O que dizem no WhatsApp médicos a favor da cloroquina

Em conversas, eles contestam pesquisas científicas, defendem o tratamento precoce e acham que interesses políticos e econômicos prolongam a pandemia

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Victor Silva

Jornalista, escreve sobre novas direitas, realidades alternativas e e o Brasil subterrâneo no blog Crônicas do Titanic (https://cronicasdotitanic.substack.com)

[resumo] Jornalista conta o que dizem, em grupos de WhatsApp, médicos propagadores do chamado tratamento precoce para a Covid-19. Céticos em relação a organizações e revistas científicas consagradas, eles defendem a primazia da prática médica sobre as evidências científicas, especulam que há interesses políticos e econômicos na manutenção do quadro de pandemia e relatam benefícios no uso de remédios sem eficácia comprovada contra a doença.

“Se você estiver à beira de um precipício, segurando-se pelas pontas dos dedos e prestes a cair, e alguém lhe oferecer um braço a que você possa se agarrar e subir de volta à superfície, você deixará de se agarrar a esse braço, com medo de torcer seu ombro na subida?”, me pergunta a médica Tatiana Lachi. “A resposta todos nós sabemos.” A conversa dizia respeito ao tratamento de nebulização com hidroxicloroquina para combater a Covid-19.

Professora do curso de medicina da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), Tatiana Lachi é uma das integrantes de um grupo de WhatsApp chamado #EntreMédicos11, em que se defende o chamado tratamento precoce (uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina, zinco e vitamina D) na luta contra a doença e se contestam a mídia tradicional e as principais publicações científicas do mundo.

Desde o início da pandemia, venho pesquisando, como jornalista, a atuação de propagadores (médicos, políticos, empresários) de tratamentos não referendados pela comunidade científica internacional. Minha entrada no #EntreMédicos11, que conta com 256 integrantes, capacidade máxima permitida pelo WhatsApp, foi liberada por fontes da área da saúde.

ilustração feita por Jairo Malta para Ilustrissima
Ilustração de Jairo Malta

Como o nome indica, há pelo menos dez outros grupos de perfil semelhante, administrados pelas mesmas pessoas, o que leva, supondo que todos tenham o limite de pessoas permitido, a quase 3.000 médicos em todo o país.

Entrei em contato com Tatiana Lachi após me deparar com a seguinte conversa em 18 de maio: “A BMJ [renomada publicação médica do Reino Unido] está alinhada com pensamentos contrários aos nossos... É uma revista que deixou de ser confiável, infelizmente, assim como The Lancet, Jama, Nejm e outras”, disse ela.

“Tudo que tem outra opinião não é confiável!???”, respondeu outra médica, que não pôde ser identificada. “Eu gosto de ler tudo.” “Penso como você”, rebateu Tatiana, “mas você viu que a Lancet teve que despublicar um artigo que tentava (des)informar que a hidroxicloroquina não funcionava contra a Covid-19?”.

Ela se referia a um episódio de junho do ano passado, quando a revista científica The Lancet publicou uma retratação que anulava a validade de um estudo que havia saído em suas páginas um pouco antes, no qual se apontava maior risco de arritmia e morte associado ao uso de hidroxicloroquina ou cloroquina. O estudo foi refutado por apresentar dados inconsistentes.

A despeito desse caso, é consenso na área científica que esses medicamentos não trazem benefícios no tratamento da Covid-19. Estudada em 268 pesquisas registradas em 55 países, a hidroxicloroquina não teve sua eficácia comprovada nem para tratamento de pacientes internados nem como medida profilática.

No Brasil, apesar dos incentivos do presidente Jair Bolsonaro e de apoiadores ao chamado tratamento precoce, o Ministério da Saúde oficialmente não recomenda o uso de hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros, como o remdesivir, a pacientes internados com Covid.

Em grupos como o #EntreMédicos11, contudo, nos deparamos com uma versão alternativa dos fatos. Tatiana Lachi se formou na Unicamp em 2001. Fez mestrado em ciências da saúde (doenças crônicas e infecto-parasitárias) pela UFGD (Universidade Federal de Grande Dourados), em Mato Grosso do Sul. Possui título de especialista em radiologia e diagnóstico por imagem. Na UFMS, dá aula na área de saúde coletiva. “Sinto, sim, proximidade com a área científica da medicina. E acredito no tratamento precoce”, diz.

“Eu acredito que a Tatiana acha que faz ciência, sim”, me diz uma médica convidada a integrar o grupo recentemente, que prefere não ser identificada. “E os médicos que a seguem também, na maioria. Mas, para ignorar as evidências contrárias, como eles fazem, é necessário acreditar em um grande complô mundial contra as drogas prescritas por eles. Essas duas coisas coexistem.”

Evidências

No grupo, é constante a queixa de que a prática diária e observacional dos médicos vem sendo desprezada, enquanto se confere excessiva importância a estudos publicados em revistas como a Lancet. Basta ser referendado pelas páginas de algumas delas para que o “charlatanismo” vire “ciência”, brincam alguns.

