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Necropolítica de Bolsonaro aponta para um futuro distópico

Menosprezo à vida de negros e pobres avança sobre o dever do Estado proteger a população

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Cruzes de madeira coloridas e solo exposto em cemitério

Cemitério Parque Taruma, em Manaus Bruno Kelly - 11.jun.2020/Reuters

Rodrigo Nunes

Professor de filosofia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e autor de "Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks". Seu novo livro, "Neither Vertical Nor Horizontal. A Theory of Organisation", sairá em breve pela editora britânica Verso

[RESUMO] Autor reflete sobre o conceito de necropolítica, que faz referência ao poder do Estado decidir quem pode viver ou deve morrer, na conjuntura atual. Em sua avaliação, vidas de negros e pobres se tornam mais descartáveis no Brasil e nos EUA à medida que avançam a pandemia e medidas neoliberais equivocadas.

Embora o termo necropolítica só tenha sido cunhado por Achille Mbembe em 2003, a realidade a que se refere é bem mais antiga. A ideia já estava implícita no conceito de biopolítica desde o seu surgimento, no início do século 20, muito antes de sua (re)descoberta por Michel Foucault.

Concebida por autores como Rudolf Kjellén a partir de uma analogia entre o Estado-nação e o organismo, a biopolítica sempre supôs uma fronteira entre o corpo político a ser cuidado e um meio externo habitado por recursos e ameaças.

Esta fronteira pode coincidir com os limites do Estado-nação, remetendo à competição internacional e ao colonialismo, ou passar por dentro dele, separando as populações que as autoridades devem fazer viver daquelas que se pode deixar morrer ou, eventualmente, matar. Estas últimas podem ser “inimigos internos” (“degenerados”, dissidentes políticos e religiosos), grupos étnicos, imigrantes, pobres, criminosos, “marginais”. Existe, é claro, interseção entre as categorias.

O importante é notar que a necropolítica não é mera exceção, desvio, “culto à morte”. Ela sempre esteve nas entrelinhas ou, antes, nas fronteiras entre diferentes populações e territórios. Se o termo é usado para hoje falar do governo Bolsonaro, não é por uma diferença de natureza, mas de grau: neste, o componente necropolítico é não só mais intenso como mais escancarado.

Necropolítica na cabeça

Já era assim nas eleições. Enquanto Bolsonaro ameaçava fuzilar inimigos, candidatos competiam para ver quem prometia mais explicitamente a uma parcela da população tratar outra parcela como matável —“mirando na cabecinha” de criminosos, mas assumindo o risco de acertar inocentes como o menino João Pedro Mattos, morto há um mês em sua própria casa.

Talvez pudéssemos resumir a combinação de conservadorismo e bangue-bangue característica do bolsonarismo como a transformação da noção de “pessoa de bem” em categoria biopolítica. Nele, “pessoa de bem” passa a operar abertamente como critério de demarcação entre a população cuja vida deve ser protegida e aquela que não só se pode deixar morrer como se deve, no limite, ter o direito de matar. A demanda pela liberalização do porte de armas nada mais é que a privatização do poder soberano sobre a morte.

A pandemia da Covid-19 deixa claro, contudo, que a fronteira biopolítica nunca é apenas moral, porque o vírus, embora mate pobres e não brancos em uma proporção bem maior, é indiferente às questões de costumes e certamente já levou várias “pessoas de bem”. Na eleição, dizia-se que só correria perigo quem “merecesse”. Agora, porém, o risco é de todos, e é a renda, não o merecimento, que oferece proteção.

Por isso é importante lembrar que a necropolítica sempre foi o reverso da biopolítica, cuja história começa bem antes de Kjellén e se confunde com a expansão do capitalismo no século 19.

Concebida como organismo, uma população tem basicamente duas tendências: a conservação de suas forças vitais e o crescimento. São elas que determinam as formas que a necropolítica pode assumir.

O crescimento torna potencialmente matável quem impede o aumento do “espaço vital” da nação. Já a defesa do corpo social contra “patógenos” como criminosos, “raças inferiores” etc. conduz à violência policial, à eugenia e aos campos de extermínio.

Porém, conservação e crescimento se combinam em uma terceira alternativa. Alimentar e fortalecer a nação implica abastecê-la continuamente com matéria-prima e mão de obra baratas. Externamente, com a espoliação de colônias e “mercados emergentes” ou a escravização de outros povos; internamente, com a exploração do trabalho.

