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04/04/2013 - 16h16

Testas de ferro protegem identidades de trapaceiros, déspotas e espiões

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GERARD RYLE
STEFAN CANDEA
DO ICIJ

Em 14 de novembro de 2006, um homem que usava o nome de Paul William Hampel foi detido em um aeroporto canadense sob a acusação de espionar para a Rússia.

A identidade cuidadosamente construída de Hampel o identificava como um empresário de sucesso, ainda que sua companhia estivesse inoperante há uma década.

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Poucos meses antes de sua captura, o mesmo aparato empregado para criar sua falsa identidade foi usado por uma agência de espionagem muito diferente --a CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos)-- para criar uma prisão secreta na Lituânia onde agentes norte-americanos interrogavam suspeitos de terrorismo e conexão com a Al Qaeda.

Em passado um pouco mais distante, o sistema foi utilizado pelo regime do ditador iraquiano Saddam Hussein para trapacear um programa da ONU que permitia ao seu país, que vivia sob embargo internacional, vender petróleo para comprar alimentos.

Todas as três manobras empregavam o mesmo subterfúgio: entidades empresariais criadas em lugares distantes e usadas como fachadas anônimas, com "executivos" desprovidos de qualquer conhecimento sobre as atividades das companhias.

As atividades dos dirigentes prepostos são uma parte não muito divulgada do sigiloso mundo das finanças offshore, que cresceu a ponto de envolver 170 dos 206 países do planeta; apesar de pouco debatida, essa parte do mercado offshore envolve sérias intrigas.

Por remuneração que começa em apenas US$ 90, homens e mulheres que parecem ter pouca ou nenhuma qualificação empresarial emprestam seus nomes, como conselheiros e diretores, a empresas sobre as quais mais tarde alegam nada saber, e que já foram conectadas a todo tipo de delito, de fraude com ações a lavagem de dinheiro.

Como diz uma companhia de serviços financeiros offshore sediada no Panamá a seus clientes, "não importa quem seja o testa de ferro de sua companhia, desde que não seja você". A empresa promete que os prepostos que fornece "ignorarão completamente o que acontece em sua corporação".

O serviço que os prepostos oferecem não é ilegal em si. Eles em geral afirmam que estão ajudando os proprietários das empresas a preservar sua privacidade, uma preocupação legítima.

Mas a escala e organização de suas redes se tornou vívida quando o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) vasculhou milhões de arquivos secretos do mundo offshore.
Os documentos são registros de clientes e e-mails internos associados primordialmente a duas empresas --Commonwealth Trust e Portcullis TrustNet-- que criam entidades offshore para outros intermediários e operam escritórios em diversos paraísos fiscais.

Os documentos expõem o complexo relacionamento entre as duas prestadoras de serviços financeiros --e existem muitas outras companhias como elas, em geral sediadas em ilhas tropicais--, os prepostos indicados para as entidades e os agentes tributários, bancos e escritórios de advocacia que os atendem em todo o mundo.

É um sistema sigiloso e de imensa escala, que obscurece a propriedade de bilhões de dólares cuja origem muitas vezes não pode ser identificada e que fluem pelas contas dessas entidades a cada ano, formando um fluxo mundial de capital com valor superior a US$ 1 trilhão e que cresceu a ponto de se tornar capaz de distorcer e até mesmo desestabilizar a economia mundial.

O que emerge é que cartéis de drogas, traficantes de armas e países renegados se aproveitam dos mesmos sistemas usados pelas operações clandestinas dos governos da Rússia e Estados Unidos.

REVENDO OS SEGREDOS

A maioria das companhias offshore e dos prepostos que formam seus conselhos e diretorias "estão envolvidas em atividades muito tediosas", diz Jason Sharman, da Universidade Griffith, Austrália, que estuda a questão do sigilo nas finanças offshore, mas "você certamente vai usar um preposto na sua companhia caso esteja fazendo algo de ruim".

Um relatório do Banco Mundial e das Nações Unidas, em 2011, do qual Sharman foi co-autor, constatou que nomes de prepostos emergem regularmente naquilo que o estudo define como "grandes escândalos de corrupção" em todo o mundo.

