Argentina ainda discute quantas foram as vítimas da última ditadura militar
Quarenta anos após o último golpe militar, a Argentina ainda diverge sobre o número de vítimas de sua ditadura (1976-83).
Líder das Avós da Praça de Maio, mãe de Laura Estela Carlotto, sequestrada e morta pela repressão, Estela de Carlotto reavivou a polêmica na última semana.
Ela rejeitou a afirmação de um aliado do presidente Mauricio Macri que desacreditou a famosa cifra de 30 mil desaparecidos na ditadura comandada pelo general Rafael Videla.
Em entrevista, Darío Lopérfido, ministro da Cultura de Buenos Aires, falava sobre a "grieta", a divisão política entre argentinos, quando colocou em suspeição o número de vítimas.
"O que [Lopérfido] disse é uma falácia. Estamos sempre recebendo informações novas sobre desaparecidos, já que os que fizeram o genocídio não nos passam dados", afirmou Carlotto à Folha.
Procurada, a assessoria de Lopérfido afirmou que ele não comentaria mais o caso.
Os dados oficiais mostram que a ditadura argentina foi mais violenta do que a brasileira.
Pedro Mera - 14.jan.2016/Xinhua | ||
Estela de Carlotto, fundadora das Avós da Praça de Maio, durante encontro no México |
Números do governo de Cristina Kirchner, de 2006, apontam 8.368 vítimas, entre desaparecidos, mortos e sequestrados (que sobreviveram).
No Brasil, a Comissão da Verdade listou 434 vítimas (apenas mortos e desaparecidos) em seu mais recente relatório, de dezembro de 2014.
A ex-deputada Graciela Fernández Meijide, autoridade no assunto, afirma que é difícil fazer essa contagem.
Em 1984, logo após o fim da repressão, ela foi convocada a elaborar a primeira lista de vítimas, que desaguou nos pioneiros processos contra militares.
A Argentina, diferentemente do Brasil, processou e puniu, com prisão perpétua, grande parte dos repressores, inclusive Videla, que morreu na cadeia em 2013.
Em 1984, Graciela havia identificado 8.961 vítimas, entre mortos, desaparecidos e sequestrados (inclusive sobreviventes), número inferior aos 30 mil mencionados pelos grupos de direitos humanos.
VÍTIMAS DA DITADURA - Confusão sobre números de vítimas leva a briga entre governo e ativistas
"Deixamos claro que os números eram provisórios e que uma revisão seria necessária", disse ela em conversa recente com a Folha.
"Neste momento, os militares ainda tinham muito poder. Os juízes, os funcionários do governo e as famílias tinham medo de se aproximar do assunto", disse.
Em 2006, o governo de Cristina se propôs a apresentar uma lista "revista e atualizada", na qual apareceram os nomes de pouco mais de 8.000 vítimas.
Então de onde veio a cifra dos 30 mil? E por que continua viva?
O jornalista Ceferino Reato, autor do livro "Viva la sangre!" (2010), que trata do tema, investigou os números e diz que existem algumas versões para a origem do número.
"Alguns dizem que foi criado por argentinos exilados na Europa, nos anos 1970. O fato é que os números oficiais não chegam nem perto desta cifra", disse ele à Folha.
Em seu levantamento, a partir dos dados oficiais de 2006, foram 6.415 os desaparecidos e 743 os mortos por execução sumária na ditadura. Ou seja, 7.158 vítimas.
Os outros, diz, foram mortos ou sequestrados antes de 1976, período em que atuavam guerrilhas armadas.
"Atualmente, o governo considera vítima, com possibilidade de cobrar indenização, pessoas ou familiares que foram perseguidas desde 1955 [quando Perón foi deposto por militares]", diz.
Ainda assim, os números estão distantes da cifra de 30 mil.
"Graciela fala que qualquer número redondo é uma ofensa às vítimas. Não são 30 mil, uma lista, são pessoas e cada uma delas tem uma história. Ela tem razão", diz Reato.
O atual secretário de Direitos Humanos, Claudio Avruj, diz trabalhar com a hipótese de haver 9.000 vítimas. Ele não tem informações de quantas famílias foram indenizadas.
Ex-montonero, Luis Labraña, 69, diz ter sido ele o autor da controversa cifra.
Em conversa com a Folha, ele disse que o número nasceu em um encontro de argentinos em Amsterdã.
"As Mães traziam uma lista com pouco mais de 3.000 nomes. Isso não comoveria os europeus, que têm na memória a morte de 6 milhões de judeus pelos nazistas. Para falar em genocídio, era preciso ter um número maior", disse.
Labraña diz que ninguém sabia ao certo qual era o número de vítimas àquela altura. "O que, sim, sabíamos era que companheiros caíam como moscas", disse.
Hoje Labraña é crítico da cifra e dos grupos de direitos humanos. "O número de 30 mil se transformou em um negócio".
Reato também critica os que ainda sustentam o número.
"Espero que o governo Macri abra a lista de vítimas e de pessoas indenizadas para esclarecer isso".
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