Descrição de chapéu Semana de 1922

São Paulo vê Semana de 22 sob novas perspectivas

Exposições, livros e produções para TV relativizam protagonismo paulista em meio à diversidade de expressões modernistas

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Naief Haddad Marcelo Pliger
São Paulo

[RESUMO] No centenário da Semana de 22, exposições, livros e série de TV contestam a supremacia paulista e comprovam que inúmeras expressões modernistas aconteceram pelo Brasil, antes e depois de 1922. Levantamento da Folha apresenta 169 expoentes do modernismo nas cinco regiões do país.

Nas décadas seguintes à Semana de Arte Moderna de 1922, formadores de opinião de São Paulo difundiram, com sucesso, a ideia de que aquela série de eventos no Theatro Municipal da capital paulista havia sido um momento de ruptura radical da cultura brasileira.

Esse ponto de vista se fortaleceu especialmente nos anos 1940, com textos de intelectuais como Lourival Gomes Machado, que celebrou as "forças de renovação" de São Paulo. Para o jornalista, a Semana significava um "corte de navalha [em] tecidos necrosados", como lembra o historiador da arte Rafael Cardoso.

A pintura, abstrata e minimalista, apresenta uma casa à noite, rodeada por pequenos traços que remetem a figuras humanas e animais.
"América do Sul" (1927), obra do recifense Joaquim do Rego Monteiro que está em exposição no Sesc 24 de Maio, em São Paulo - Divulgação Sesc 24 de Maio

Defender a supremacia paulista implicava deixar manifestações modernistas de outros centros em segundo plano. "Só em São Paulo poderia ter nascido uma revolução estética de tal porte", escreveu Gomes Machado.

Cem anos depois, uma ironia histórica. Instituições culturais, editoras e emissoras de TV de São Paulo têm aproveitado a efeméride para mostrar o que, a esta altura, deveria ser uma obviedade, ou seja, expressões modernistas dignas de registro aconteceram no Brasil antes e depois de 1922 e não apenas em terras paulistas.

"Encontraremos incontáveis evidências de que a Semana faz parte de um amplo (e descontínuo) processo que a extrapola, tanto temporal quanto territorialmente", escrevem as curadoras Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros no principal texto do catálogo da exposição "Moderno Onde? Moderno Quando?", apresentada no MAM-SP (Museu de Arte Moderna) de setembro a dezembro de 2021.

Essa mostra ganhou a companhia de outras exposições nesse propósito de relativizar o protagonismo paulista no modernismo. São o caso de "Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil", em cartaz no Sesc 24 de Maio até o início de agosto, e "Modernos", na Faap, dividida em dois núcleos, Antes de 1922 (já encerrada) e Depois de 1922 (até novembro deste ano).

Duas figuras de relevo em "Raio-que-o-parta" são o artista gráfico Santa Rosa, nascido na Paraíba e radicado no Rio, e o fotógrafo Virgilio Calegari, italiano que passou a maior parte da vida em Porto Alegre. Eles também estão no quadro abaixo montado pela Folha, com 169 expoentes do modernismo nas cinco regiões do país.

O levantamento do jornal, que contempla manifestações como artes visuais e gráficas, literatura, música, fotografia e cinema, considerou o período que vai de 1900 a 1937, seguindo o modelo adotado por "Moderno Onde? Moderno Quando?".

Além disso, o mapeamento não pretende abarcar a totalidade de expoentes modernistas que surgiram Brasil afora, apenas apresentar uma variedade expressiva de nomes.

Voltemos às exposições. As curadorias das três mostras citadas não buscam minimizar a potência dos artistas presentes na Semana, mas os inserem em um contexto amplo, em meio a correntes diversas.

"Raio-que-o-parta" reúne trabalhos de nomes ligados a 22, como Anita Malfatti e Victor Brecheret, mas reserva, por exemplo, uma seção aos pintores e escultores modernistas do Norte, como o paraense Theodoro Braga e o amazonense Manoel Santiago.

Como explica Aldrin Moura de Figueiredo, professor do departamento de história da UFPA (Universidade Federal do Pará) e um dos curadores da exposição do Sesc, Braga é um dos criadores de um movimento chamado neomarajoara, que incorpora os grafismos das culturas indígenas.

"Ele tinha ligações com nomes da elite paulista, mas não com o Mário de Andrade. Por conta disso, embora seja um artista muito importante, acabou ficando um pouco apagado", acredita o historiador.

Para Figueiredo, "a hora é de mover o pêndulo" para valorizar outras figuras do modernismo amazônico, como o jornalista e romancista Abguar Bastos, autor de "Terra de Icamiaba", e a poeta e cronista Eneida de Moraes, de "Terra Verde".

Assim como "Raio-que-o-parta", a exposição "Moderno Onde? Moderno Quando?" não tratou a Semana como um fato isolado. Exibiu obras de artistas como Di Cavalcanti e Ferrignac, nomes associados a 22, ao lado de pinturas de Cícero Dias e Joaquim do Rego Monteiro, ambos de Recife, e de Raimundo Cela, de Sobral, entre outras expressões distantes de São Paulo.

"Recife é um polo muito forte do modernismo", enfatiza Cauê Alves, curador-chefe do MAM. A avaliação é endossada pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor titular aposentado da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), que ressalta o vanguardismo dos irmãos pernambucanos Rego Monteiro, Fédora (a mais velha), Vicente (o mais famoso) e Joaquim.

"Eles estudaram em Paris e foram modernistas muito antes do advento do movimento modernista no Brasil", diz Albuquerque Júnior.

O historiador lembra que a primeira exposição da chamada Escola de Paris no Brasil não aconteceu em São Paulo ou Rio de Janeiro. Foi Recife que recebeu obras de artistas como Pablo Picasso e Georges Braque em 1930, um feito de Vicente do Rego Monteiro.