O estudo afirma que a complexidade dos relacionamentos do mundo offshore muitas vezes cria um emaranhado que pode desencorajar investigadores, autoridades regulatórias, advogados e outros interessados em rastrear corrupção, lavagem de dinheiro e outros delitos.

"As jurisdições offshore adoram uma postura relaxada quanto aos deveres dos conselheiros, especialmente se o conselheiro vive em outra jurisdição", explica Sharman. "As autoridades dos países com regimes sérios de fiscalização dificilmente dedicariam esforços sérios a obter a extradição de um preposto que empreste seu nome a ume empresa". O trabalho policial transnacional, diz ele, "é muito complicado".

Poucos dos prepostos exemplificam a situação melhor do que Stan Gorin e Erik Vanagels. De uma base na Letônia, pequeno país báltico, os nomes deles estão ligados a centenas de empresas de todo o mundo, algumas das quais associadas a casos de "grande corrupção".

Gorin e Vanagels se provaram tão competentes em sua função como laranjas que há até dúvidas sobre sua existência.

Um jornalista ucraniano da rede TVi tentou localizar a dupla em 2011, e descobriu que Gorin, na vida real, é corretor de seguros em Riga, capital letã, e negou conhecimento de seu suposto trabalho como preposto em diversos lugares do mundo. Gorin repetiu a negativa quando contatado para esta reportagem.

Em uma reportagem posterior, o mesmo jornalista não conseguiu localizar Vanagels, descrito por uma mulher que o conhecia como um morador de rua meio cego em Riga.

O ICIJ tampouco conseguiu localizá-lo.

O que é inegável, de acordo com documentos obtidos pelo ICIJ, buscas em registros públicos e reportagens de outros jornalistas, é a litania de intrigas que pode ser vinculada a essas duas identidades.

Os documentos do ICIJ mostram que os nomes de Gorin e Vanagels foram usados para criar diversas entidades offshore vinculadas a Mukhtar Ablyazov, ex-presidente do banco BTA, do Cazaquistão.

Algumas das entidades foram incorporadas por Paul Kythreotis, colega de Ablyazov, e por Syrym Shalabeyev, cunhado do banqueiro.

Ablyazov está sendo acusado de desfalque de até US$ 5 bilhões conta o BTA em seu país de origem, naquilo que a mídia britânica descreve como uma das maiores fraudes de todos os tempos. Ele fugiu do Reino Unido, onde estava morando, no ano passado, pouco antes de ser sentenciado a 22 meses de prisão por não ter revelado todos os detalhes de sua riqueza, e deixou para trás uma série de casas de luxo supostamente financiadas por meio de falsos empréstimos, documentos com datas falsas e contas offshore.

Também há o caso do MV Faina, um navio mercante capturado por piratas quando percorria a rota Ucrânia-Quênia, em setembro de 2008.

A preocupação internacional naquele momento se concentrava no destino da população e da carga --33 tanques soviéticos T-72, e mais lançadores de granadas e munição para armas portáteis destinada ao governo rebelde do Sudão do Sul, que na época estava sob embargo de armas decretado pelas Nações Unidas.

Uma companhia panamenha anônima, a Waterlux, era a proprietária oficial do navio. Mas por trás da Waterlux havia duas outras companhias panamenhas, a Systemo e a Cascado --ambas as quais tinham Gorin e Vanagels como responsáveis legais.

Um evento muito diferente mas igualmente interessante aconteceu em 9 de julho de 2003, quando uma entidade panamenha vinculada a Gorin, o Star Group Finance and Holdings, foi usada para registrar uma companhia chamada Elite, em Washington.

A CIA mais tarde usou a Elite para adquirir uma antiga academia de equitação perto de Vilna, Lituânia, para construir lá uma prisão secreta. As instalações foram inauguradas em setembro de 2004 e mais tarde serviram de tema a uma investigação do Parlamento Europeu, depois que a rede de TV norte-americana ABC reportou que o local era usado para interrogar, clandestinamente e com técnicas violentas, prisioneiros suspeitos de terrorismo e associação com a Al Qaeda.