“Chega dessa palhaçada! Parem de dar ouvidos a quem ainda fala que não existe tratamento precoce”, escreveu Francisco Cardoso. “Vamos tratar nossos doentes e tentar salvar o máximo possível de vidas.”
Isso leva a uma interessante discussão. “Precisamos, sim, das evidências científicas, e como é bom ver as mesmas evidências convergindo com as práticas observacionais, a prática à beira do leito”, diz um médico do grupo identificado apenas como Frederico.

“Uma forma de se fazer medicina não exclui a outra. A medicina baseada em evidência e a medicina observacional são aliadas —aliás, quem faz o confronto entre estas formas de fazer ciência são as pessoas, não a ciência”, responde Paulo.

Um médico de Itacoatiara, Amazonas, diz que está cansado dos colegas que não o ouvem, dos que sofrem de “EVIDENCITE”. Diz ele: “Eu fico me perguntando todos os dias por que só o Norte do Brasil teve que enterrar seus entes queridos em sepulturas coletivas. Não sei se outro estado passou por isso, mas aqui a negação ao tratamento precoce é brutal”. De acordo com pesquisa Datafolha, o Centro-Oeste e o Norte foram as regiões que mais fizeram uso do chamado tratamento precoce: 39% da população disse ter tomado algum remédio.

Letícia Cesarino, professora de antropologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), tem se dedicado a analisar esses embates, aflorados na pandemia, entre estudos observacionais e pesquisas que utilizam o chamado padrão-ouro do método científico. Ela apresentou em maio, em seminário online da London School of Economics, um estudo sobre a propagação de pesquisas e métodos de análise alternativos na internet.

“Há uma certa linha da ciência médica que defende que os estudos observacionais são mais eficazes e mais próximos de chegar a um resultado correto porque estão mais próximos da prática médica na vida real. Isso existe também.”

E completa: “O método científico único não existe. Existem alguns procedimentos que a ciência hegemônica ainda considera indispensáveis, como o controle de variável, o duplo-cego e a revisão dos resultados por seus pares”.

Os médicos do grupo costumam referendar suas posições com dados de sites como c19hcq.com e c19ivermectin.com, que compilam dados sobre o uso de hidroxicloroquina, ivermectina e outros remédios em casos de Covid-19. No entanto, sites como esses já foram amplamente criticados pela comunidade acadêmica, sob a alegação de que combinam vários estudos de diferentes qualidades para obter uma probabilidade maior de que os resultados saiam positivos para as substâncias testadas.

Gustavo Gossling, especialista em pesquisas clínicas em oncologia, percebe uma crise na ciência que ajuda a explicar como as pessoas acabam chegando a conclusões erradas confiando em pequenos periódicos. “Não sei como isso se comportou no tempo, mas o fato é que a quantidade de lixo que existe em ciência hoje torna qualquer experiência não guiada um verdadeiro labirinto”, diz.

Segundo ele, o atual modelo editorial dificulta a interpretação dos resultados. “Hoje, por pior que alguma pesquisa seja, ela será publicada em algum lugar. Naturalmente, a navegação para quem não entende de metodologia é quase impossível. Se a pessoa se mantiver nos periódicos mais importantes, assumindo sua limitação, ainda sobreviverá com base no crivo editorial destas revistas.” Em periódicos menos rigorosos e conceituados, diz ele, o leitor “naturalmente será esmagado por argumentos vazios, achados aleatórios e vieses sistemáticos”.

Nebulização

Esses embates se manifestam mais acentuadamente em alguns pontos específicos, e nem sempre há consenso nesses grupos médicos que se opõem ao consenso científico internacional. Um exemplo é a nebulização de hidroxicloroquina.

Tatiana Lachi defende esse método. “Já pratiquei, antes de o Conselho Federal de Medicina declarar que era procedimento experimental, com ótimos resultados. A saturação de um dos pacientes subiu de 90% para 95% de um dia para o outro. O paciente sobreviveu à Covid, recuperou-se em poucos dias e sem sequelas. Assim como eu, muitos são os médicos que defendem a vida humana e fazem tudo o que estiver ao nosso alcance para salvar os pacientes.”

Em uma resolução publicada em maio deste ano, o CFM (Conselho Federal de Medicina) afirma que não há informação sobre a eficácia e a segurança da medicação aplicada por via inalatória. Determinou, assim, que o procedimento por essa via só pode ocorrer de forma experimental, por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/Conep (comitês de ética em pesquisa e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).

Embora tampouco haja comprovação de eficácia e segurança quanto ao uso tradicional da hidroxicloroquina e de outros fármacos do chamado tratamento precoce, o CFM deliberou que os médicos têm autonomia para adotá-los, desde que contem com a aprovação dos pacientes.

No grupo, muitos expressam dúvidas a respeito da nebulização. Alguns perguntam sobre a melhor forma de usar o método, mesmo após a decisão do CFM. Outros dizem que não o utilizam mais, e há ainda os que o recomendam apenas para os “mais chegados”, amigos próximos ou familiares “em casos urgentes”. De toda forma, as divergências são respeitadas. Ninguém é discriminado por suas opções.

