Descrição de chapéu Folhainvest

'Fui criado na escassez e é dela que tento tirar o máximo', diz ex-garçom negro hoje sócio de corretora

Na base da pirâmide, investir não basta para superar desafio da mobilidade, afirma Gilvan Bueno

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São Paulo

"Você vai rir da vida agora, deixa eu te mostrar", avisa Gilvan Bueno, 41, interrompendo a entrevista por vídeo enquanto encolhe o corpo para fazer caber na tela parte do seu 1,86 metro de altura.

De dentro do escritório no 18º andar do edifício com janelas amplas emoldurando o Pão de Açúcar, o homem negro sorridente aponta para um prédio mais baixo na Praia de Botafogo, cerca de 700 metros adiante. "Estamos aqui e, ali, olha, era a pizzaria onde eu trabalhava."

Gilvan Bueno, 41, especialista em educação financeira e sócio da Órama
Gilvan Bueno, 41, especialista em educação financeira e sócio da Órama - Eduardo Anizelli/Folhapress

Há quase 15 anos Bueno deixava o emprego de garçom no restaurante de um shopping na zona sul do Rio de Janeiro para tentar uma carreira em finanças. Há 15 meses é executivo da Órama, uma das principais corretoras de valores do país, da qual também passou a ser sócio em um braço da empresa voltado à educação financeira.

Durante a conversa de uma hora com a Folha, o executivo detalhou como usou suas habilidades pessoais para compensar os anos de atraso na sua formação profissional para conseguir competir em um ambiente repleto de profissionais brancos formados em faculdades de primeira linha.

"Tive que me camuflar", brinca.

Bueno acreditou na própria ascensão aos 27 anos de idade, ao conhecer a história do empreendedor negro americano Chris Gardner, interpretado por Will Smith em "A Procura da Felicidade", filme que assistiu pela primeira vez em alguma madrugada de 2008, diz.

"Estou na casa de um amigo, todos estão dormindo e eu estava na sala. Começa a passar esse filme. Ficou na minha cabeça. Já assisti ao filme mais de 50 vezes. Minhas filhas [de 10 e 20 anos de idade] assistiram. Peço sempre que as pessoas assistam, para aqueles que querem fazer coisas impossíveis", afirma.

Imitando Gardner, Bueno trabalhou e estudou "como um louco", em suas palavras, para conseguir a certificação que o autorizava a se tornar um profissional de finanças e, assim, o emprego na primeira corretora.

Alguns anos depois, quando perdeu uma promoção em um importante banco de investimentos por não falar inglês, ele teve a dimensão do abismo que separava pessoas pretas e pobres dos filhos de famílias mais ricas que ocupam as melhores vagas do mercado.

A sua "maior derrota profissional", como Bueno descreve o episódio, o fez perceber que a mobilidade social que ele buscava não seria atingida por meio de orientações tradicionais sobre educação financeira.

"Demorei para entender o desafio socioeconômico. Se você me perguntasse há alguns anos sobre educação financeira, eu teria um discurso assim: economize R$ 50 por mês porque no final do ano você terá R$ 600. Isso não funciona para os 100 milhões de brasileiros mais pobres", afirma.

Criado pela avó em Linhares (ES), embora tenha nascido em Salvador (BA), Bueno passou da pobreza à miséria aos 11 anos de idade, quando perdeu a mãe, que mandava dinheiro para a família a partir do Rio, onde trabalhava. O abacateiro no quintal da avó, por vezes, era a única fonte de alimento. "Até hoje eu não gosto muito de abacate."

Aos 15, também decidiu tentar a vida no Rio. Deixou para a avó Diva Consuelo um bilhete no qual explicou que estava indo embora para não ser mais um peso para ela.

Na capital fluminense, vendeu materiais recicláveis, foi ambulante e "burrinho de carga", como ele diz que, na época, apelidavam ajudantes de pedreiro que levavam sacos de cimento nas costas.

Para quem, como ele, larga muitas posições atrás na corrida do mercado de trabalho, é no desenvolvimento de habilidades profissionais essenciais que todo o recurso disponível deve ser aplicado.

"Se você está na base da pirâmide, a minha orientação de educação financeira hoje é para que você invista em quatro competências: comunicação, vendas, rede de contatos e processo decisório", afirma.

Foram as gorjetas generosas dos clientes da pizzaria e algumas ofertas de emprego espontaneamente feitas por comerciantes do shopping em Botafogo que o fizeram perceber que a boa comunicação foi a base para o início da jornada.

Comunicar-se bem, explica, requer muita leitura para ganhar vocabulário. "Estudei muito na Biblioteca Nacional, enquanto comia pãozinho com mortadela". Foi necessário também aprender inglês, habilidade que ele conseguiu aprimorar após uma temporada estudando em Nova York bancada por três anos de economia. "Minha esposa e eu tínhamos que passar o dia com algo entre US$ 10 e US$ 15 para comer, fazer tudo."

"Se você se comunica bem, você pode vender bem. Quem vende bem ganha comissões e não fica restrito aos salários pagos no Brasil, que são muito baixos", diz, sobre o segundo passo do seu "plano de investimento".

A importância da rede de contatos Bueno aprendeu antes mesmo de virar garçom, ao receber um convite para trabalhar no shopping do cliente que comprava coxinhas que ele vendia no metrô da Uruguaiana

"Se você se comunica bem e vende bem, você também vende as suas ideias e, assim, você constrói a sua rede de contatos", diz.

"Com o meu networking eu estava dentro de um campo que me levava para outras pessoas. Eu era um garçom, mas eu era um garçom na zona sul carioca", diz. "O meu professor na faculdade, na qual fui bolsista, era meu cliente na pizzaria. Clientes de hoje eram também meus clientes na pizzaria."

Quanto ao processo de decisão, Bueno descreve como a capacidade de entender quais escolhas financeiras podem ser tomadas por pessoas com poucos recursos. "Não adianta guardar dinheiro e fazer dívida no cartão de crédito que vai te custar muito mais."

"O mercado financeiro tem uma beleza porque ele trabalha com recurso escasso, mas ele potencializa isso. Eu nunca tive o banquete, eu sempre vivi das sobras. Sou um cara criado dentro da escassez e é da escassez que eu tento tirar o máximo."

Bueno montou em 2020 um projeto em parceria com a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) para capacitar jovens do Pelourinho, em Salvador, e ajudá-los a obter as certificações da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro). Em um grupo de 90 jovens, a maioria negros, 70% foram aprovados.

Ao voltar para o Rio de Janeiro, decidiu abrir uma empresa de educação financeira, a Financier Educação, o projeto, porém, começou a funcionar apenas 15 dias antes do início da pandemia de Covid-19.

Apesar dessa dificuldade, iniciativas da empresa voltadas à diversidade a levaram a receber o selo Black Founders Fund do programa Google for Startups.

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