A ABC citou um pesquisador de direitos humanos, segundo o qual os prisioneiros haviam sofrido "diversas formas de tortura, entre as quais privação de sono, ficar de pé à força e assumir posições cansativas e dolorosas".

SEM RAZÕES PERSUASIVAS

Um relatório divulgado em janeiro pela European Network on Debt and Development, uma ONG europeia, constatou que estruturas legais opacas são uma das chaves para ocultar a verdadeira propriedade de entidades que em certos casos podem ser usadas para facilitar sonegação fiscal, corrupção e crimes associados.

Alex Marriage, autor do estudo intitulado "Estruturas Secretas, Crimes Ocultos", afirma que "usar prepostos é uma maneira chave de ocultar os proprietários reais". Os investigadores, acrescenta não encontraram "razões persuasivas para o uso de prepostos como acionistas".

"Pode existir alguma circunstância muito especial sob a qual um preposto seja necessário", ele acrescenta, apontando como exemplo duas empresas internacionais que precisem conduzir negócios em território neutro, "mas pequenas mudanças na lei bastariam para tornar essa prática desnecessária".

Um relatório publicado em 2012 pelo Global Witness, do Reino Unido, aponta que um dos problemas é que as autoridades judiciais dos Estados Unidos, Reino Unido e muito outros países não consideram os prepostos que sirvam no conselho como responsáveis pela conduta das companhias a que servem de testas de ferro.

Além disso, os documentos que estabelecem as empresas offshore muitas vezes incluem cláusulas que protegem os prepostos de responsabilidades financeiras caso as empresas venham a ser processadas.

"É perfeitamente legal, em muitos países, recorrer a um preposto, cujo nome é usado na documentação, e evitar que o nome do verdadeiro responsável apareça como dirigente ou proprietário de uma empresa", afirma o relatório da Global Witness.

"Os prepostos na prática alugam seus nomes, e ao fazê-lo oferecem o anonimato de que funcionários corruptos, sonegadores de impostos e outros criminosos requerem para movimentar dinheiro sujo por todo o mundo".

Gorin e Vanagels estão longe de ser os únicos jogadores nessa terra inóspita para os fiscais.

O GRUPO DOS 28

O ICIJ, trabalhando com o jornal "Guardian" e o programa "Panorama", da BBC, no Reino Unido, identificou um grupo de 28 outros prepostos que, entre eles, representam mais de 21 mil companhias; alguns desses prepostos têm postos em mais de quatro mil companhias.

Um exemplo é Jesse Grant Hester, preposto de empresas sediadas em Sark, uma das ilhas do Canal da Mancha sob jurisdição britânica e mais tarde radicado em Mauritius, um paraíso fiscal no Oceano Índico. Hester era o diretor responsável pela Candonly, uma entidade irlandesa, que um inquérito oficial descobriu, mais tarde, ter sido usada pelo ditador iraquiano Saddam Hussein para trapacear o programa de venda de petróleo e compra de alimentos autorizado pela ONU.

Hester, que não respondeu a um pedido de comentário, é mencionado como preposto em pelo menos 1,5 mil outras companhias nas Ilhas Virgens Britânicas, Reino Unido, Irlanda e Nova Zelândia, de acordo com uma análise do ICIJ.

Até que a prática fosse proibida, no final dos anos 90, era comum que residentes de Sark, a exemplo de Hester, emprestassem seus nomes a empresas de todo mundo cujos proprietários desejassem anonimato.

No auge do escândalo que ganhou o apelido de "Sark Lark", reportou a BBC, os 600 habitantes da ilha detinham, entre eles, 15 mil postos em empresas, alguns dos quais viriam a causar controvérsia posteriormente.

Um exemplo extremo envolve John Donnelly, morador de Sark que emprestou nome como preposto à Mil-Tec, uma empresa da ilha de Man que vendeu rifles, foguetes, bombas de morteiro e munição a Ruanda, onde esse equipamento foi usado no genocídio de 1994.

Depois das medidas repressivas do governo britânico, muitas das pessoas que serviam como prepostos em Sark se transferiram a outras jurisdições, a exemplo de Chipre, Emirados Árabes Unidos (EAU), Mauritius e Irlanda, onde, como mostram os documentos secretos do ICIJ, simplesmente retomaram suas operações.

