análise
Ameaça de Trump de rejeitar resultados ofusca seu melhor debate
Dois candidatos centrados, um mediador eficaz em cobrar e obter respostas e, como resultado, um debate com (alguma) substância política.
O último dos três embates televisionados entre Donald Trump e Hillary Clinton, na noite desta quarta (19), poderia até parecer parte de uma campanha eleitoral de muito mais alto nível do que esta de 2016, se não fosse a inédita declaração do republicano de que "decidirá na hora" se acata o resultado das urnas.
A ameaça de não reconhecer os resultados, resposta à cobrança de um compromisso com o processo feita pelo mediador Chris Wallace, indica que a tática de Trump na reta final será repetir a acusação de que o processo eleitoral nos EUA é manipulado, mesmo sem provas que a sustentem.
A menos de três semanas da votação, é uma aposta de risco, que pode ricochetear no orgulho que os americanos sentem de sua democracia.
Nas mesas-redondas televisivas após o confronto, não sobrou espaço para outra coisa. A pesquisa instantânea da CNN indicou vitória por 52% a 39% para Hillary.
E foi o melhor desempenho de Trump, que se mostrou mais contido e preocupado em amparar as acusações contra Hillary em questões concretas, e não em generalidades como "ela mente" (embora a frase não tenha faltado).
Assim, o empresário conseguiu enervar a adversária, algo que não havia ocorrido antes, e parecer mais "presidencial", como dizem os americanos —um dos seis temas escolhido por Wallace para a noite foi a capacidade de se comportar de acordo com o cargo.
A mudança, porém, foi mais na forma do que na substância.
Se Trump interrompeu Hillary menos vezes e manteve o tom mais sóbrio, não faltaram ofensas. A democrata foi chamada de "nasty", nojenta, quando falava de benefícios sociais, e as mulheres que o acusam de agredi-las sexualmente foram descritas pelo republicano como mentirosas em busca de fama.
Na sua retórica, sírios que procuram os EUA para se refugiar de cinco anos de guerra civil em seu país foram associados à facção terrorista Estado Islâmico, a mesma que os persegue, e imigrantes sem documentos foram genericamente lembrados por assassinatos e outros crimes.
Mas Hillary também se viu acuada por Trump e pelo mediador. Enrolou-se ao responder sobre as doações à fundação que mantém com o marido ex-presidente e mais uma vez teve que responder sobre os e-mails do Departamento de Estado que apagou sem autorização.
Foi descrita pelo republicano como hipócrita, por defender os direitos femininos e aceitar doações da Arábia Saudita, país que cerceia as mulheres, e patinou quando o mediador perguntou por que ela defendera fronteiras abertas para o comércio em uma palestra no banco brasileiro Itaú, em 2013, se agora fala contra tratados.
A seu favor, buscou cristalizar a imagem de polarizador do adversário, com algum sucesso.
Apesar de o debate ter ganho profundidade —mérito de Wallace, que delimitou os tópicos e foi ainda mais implacável com enrolações do que Anderson Cooper e Martha Raddatz no debate anterior—, ele não trouxe novidade. Ambos os candidatos pregaram para convertidos.
Um Trump mais centrado pode ganhar pontos com analistas, mas é improvável que essa imagem, no rastro das acusações que o derrubaram de um empate técnico para uma média de seis pontos atrás de Hillary nas pesquisas, convença a ponto de alterar significativamente a campanha.
Já a ameaça de desqualificar a votação pode causar estrago para o republicano. Trump dera uma bola fora similar na campanha ao criticar os pais de um militar americano muçulmano morto em batalha. A lição não parece ter calado.
Os americanos gostam de se ver como idôneos, a maior democracia do mundo, e por em dúvida o processo eleitoral do país é questão de orgulho nacional. Pode mexer com os brios patrióticos de muita gente que ainda está em dúvida sobre ir às urnas em 8 de novembro. É o efeito inverso ao que o candidato espera.
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