Vacinas

Outra questão controversa no grupo diz respeito à vacinação. Muitos dos integrantes manifestam desconfiança, alegando que os dados disponíveis são muito recentes e pouco confiáveis.

“Eu fui um dos últimos médicos do meu hospital a tomar vacina. Não estava seguro. Tomei porque a enfermeira responsável era minha amiga”, relatou um médico do Espírito Santo. “Ser contrária a estas vacinas de agora não quer dizer ser antivacina, apenas pontos de vista diferentes com tantas incertezas”, comentou outra integrante.

Argumenta-se também que a imunidade natural seria mais eficaz que as vacinas. Um médico do Rio de Janeiro pergunta: “Se já teve [Covid], para que se vacinar?”. E arremata: “Bem, se comparar [a imunidade natural] com os 50,38% da VaChina então, sem comentários”.

Já uma médica de Campinas acha que precisa dar o exemplo. “É questão de saúde pública. Como médicos, temos que incentivar a vacinação. Dizer para o paciente não se vacinar é muito complicado... se ele pegar Covid, vai lembrar de você.”

CPI

“O Brasil é o único país em que alguns políticos montaram uma CPI para criminalizar médicos que estão fazendo de tudo para salvar vidas”, diz um meme que circula constantemente no #EntreMédicos11.

O depoimento de Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, na CPI da Covid, em 25 de maio, provocou grande mobilização no grupo. Foi feita uma campanha #TamoJuntoMayra e circulou uma carta que classificava sua convocação como um ato de desrespeito.

No fim, Mayra, conhecida como capitã cloroquina, foi elogiada por sua bravura em enfrentar “os políticos podres que não sabem nada de medicina”, como disse uma médica da Bahia.

Também havia grande expectativa quanto à performance da médica Nise Yamaguchi, destacada defensora do tratamento precoce, mas muitos ficaram decepcionados. “Doutora Nise é uma grande profissional, mas não é preparada para ir a um debate com políticos”, disse uma médica. Um integrante da Bahia lamentou: “Ver um de nós humilhado dessa forma é insuportável. Ela não devia ter aceitado o convite”.

Nise foi interrompida diversas vezes pelos senadores durante seu depoimento, no dia 1º de junho, o que motivou diversos comentários nas redes sociais com acusações de machismo.

Em geral, fora esses episódios de CPI, evita-se tratar de temas políticos no grupo, uma forma de validar as discussões internas. Uma médica que prefere não ser identificada conta que Carine Petry, a administradora do grupo, “sempre pede pra não mandarem mensagem de ‘conteúdo político’”.

“Mandaram uma foto pedindo ‘manifestação infinita pelo presidente’ e ela [Carine] não gostou.” Apesar disso, há uma óbvia preferência por Bolsonaro, o que muitos justificam com critérios técnicos. “Os médicos não estariam nessa por apoio ao presidente, só que o presidente sempre acerta na defesa do tratamento”, diz a mesma integrante.

Em outros comentários, Carine já indicou o interesse dos médicos em pressionar internamente a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) para legitimar o tratamento precoce por meio da mobilização digital das redes.

Ciência e conspiração

“Essa frase foi top: ‘Bom senso vale muito mais do que as famosas evidências científicas’”, escreveu uma médica da Bahia. “A medicina que aprendi sempre foi baseada nessa lógica, mas atualmente estão destituindo toda a experiência profissional e colocando no pódio trabalhos ‘científicos’ que não podem ser levados à risca. Graças a Deus não estou só nesse pensamento.”

Letícia Cesarino entende que os médicos do tratamento precoce promovem uma espécie de populismo. Todos os grandes intermediários (comunidades científicas, revistas conceituadas) são dispensados. “Você recai em um tipo de ciência alternativa que será produzida a partir de alguns elementos científicos, pois ainda há uma certa sistematicidade, mas é uma relação muito diferente, porque só há um médico e seu paciente.”

E qual seria o motivo para a desconfiança em relação aos nomes tradicionais no debate científico? De acordo com Tatiana Lachi, “infelizmente a pandemia tem sido usada para fins políticos e financeiros”. “Sabendo que o tratamento precoce é capaz de pôr fim a situação em que vivemos, a quem interessaria não adotá-lo?”

“O argumento deles parece fazer sentido, mas ao mesmo tempo recai no problema do conspiracionismo da falta de documentação dos elos causais ocultos”, rebate Letícia. “Por exemplo, o estudo de Naomi Oreskes sobre a indústria do tabaco interferindo em pesquisas é todo documentado. É uma situação bastante diferente desta em relação à Covid, que aponta uma conspiração por omissão de explicações racionais.”

Tatiana e outros integrantes do grupo costumam destacar que respeitam a posição de médicos ou professores que tenham entendimentos diferentes dos seus. De modo geral, Letícia diz observar um comportamento diferente. “As pessoas do tratamento precoce não se contentam em seguir fazendo ciência dentro do jogo. Como os políticos populistas não se contentaram. Querem fazer um divisor incomensurável e virar a coisa toda do avesso.”

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