ESPIÃO RUSSO

Os documentos do ICIJ identificam três outros moradores de Sark que tinham papéis nos misteriosos antecedentes de Hampel, o suposto espião russo detido no Canadá.

De acordo com o "National Post", Hampel havia criado uma presença empresarial na Irlanda em 1997, dois anos depois de receber seu primeiro passaporte canadense, obtido com o uso de uma falsa certidão de nascimento da província de Ontário.

Documentos empresariais descrevem a entidade irlandesa, Emerging Markets Research & Consulting, como uma empresa de turismo --e Hampel como consultor de viagens. Mas o "National Post" reportou que as contas anuais da companhia demonstravam que ela não tinha atividades de negócios e que parecia existir simplesmente para acobertar as atividades de espionagem de Hampel.

Ainda que tenha negado no tribunal acusações de que integrava o Sluzhba Vneshney Razvedki (SVR), serviço de espionagem russo e sucessor do infame KGB, Hampel terminou deportado para a Rússia, depois de admitir entrada ilegal no Canadá.

Na entidade que Hampel criou na Irlanda, aparecem entre os nomes dos prepostos os de Sean Lee Hogan, Simon Ashley Couldridge e Michael Andrew Gray, todos os quais presentes em muitos outros dos documentos obtidos pelo ICIJ. Todos recusaram pedidos de comentário enviados por e-mail.

Entre os muitos postos detidos por Hogan --entre os quais quase 100 nas Ilhas Virgens Britânicas, 743 em companhias britânicas e dezenas nos Estados Unidos, Panamá, Áustria, Irlanda e Nova Zelândia-- há empresas vinculadas a um professor norueguês, à gigante estatal russa do gás natural e petróleo Gazprom e a uma editora de música, a Plaza Mayor, cujo site alega que ela representa as obras de Julio Iglesias, Ricky Martin e Placido Domingo.

Couldridge, que recentemente colocou à venda sua casa em Sark por quase cinco milhões de libras, têm seu nome publicamente identificado como representante legal de mais de mil companhias na Irlanda.

Gray dirige o Alterego Group, companhia cipriota que se vangloria, em um e-mail obtido pelo ICIJ, de que "nós na Alterego Management somos o seu outro eu visível... O desejo de obter completa privacidade, ocasionalmente beirando o anonimato total, é um grande motivo para que tantas companhias de serviços nos empreguem".

Em um exemplo da grande sobreposição entre os nomes mais frequentemente usados no mundo offshore, os dados obtidos pelo ICIJ revelam que um dos outros clientes de Gray era Roger Alberto Santamaria del Cid.

Em outubro de 2010, Santamaria foi identificado em reportagens como contato panamenho de uma arapuca de investimento, a Imperia Invest IBC, que fraudou 14 mil clientes em todo o mundo, roubando-lhes US$ 7 milhões. Entre eles há seis mil moradores dos Estados norte-americanos do Maine, Texas, Utah e Wisconsin.

A Securities and Exchange Commission (SEC), agência que regulamenta o mercado de valores mobiliários dos Estados Unidos, a Autoridade Monetária de Cingapura, a Autoridade de Fiscalização Financeira da Suécia e Autoridade de Fiscalização do Mercado Financeiro Suíço lançaram alertas sobre a Imperia.

Não existe sugestão de que Gray tenha qualquer envolvimento com a Imperia, e os dados obtidos pelo ICIJ e buscas em registros públicos de companhias indicam que Santamaria era apenas um preposto. Santamaria não foi localizado para comentar.

Os demais conselheiros da entidade panamenha à qual o nome dele está vinculado? Gorin e Vanagels.

Gerard Ryle é diretor do International Consortium of Investigative Journalists. Stefan Candea é membro do ICIJ e co-fundador do Centro Romeno de Jornalismo Investigativo.

Arta Giga, do Centro Báltico de Jornalismo Investigativo, Lituânia, contribuiu para este artigo.

O International Consortium for Investigative Journalists é uma rede independente de repórteres de mais de 60 países que colaboram em investigações internacionais. É um projeto do Center for Public Integrity, de Washington

Tradução de Paulo Migliacci

 

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