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13/06/2010 - 07h07

Ismail Xavier fala sobre o cinema de Karim Aïnouz

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DE SÃO PAULO

Leia a íntegra da entrevista dada ao jornalista Pedro Butcher, exclusiva para a "Ilustríssima", onde o crítico discute o papel do cineasta na produção contemporânea brasileira, em que aponta novos caminhos para a linguagem da arte e para a relação personagens e a construção do roteiro

Ilustríssima - De que maneira os filmes de Karim Aïnouz apontam para uma alternativa ao ressentimento, tão presente nos personagens e temas do cinema brasileiro dos anos 90, como você já havia apontado?

Ismail Xavier - Perto de seu final, "Madame Satã" deixa a questão: por que um personagem tão afirmativo, do tipo que não leva desaforo para casa, aguenta sem reagir a humilhação imposta no bar por um desconhecido para, só depois de ruminar a ofensa, voltar à rua, seguir o agressor e atirar nele pelas costas? Esse tiro o leva à prisão. Teria ele, nessa crise, iniciado uma regressão bem ao fim, um flashback? Voltamos ao rosto acuado de Lázaro Ramos, lá do início do filme, para ouvir de novo a diatribe da voz da lei contra o "mau elemento". Compõe-se um possível desfecho para uma vida tomada em trajetória descendente. Mas não é isso que ocorre no final. Do rosto alquebrado, saltamos para a metamorfose em que ele renasce como Madame Satã. O desfecho afirma a autoestima de uma figura potente em seu confronto com a repressão sexual, racial. O gesto de reinventar-se fez de "Madame Satã" um exemplo dessa alternativa ao ressentimento, à impotência, ao autoenvenenamento. Tal gesto afirmativo coroa um percurso em que não há lugar para idealizações; a sua força como ator na sociedade não o isenta de fortes contradições. Em "O Céu de Suely", a protagonista aceita a experiência limite de rifar o seu corpo para viabilizar a sua liberação; ela não se desenha como a boa alma disposta a sucumbir em nome da pureza, do amor perdido ou do retorno nostálgico à ordem familiar. Seu ciclo de vida na pequena cidade compõe o entreato, a digestão da experiência que, por fim, a libera - sonho que Dalva (de "Um Céu de Estrelas", Tata Amaral), por exemplo, não consegue efetivar, face à tragédia do último encontro com o namorado ressentido. No filme de Karim, a disposição da personagem se projeta no espaço, na afirmação da viagem como promessa.

Ilustríssima - Em entrevista para a Ilustrada, em 2007, você falou que os filmes de Karim Aïnouz priorizavam a questão da exploração do espaço ("um cinema que quer elaborar a passagem dos personagens, mas sempre com uma maior ênfase na documentação dos espaços do que propriamente em desenvolver conflitos dramáticos"). "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" seria uma radicalização dessa proposta?

Ismail Xavier - Creio que sim. Porque nesse filme de enorme amplitude, tudo se formaliza em termos mínimos: o som compõe o personagem-voz e o cine-olho se movimenta pela estrada, sendo múltiplas as conexões entre as duas bandas independentes (duas exceções: a entrevista com Patrícia e o velho cantor). É um filme de montagem, e a junção de fragmentos e registros compõe um tecido pop-sertanejo que a flutuação da voz no tempo (não na estrada) cimenta numa narrativa elíptica que, por sua vez, se tonifica, sem pressa, na variedade de climas e afetos gerados pela textura de imagens, fisionomias, ambientes. O tempo dilatado adensa a relação com os campos em que o olhar se fixa, nem sempre com centro estável, pois não está ancorado num corpo, mas numa máquina. O registro é documental, mas a voz "em over" compõe a memória do passado recente, lamenta a separação da mulher, o "pé na bunda" que só aos poucos vem à superfície nesse trânsito do geólogo que sofre entre a vontade e a dificuldade de esquecer, entre o impulso de voltar e o de se perder num labirinto. A dor de cotovelo encontra o seu momento de expressão lapidar em mais um desses encontros singulares do road movie brasileiro recente: a cena do sapateiro-cantor, que condensa ou talvez inspire este filme samba-canção em que o sertão dá voltas e encontra Vila Isabel. Mais tarde, a voz chega ao momento de expansão quando recupera o anseio de "mergulhar na vida" e faz irromper na tela a coreografia dos saltos na geologia costeira de Acapulco. É um filme de muitas sugestões, metáforas. Enfim, o máximo no mínimo. Renova-se a poética da "voz over" tão importante no cinema brasileiro mais inventivo - e mesmo no mais convencional - e renova-se a forma de pôr em cena a superfície da terra, o sertão, a estrada, o mar, este último de novo associado à promessa de superação.

Ilustríssima: Certa vez, Karim Aïnouz afirmou, particularmente em relação a "O Céu de Suely", que seus personagens não eram movidos pela "falta" - seria justamente o contrário, o que os move é uma sensação de transbordamento, de não caber nos espaços. Como isso se traduz nos filmes?

Ismail Xavier - É interessante que ele tenha falado em transbordamento, evitando o mote psicanalítico da falta, como que para acentuar essa projeção de tudo na impulsão do corpo ao movimento. Em "Viajo Porque Preciso..." há essa impulsão vivida, sinalizada, de um corpo invisível e temos a presença crescente de uma ideia gêmea, a da transposição. Na vontade e na dificuldade de esquecer, Renato precisa transpor um limiar que a duração da viagem parece sempre jogar para frente, mantendo a dualidade de ir e vir, a incerteza de quem quer se reinventar. Ao mesmo tempo, o ofício de geólogo o envolve em outra transposição, o projeto de canalização de rio que alude à atual conjuntura político-social, compondo um nexo inesperado entre o seu movimento e a grande geografia que o cerca, presente nas imagens documentais banhadas por um olhar que quase sempre o espectador associa às vivências do protagonista.

Ilustríssima - Muitos filmes brasileiros parecem mais preocupados em dar conta de "entender" o Brasil e os cineastas falam como sociólogos, enquanto o cinema e as questões de linguagem ficam em segundo plano. Essa questão é verdadeira?

Ismail Xavier - Não sei se é a maior parte, mas concordo que as questões de linguagem ficam em segundo plano, o que também acho um problema. De qualquer maneira, não diria que parecem sociólogos; não é preciso ser um "ólogo" para se interessar pela vida social e conectar a sua arte a inquietações partilhadas. De todo modo, é essencial conversar sobre estilo e forma, a melhor maneira de buscar a conexão mais lúcida entre as coisas, aquela que faz a diferença entre o artista e seu filme diante dos "ólogos" e seu discurso. "Viajo porque preciso..." é exemplo de como a solução formal exprime uma forma peculiar de relação em que figuras que se roçam de passagem revelam aflições sem entrar em conflito, valendo nesse movimento cruzado o que expõe a fisionomia da solidão, ou da falsa felicidade: as figuras do mundo estável se ressentem dos desmandos e das paredes, vivem a nostalgia da estrada, e as moças lançadas à rua e aos expedientes expressam o anelo da "vida lazer", do amor romântico, do casamento. O mundo de migrações quase sempre pouco venturosas não obriga o cineasta à opção pelo trágico, valendo esta interrogação que se reabre diante de contradições expostas com muita sutileza.

 

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