Rússia reforça repressão a imigrantes
Tudo começou com a detenção de um suspeito de estupro em um mercado de rua duas semanas atrás. Surgiu uma briga. Um policial saiu ferido.
Foi um episódio menor, ainda que desagradável, e poderia ter sido esquecido rapidamente se não tivesse se expandido até se transformar em uma abrangente campanha do governo - não contra o crime nos mercados de rua da cidade, mas contra os imigrantes ilegais, ainda que o suspeito não seja imigrante.
Nos dias que se seguiram ao incidente, a polícia e as autoridades de imigração realizaram buscas nos mercados de toda Moscou, em fábricas que operam clandestinamente, no sistema de metrô da cidade e nas ruas. Pela mais recente contagem, quase 1,5 mil estrangeiros foram detidos, de acordo com o Serviço Federal de Migração russo. O número incluía 586 pessoas, a maioria das quais vietnamitas, que foram detidas em barracas, em um acampamento improvisado mais apropriado a uma zona de guerra ou de desastre natural do que ao centro de uma capital.
"É absolutamente normal", disse o prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, ao jornal "Vedomosti", na semana passada, defendendo as ações do governo. "Em qualquer sociedade, em qualquer país, se uma situação de emergência surge, o governo e a sociedade começam a agir com mais aspereza".
A campanha - em geral elogiada pela mídia noticiosa e pelo público russo - expõe a complexidade e a corrupção do mercado de trabalho russo e mostra a animosidade étnica que ferve continuamente no país. E isso desperta preocupação nas embaixadas estrangeiras e provoca indignação da parte dos grupos de defesa dos direitos humanos, tanto russos quanto internacionais.
Svetlana Gannushkina, diretora do Civil Assistance, grupo que defende os direitos de refugiados, denuncia o acampamento como "um local ilegal de detenção" que recebe pessoas inocentes, e até mesmo pessoas autorizadas a viver e trabalhar em Moscou.
A embaixada vietnamita enviou diplomatas ao acampamento na sexta-feira - uma semana depois de sua criação - a fim de tentar resolver o assunto e identificar os detidos. Muitos deles não tinham passaportes em seu poder quando a polícia conduziu buscas em uma fábrica clandestina de produtos têxteis perto do local onde o acampamento foi instalado, e não falam russo muito bem.
A Human Rights Watch na sexta-feira classificou como desumanas as condições do acampamento e exigiu que as autoridades o fechem e encerrem a campanha, que segundo a organização toma pessoas por alvo com base na cor de suas peles, e não em sua nacionalidade. Entre os detidos estão cidadãos de outras antigas repúblicas soviéticas e estreitamente ligadas à Rússia, como o Uzbequistão, Quirguízia e Tajiquistão, além de Síria, Afeganistão e Egito.
"Tudo que se relaciona a essa imensa operação viola as obrigações da Rússia sob as leis internacionais", declarou Tanya Lokshina, diretora da Human Rights Watch na Rússia, em comunicado. "Detenção prolongada sem contato com advogados, seleção étnica de prisioneiros, condições desumanas - é preciso que pare já".
Há poucas indicações de que a campanha esteja por acabar. Os primeiros 31 trabalhadores vietnamitas foram deportados no final de semana. O diretor do serviço consular da embaixada vietnamita, Lee Hong Chung, declarou em resposta escrita a perguntas sobre as detenções que a embaixada estava trabalhando em estreito contato com as autoridades russas a fim de resolver o destino de outros detidos.
As buscas, que alguns críticos definiram como "zachitski", um termo para operações de limpeza étnica que se tornou corrente durante a guerra russa na Tchetchênia, continuam a cada dia, e têm o apoio da maioria dos russos, quase dois terços dos quais acreditam que os imigrantes reforçam o crime e a corrupção, de acordo com resultados de uma pesquisa recente.
Campanhas contra trabalhadores imigrantes ou migrantes acontecem de modo tão rotineiro aqui que parecem sazonais. A questão, não muito diferente do debate sobre a imigração que ocorre nos Estados Unidos ou na Europa, é ainda mais inflamada na Rússia devido ao racismo generalizado contra os muçulmanos das províncias do norte do Cáucaso, que são parte da
Rússia, e das antigas repúblicas da Ásia Central, que não são.
A detenção de um russo no Tajiquistão em 2011 resultou em uma campanha semelhante contra trabalhadores tajiques em toda a Rússia.
As buscas muitas vezes coincidem com situações na política interna russa, e as sutilezas da questão - como o fato de que o suspeito de estupro era um trabalhador do Daguestão, no sul da Rússia, que tinha autorização de trabalho em Moscou - se perdem em meio ao clamor do público.
"Eles estão basicamente explorando a xenofobia que é tão prevalecente em Moscou", disse Lokshina, da Human Rights Watch, em entrevista, culpando a campanha eleitoral em curso pelo fervor da mais recente campanha repressiva. "Creio que seja uma ação muito cínica".
Sobyanin, indicado para a prefeitura em 2010 quando o presidente selecionou líderes regionais, fez da limpeza dos desordenados mercados de rua de Moscou uma de suas metas políticas, antes de passar pelo primeiro teste eleitoral como prefeito. Nos dias posteriores ao ataque ele foi mostrado na TV em reunião com o presidente Vladimir Putin, e informou que a cidade havia fechado 30 mercados de rua nos dois últimos anos em um esforço para impor ordem ao setor de varejo.
A briga que precipitou a campanha, ele disse ao jornal "Vedomosti", "foi a última gota, e fez transbordar a taça da paciência dos serviços de segurança; eles estão começando a reagir com mais aspereza".
Putin disse que nem religião e nem raça têm relevância para a campanha, mas acrescentou que o governo precisa fazer mais para combater a ilegalidade que conduziu "a um policial ter o crânio fraturado".
Os mercados de rua, que emergiram clandestinamente quando o capitalismo começou a surgir, com o colapso da União Soviética, há muito estão associados à economia informal, controlados por quadrilhas e funcionários do governo que exploram a vulnerabilidade dos trabalhadores ilegais, retendo seus salários ou orquestrando sua prisão.
"Essas pessoas são parte do sistema ilegal de trabalho escravo que surgiu na Rússia", disse Gannushkina à imprensa na quarta-feira. "São vítimas desse sistema, as primeiras vítimas".
Ao mesmo tempo, os trabalhadores são fonte de mão de obra barata para o varejo e a construção civil, e assim parte vital da economia do país. A Human Rights Watch registrou abusos da parte de construtoras envolvidas na construção de instalações que serão usadas na Olimpíada de Inverno de Sochi, que acontece em fevereiro,
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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