimento Escola Sem Partido e simbolizam polos opostos na atual disputa política. Campagnolo é antifeminista, anti-PT e pró-Bolsonaro. Fáveri, por sua vez, é feminista e #EleNão.

 

– Vai ter guerra que tem tanto canhão junto?

Um homem grisalho, de óculos e queixo quadrados, sussurrou a frase irônica no ouvido de sua filha, que era hostilizada por manifestantes feministas diante do Fórum Eduardo Luz, em Florianópolis (SC), em junho de 2017. Ele não estava errado: guerra há.

O homem era o advogado Job Campagnolo. Sua filha é a historiadora catarinense Ana Caroline Campagnolo, 27, recém-eleita deputada estadual pelo PSL —“o partido do Bolsonaro”, conforme ela define nas redes sociais.

Ela processou a historiadora Marlene de Fáveri, 58, professora da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) e sua ex-orientadora no mestrado, a quem acusou de intimidação, discriminação, ameaça velada, exposição discriminatória, humilhação na sala de aula e tentativa de prejudicá-la academicamente –ou, como foi simplificado, “perseguição ideológica e discriminação religiosa”.

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A professora Marlene Fáveri, da Udesc - Pedro Saad/Folhapress

Na manhã de 6 de setembro, Fáveri foi surpreendida pela notícia de que o 1º Juizado Especial Cível de Chapecó (SC) considerara “improcedente” a acusação de sua ex-aluna.

“A justiça foi feita. A decisão representa uma vitória da liberdade de cátedra. Um importante precedente para enfrentarmos as perseguições a professoras e professores”, declarou a professora. Campagnolo está recorrendo da decisão.

Agora Fáveri contra-ataca: ela protocolou uma queixa-crime contra Campagnolo na 3a Vara Criminal da Comarca da Capital de Santa Catarina. A ação, que versa sobre crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), corre sob segredo de Justiça. Fáveri pediu para levantar o sigilo.

A acusação afirma que a ex-aluna expôs a professora como exemplo de “doutrinação ideológica” em diversos eventos e publicações nas redes sociais.

Segundo a advogada Daniela Felix, que representa Fáveri, o somatório das penas pode ultrapassar 15 anos para a querelada.

Campagnolo  postou publicamente no Facebook no dia 22 de agosto: “A professora feminista/esquerdista que processei está requerendo em um processo-crime que este meu vídeo-denúncia seja judicialmente retirado do YouTube. Se você ainda não assistiu, aproveita”.

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A historiadora catarinense Ana Caroline Campagnolo, que processou a ex-orientadora, durante entrevista à Folha - Rodrigo Sicuro

Pivô do novo processo, o vídeo é um depoimento de Campagnolo à Comissão Especial do PL 7180/14 Escola Sem Partido, em Brasília, em 2017. Nele, a ex-mestranda relata os acontecimentos que a levaram a acusar a docente de “doutrinação”. Em 2014, ela também narrou a história no 1º Congresso Nacional Doutrinação Política e Ideológica nas Escolas.

Abertamente comprometida com a proposta do movimento Escola Sem Partido, Campagnolo conquistou uma cadeira na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, estado onde Bolsonaro obteve a melhor marca no primeiro turno (65,8% dos votos). Ela teve 34,8 mil votos.

“A opinião pública sobre os processos é dividida. Quem está do lado dela já tem posição político-partidária. Quem está do meu lado, também”, definiu a parlamentar eleita.

As historiadoras simbolizam polos opostos na atual disputa política, que se acirra no segundo turno entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad: Campagnolo é antifeminista e anti-PT. Fáveri é feminista e #EleNão.

Campagnolo ironizou a hashtag nas redes sociais: “Bolsonaro é tão ícone que faz a esquerda temer a pronúncia de seu nome. Miliantes [sic], militantes e marginais que, outrora, não temiam a lei e a polícia, agora, temem o inominável. #EleNão será apenas um Presidente, será o terror dos canalhas e o pesadelo da escória. #EleNão tem que abrandar discurso, tem que arrochar ainda mais.”

Na casa dos 20 anos, Campagnolo se define como “cristã e conservadora”. Ministrou aulas de história do feminismo no Burke Instituto Conservador, época em que trocou os óculos vermelhos (“muito PT”, disseram-lhe) por azuis.

Já Fáveri, feminista na casa dos 50, prioriza a defesa da democracia e dos direitos humanos. Ela recebeu a comenda do Legislativo catarinense como símbolo de sua atuação contra a intolerância, indicada pela deputada estadual Ana Paula Lima, do PT.

Desde o início do imbróglio jurídico pairaram especulações de que o processo contra Fáveri fora “orquestrado” pelo movimento Escola Sem Partido, idealizado pelo procurador paulista Miguel Nagib. Campagnolo negou a hipótese à reportagem.

O caso lembra um tópico do site oficial do movimento que inclui orientações para “flagrar” doutrinadores: “Anotem tudo o que possa ser considerado um abuso da liberdade (...). Registrem o nome do professor, o dia, a hora e o contexto. (...) E esperem até que esse professor já não tenha poder sobre vocês. Esperem, se necessário, até sair da escola ou da faculdade. Não há pressa”, diz a página.