Em resumo, a ideia sempre foi: para que alguns vivam e prosperem, é preciso que a vida de outros seja descartável. Os pobres —em particular os negros, cujos antepassados não tinham o estatuto legal de pessoas, mas de propriedade— vivem, assim, permanentemente na fronteira entre vida protegida e vida descartável. Mais protegidos se as coisas vão bem, tornam-se dispensáveis quando elas vão mal. Nessas horas, o critério que separa a bio da necropolítica é fundamentalmente econômico.

A pandemia da Covid-19, claro, é uma hora dessas.

O pior de todos os mundos

Quando chegamos a 10 mil vítimas oficiais, Bolsonaro finalmente manifestou-se sobre as mortes para dizer que, embora as lamentasse, precisava “dar exemplo” controlando gastos e priorizando a economia. Ao defender a reabertura do comércio mesmo quando o número de casos continuava subindo, o vice-governador do Texas resumiu cristalinamente a situação afirmando que “há coisas mais importantes que viver”: trabalhar, consumir e manter as engrenagens rodando.

Essa maneira de enquadrar a situação —como uma escolha entre vida e economia— se apoia em uma mentira e em um triplo ocultamento.

A mentira está na ideia de que, em um mercado mundial altamente integrado, algum lugar conseguiria evitar os efeitos de uma freada brusca da economia global e a recessão que deve vir em seguida —como se manter o shopping aberto fosse compensar a queda livre na demanda por commodities, por exemplo.

A escolha de Bolsonaro e Guedes não foi técnica, mas ideológica e eleitoreira, jogando para os governadores a culpa de uma crise econômica inevitável. Em vez de proteger a economia em detrimento da vida, ela será desastrosa para ambas. Reabrindo tudo sem ter feito a sério o esforço de achatar a curva, levaremos muito mais tempo para debelar a doença, a um custo muito maior em vidas e disrupção das atividades.

Dentro de um mês, é provável que nos deparemos com uma explosão do número de mortes e a escolha entre ir adiante com uma catástrofe humanitária ou entrar em “lockdown”.

Para fazer com que essa estratégia de cometer suicídio com a vida alheia pareça razoável, é preciso ocultar, primeiro, a gravidade da crise, apresentando-a como marolinha a ser vencida rapidamente. Esse ocultamento, porém, está a serviço de outro, de natureza ideológica. É ele que torna possível reduzir nossas opções a uma escolha inevitável entre morrer de vírus ou de fome.

A Bolsa ou a vida

Uma explicação possível para o recente aumento da aprovação do governo entre os mais pobres é que, para eles, a inevitabilidade é real: a desigualdade faz da quarentena um luxo inalcançável. Ao colocar as coisas nesses termos, portanto, Bolsonaro estaria sendo menos hipócrita que quem manda ficar em casa aqueles que precisam sair para trabalhar.

Isabelle Stengers e Philippe Pignarre chamam de alternativas infernais essas situações em que a estrutura social reduz o indíviduo à “liberdade” de escolher entre opções igualmente ruins. O que se oculta aí são as alternativas que fariam com que essa não fosse a única escolha possível —no caso atual, por exemplo, uma ação maciça do Estado para assegurar renda e emprego até que a pandemia esteja controlada.

No entanto, é justamente esse tipo de opção que, por motivos ideológicos, o governo resiste em contemplar, porque fazê-lo implica admitir publicamente a possibilidade de uma outra saída para a crise e arrisca despertar, em vez da passividade resignada frente a mais uma dose de austeridade, a demanda por novos direitos, como uma renda básica universal. Esse é o terceiro ocultamento.

Por isso que, ainda que se veja obrigado a agir, o governo o faz pela metade e arrastando os pés. A renda básica emergencial, da qual Bolsonaro tenta extrair lucro político mesmo enquanto planeja eliminá-la, só saiu sob pressão social. Também por isso o governo sabotou ativamente o combate à Covid-19 desde o início. O objetivo sempre foi criar as condições em que a escolha entre a economia e a vida parecesse natural e inevitável.

Nós, as cobaias

Aqui, porém, entra a singularidade do momento atual. Se até governos de direita mundo afora têm adotado medidas enérgicas de intervenção estatal é porque a crise não é somente econômica, mas sanitária. Recusar-se a intervir neste momento implicaria lavar as mãos diante de um perigo que ameaça tanto as vidas mais descartáveis quanto as mais protegidas. O custo político seria alto demais.