Nas artes visuais, aliás, a Escola de Paris ganhou por aqui o status de sinônimo de modernismo. Não é bem assim, comenta Rafael Cardoso, pesquisador ligado à Universidade Livre de Berlim. "O que nós costumamos chamar de modernismo no Brasil é uma corrente muito específica. São as vanguardas francesas, como os cubistas e os surrealistas, atuantes em Paris. Mas esse modernismo não é o único. Houve o construtivismo russo, o expressionismo alemão e outros", diz o historiador da arte.

Segundo ele, não existe um modernismo como movimento unificado. "Falamos em modernismos, no plural. Ou, então, identificamos a corrente."

Parte do painel "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife", de Cícero Dias; obra estava na exposição "Moderno Onde? Moderno Quando?", no MAM-SP - Reprodução

"No início deste ano, Cardoso lançou "Modernidade em Preto e Branco", livro que defende uma compreensão mais ampla dos avanços modernistas, trazendo para a cena não apenas outras regiões do país como também grupos sociais além da elite de São Paulo.

"Os modernismos de Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul, entre outros que existiram tiveram sua importância apagada ou rebaixada a fim de ressaltar a liderança paulista", escreve o pesquisador.

A invenção de um movimento chamado de pré-modernista está entre os alvos de Cardoso no livro. "Existe um princípio básico do historicismo, segundo o qual não se pode interpretar o passado pelo que ocorreu depois. É preciso colocar no contexto da época", diz ele. "Uma expressão como pré-modernismo ou qualquer ‘pré’ em artes plásticas ou literatura não fazem sentido. Ninguém faz uma obra de arte agora pensando que, daqui a 20 anos, alguém vai se inspirar nela para fazer algo melhor."

Qual lugar, então, ocupa Lima Barreto, escritor comumente associado ao que se convencionou chamar de pré-modernismo?

O autor de "Triste Fim de Policarpo Quaresma" e "Os Bruzundangas" não é, afirma Cardoso, "um modernista paulista de 22, mas é claramente um autor modernista. É um outro modernismo, que a [historiadora] Mônica Pimenta Velloso chamou de modernismo do Rio de Janeiro. É um modernismo que não compartilha dos mesmos pressupostos do de São Paulo."

O autor de "Modernidade em Preto e Branco" também enaltece o trabalho de nomes de ponta do design gráfico no Rio nas primeiras décadas do século 20, como J. Carlos e K. Lixto.

"Ao entender o modernismo como um movimento unificado, acaba-se, por tabela, excluindo muita gente. Ao dizer que Lima Barreto não era modernista, que o K. Lixto não era modernista, você exclui dois nomes que, por acaso, são afrodescendentes. Esse acaso é muito suspeito, não é?", questiona Cardoso.

"Modernidade em Preto e Branco" saiu pela Companhia das Letras, uma editora paulista como a Todavia, que lança "A Ideologia Modernista", de Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Fischer se propõe a derrubar ou repensar mitos em torno da Semana e, ao longo deste percurso, lembra modernistas que mereceriam maior reconhecimento.

Vale ainda mencionar duas produções para TV. Uma é "22 em XXI", documentário de quase 90 minutos dirigido por Helio Goldsztejn e produzido pelo SescTV.

Outra é "22 Cem Anos Depois", série criada pelo jornalista Miguel de Almeida, com 22 minidocumentários. Com dois minutos e meio de duração cada um, começaram a ser exibidos pela TV Cultura em fevereiro ao longo da sua programação e ficam no ar pelo menos até setembro deste ano.

Mário, Oswald e cia. são homenageados na série, mas também nomes além das fronteiras paulistas, como o antropólogo potiguar Câmara Cascudo e o compositor e instrumentista carioca Pixinguinha.

O criador de clássicos como "Rosa" e "Carinhoso" transitou por gêneros musicais como a valsa, a polca, o samba e o jazz; e promoveu inovações em ritmo, melodia e harmonia, abrindo caminhos para a consagração do choro.

Para Rafael Cardoso, modernismos são "respostas artísticas à condição da modernidade". Se assim é, haveria alguém mais modernista do que Pixinguinha?

A pergunta não é por que colocar favela e Carnaval em um livro sobre modernismo. A pergunta é: por que isso não foi feito até hoje? A historiografia da arte no Brasil acha que pode discutir o quadro ‘Morro da Favela’, da Tarsila, só falando em estética, sem discutir a favela

Rafael Cardoso

autor de “Modernidade em Preto e Branco - Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil, 1890-1945”

É forçoso repetir que a Semana de Arte Moderna não desponta como um fato isolado —e que São Paulo não era a única cidade do país com pretensões modernas

Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros

curadoras da exposição “Moderno Onde? Moderno Quando?” em texto do catálogo; mostra ficou em cartaz no MAM-SP de setembro a dezembro de 2021

Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil

  • Quando De ter. a sáb., 9h às 20h30. Dom.: 9h às 17h30. Até 7/8
  • Onde Sesc 24 de Maio (r. 24 de Maio, 109, Centro, São Paulo)
  • Preço Entrada gratuita

Modernos

  • Quando De qua. a seg., das 10h às 18h. Até 27/11
  • Onde Faap (r. Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo)
  • Preço Entrada grauita

Modernidade em Preto e Branco - Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil, 1890-1945

  • Preço R$ 100 (versão digital, R$ 40)
  • Autor Rafael Cardoso
  • Editora Companhia das Letras (372 págs.)

A Ideologia Modernista

  • Preço R$ 100 (versão digital, R$ 60)
  • Autor Luís Augusto Fischer
  • Editora Todavia (448 págs.)
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