Ao que tudo indica, pressa não houve. O primeiro processo tramitou desde 2016, mas partiu de fatos de 2013.

Os caminhos de Campagnolo e Fáveri se cruzaram ao longo das jornadas de junho de 2013. Graduada pela Universidade Comunitária de Chapecó, Campagnolo ingressou no mestrado com o projeto “Virgindade e Família”, que pretendia analisar discursos sobre violência contra a mulher. Fáveri era sua orientadora.

Por volta de outubro, um vídeo de 122 minutos se alastrou na internet —e nos corredores da universidade. Era uma longa entrevista ao canal “Conexão Conservadora”, no qual a aluna manifestava críticas aos estudos de gênero.

“O engraçado do feminismo é o desprezo do feminino. O feminismo deveria enaltecer o feminino, assim como o machismo: você vê e os machistas adoram ser homem. E as feministas, não. Elas não adoram ser mulher. Elas são inimigas da mulher”, diz ela na entrevista.

A relação azedou de vez na manhã de 7 de novembro. Durante aula da disciplina história e relações de gênero, a mestranda foi confrontada pelos colegas de classe por suas opiniões expostas online —“sabatinada”, segundo sua expressão. “Fascista” foi uma das palavras usadas.

Os últimos minutos da aula estavam sendo gravados inadvertidamente pela aluna. Os áudios foram reproduzidos em posteriores conferências de Campagnolo.

Fáveri desistiu de orientá-la, alegando incompatibilidade “teórico-metodológica” na justificativa endereçada ao colegiado. A mestranda passou pela orientação de outros dois docentes. Em fins de maio de 2016, defendeu a dissertação “Traços da violência”, mas foi reprovada pela banca.

Dias depois, ela deu entrada no processo contra a ex-orientadora, reivindicando R$ 17,6 mil de indenização por danos morais.

“Meu interesse não é dinheiro. É o caráter pedagógico do processo. Se o juiz me der ganho de causa e um real de indenização, não vou me queixar”, dissera-me Campagnolo em um café, antes da divulgação da sentença.

Para Fáveri, também se tratava de uma questão de princípios: na condição de ré, ela investiu mais em honorários advocatícios (cerca de R$ 20 mil) do que o valor total da indenização reivindicada (R$ 17 mil).

O historiador Fernando Penna, da UFF (Universidade Federal Fluminense), considera que a disputa não se restringe ao duelo das acadêmicas.

“O caso é emblemático, pois o que está em jogo é uma questão institucional mais ampla: que tipo de projeto de educação se quer para o país?”, indaga.

Para Penna, trata-se de uma disputa entre censura x liberdade de cátedra, ideias conservadoras x pautas progressistas, direita x esquerda. “É um discurso reacionário da extrema direita contra a democracia”, define.

De um lado estariam as propostas do movimento Escola Sem Partido contra “contaminação política” e “ideologia de gênero”; de outro, as defesas de perspectiva crítica no ensino, levantadas por professores do movimento Educação Democrática.

Estudos de gênero partem do princípio de igualdade de direitos e respeito à diversidade. A expressão “ideologia de gênero”, por sua vez, é versada por críticos que acusam a linha de estudos de tentar destruir a família “tradicional”.

“Não acho que homens e mulheres têm interesses iguais. E não acho que uma mulher tem os mesmos interesses políticos e representatividade que outra mulher. (...) Até por isso sou contra o movimento feminista. Como um movimento vai representar as mulheres? (...) O movimento feminista está do lado dela ou do meu? Se somos duas mulheres deveria estar do lado das duas”, disse Campagnolo no café.

Ao longo da batalha judicial, as duas historiadoras se posicionaram, cada qual a seu modo, como vítimas de perseguição política. Vítimas, mas combativas.

Campagnolo afirma que foi humilhada no campus por suas posições políticas e religiosas —e na internet assumiu uma postura aguerrida contra a “doutrinação” de docentes.

​Fáveri, por sua vez, se dizia acusada injustamente. A princípio fragilizada, ela passou a outro discurso: “Não gostaria que esta fosse a minha história, a minha narrativa, mas agora é. Estou numa ‘via sacra’ para denunciar a intolerância. Eles podem tentar, mas não vão me calar!”, bradou num simpósio.

No mesmo tom, após a recente publicação da sentença, ela proferiu a aula aberta intitulada “Não nos calarão! Resistência e liberdade de cátedra”.

Nas diversas conversas com a reportagem desde meados de 2017, Campagnolo e Fáveri não mencionam o nome uma da outra. Tratam-se pelo pronome pessoal “ela”. Desde o início do processo, não trocaram nenhuma palavra diretamente.

De lados opostos no espectro político, elas divergem sobre quase tudo. Mas concordam num ponto: para ambas, esta primeira batalha não marca o fim da guerra.


Juliana Sayuri, jornalista e historiadora, é autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018).

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