Por quê? Porque seria eximir-se publicamente do dever estatal de proteção à vida. Seria, em outras palavras, romper o pacto biopolítico: o acordo tácito, fundamental às sociedades políticas modernas, pelo qual, em troca de potencializar a utilidade econômica dos governados, os governantes assumem a responsabilidade por fazê-los viver. Em condições normais, um governo que menosprezasse a morte em massa de sua população jamais seria reeleito.

É por isso que devemos olhar para o que ocorre no Brasil e nos EUA como um experimento social com implicações importantes. Em duas das maiores democracias ocidentais, em meio à maior crise sanitária em um século, os dois governos estão, em nome da utilidade econômica, desobrigando-se abertamente da responsabilidade de proteger a vida.

E o que é ainda mais notável: ao fazê-lo, têm logrado não só manter índices de aprovação surpreendentes, mas mobilizar sua base mais engajada —até mesmo contra profissionais de saúde.

O futuro está encurtando

Não é coincidência que estejamos falando de dois países construídos sobre o genocídio indígena e a escravidão, chagas históricas cujo legado é a normalização do sofrimento humano. Contudo, se a gravidade do que está ocorrendo chama menos a atenção do que deveria é também porque a ideia de que devemos sofrer pela economia já está amplamente naturalizada.

Desde a crise de 2008, o neoliberalismo assume feições cada vez mais punitivas, sustentando-se em um moralismo individualista (“só depende de você”) e exortações de uma ética do sacrifício (“é preciso apertar os cintos”), mas a fraseologia soa cada vez mais vazia, pois não há indícios de que os cintos um dia serão afrouxados.

Pelo contrário. Os trilhões de dólares injetados no mercado financeiro pós-2008 serviram para inflar uma bolha especulativa, mas pouco fizeram para aquecer a economia real, gerar empregos ou aumentar a produtividade. No Brasil, há cinco anos fazem-se reformas que retiram direitos e proteção social para supostamente criar zilhões de empregos e fazer o PIB decolar. As previsões nunca se realizam, mas isso não impede políticos e economistas de continuar prometendo.

A austeridade é hoje mais um fim em si mesma —instrumento de disciplina e meio de arrancar ganhos de curto prazo— que um esforço efetivo de retomar o crescimento.

A verdade é que, enquanto projeto de estabelecer um modelo de capitalismo economicamente sólido e politicamente viável após o fim do pacto keynesiano, o neoliberalismo fracassou. O que ele gerou foi o crescimento global da desigualdade e uma explosão da dívida pública e privada, aumentando exponencialmente a instabilidade da economia mundial. Nas atuais condições, sustentar os ganhos daqueles que se beneficiaram dele não parece mais compatível com manter condições mínimas de reprodução social para uma quantidade cada vez maior de pessoas.

É o poder que esses setores acumularam desde os anos 1980 que limita artificialmente as alternativas disponíveis, reduzindo-nos a escolhas ruins, como o sacrifício pela economia. O mesmo se dá em uma arena ainda maior —a da crise ambiental—, em que a defesa imediatista de interesses econômicos impede uma ação de longo prazo na escala e no tempo necessários.

O fato é que a elite econômica global parece cada vez mais confortável com a ideia de que não só o capitalismo não dá mais para todo o mundo, mas, como resumiu Déborah Danowski, “não tem mais mundo para todo o mundo”.

Dois corolários naturais dessa tendência são a erosão da democracia (a fim de blindar ainda mais a economia) e a ruptura do pacto biopolítico (ou antes, a adoção de uma definição muito mais restrita de quais vidas devem ser protegidas).

Por isso, o que está ocorrendo no Brasil e nos EUA importa. Em ambos os países, os governos têm mobilizado a luta de uma parte da população contra outra (“pessoas de bem” contra comunistas, brancos contra negros e imigrantes) como cobertura para abandonar a proteção da vida em geral, deixando que a sorte e a desigualdade social decidam quem deve viver ou morrer.

Aqueles que não pretendem fazer nada para impedir um futuro em que as condições de vida sejam cada vez mais exíguas e grandes desastres naturais cada vez mais comuns certamente estão tomando nota.

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