Guerra começa a ficar para trás em Gaza, mas recuperação está distante

IAN FISHER
DO "NEW YORK TIMES", EM BEIT HANOUN (FAIXA DE GAZA)

Em sua casa nova, finalmente concluída depois de passar dois anos vivendo em um trailer do outro lado da estrada de terra, Samaher al Masri, 40, mostrou um vídeo em seu celular de um garotinho em idade pré-escolar: seu filho, Majdi. Ele estava cantando: "Sou filho da Palestina, tenho um direito e uma causa / Mesmo que atirem em mim e eu morra como mártir, não esquecerei a causa."

Majdi, que tinha seis anos, sobreviveu a duas guerras em Gaza, apesar de sua casa ter sido derrubada por uma escavadora mecânica em 2014 durante os combates com Israel. Mas no dia depois de concluir o jardim de infância, no ano passado, seu bambolê ficou preso na porta metálica do trailer. A porta era pesada, e sua moldura, fraca. Ela caiu sobre o garotinho e esmagou seu crânio, matando-o.

Oito meses depois, falando na sala de sua casa, erguida no mesmo terreno da casa antiga, sua mãe disse: "Está faltando uma coisa. Você me perguntou se aqui está melhor. Sim, está melhor. Mas sinto falta de meu filho. O quarto dele estava pronto, à sua espera."

Essa é a situação em Gaza, onde aparentemente a guerra está ficando para trás e tudo está sendo reconstruído, mas por baixo da superfície a recuperação está longe de completa.

Gaza dá a impressão de estar perdida, sem saber o que vai vir a seguir. Depois de tantos anos de isolamento, seus moradores estão ainda mais distantes dos palestinos da Cisjordânia, e dúvidas crescentes obscurecem o futuro. Ninguém sabe se algum dia os palestinos dos dois lados poderão se unir e trabalhar juntos para buscar uma paz duradoura.

Foram retirados 2 milhões de toneladas de escombros, mais ou menos uma tonelada para cada habitante deste território costeiro apinhado. Dois terços das 160 mil casas danificadas foram reconstruídos, assim como metade das 11 mil casas destruídas.

As estradas estão melhores, possibilitando deslocamentos mais rápidos. As pessoas ainda se espantam com o primeiro shopping center do território, com praça de alimentação e 12 escadas rolantes, raridades na faixa de Gaza.

Mas elas não andam comprando muito. O índice de desemprego é alto, especialmente entre os muitos jovens que concluem a faculdade. Ainda há 50 mil pessoas deslocadas.

O fornecimento de eletricidade e água ainda se encontra em estado quase crítico. O Hamas, que governa a faixa de Gaza, elegeu um novo líder linha-dura. O trabalho de construção de túneis continua (e, presume-se, a fabricação e o contrabando de armas, também). Do lado israelense, a direita fala em uma nova guerra na primavera devida ao rearmamento do Hamas, expressando o desejo de infligir um golpe decisivo.

Como vem sendo o caso há uma década, a faixa de Gaza continua cercada. Israel controla rigidamente a maior parte do que entra e sai do território: alimentos, materiais de construção, pessoas. Duas crianças morreram recentemente por falta de acesso a medicamentos ou assistência médica —uma de câncer, a outra de um problema cardíaco.

Não está claro de que modo as pequenas mudanças no conflito palestino-israelense em outras áreas vão afetar a faixa de Gaza, cercada por Israel por dois lados, pelo Egito a sudoeste e pelo mar Mediterrâneo.

Com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, a direita israelense parece sentir-se empoderada. É provável que ela tente aumentar a construção de casas em assentamentos na Cisjordânia ou até mesmo aventar a possibilidade de anexação do território, apesar do chamado de Trump para que o ritmo de construção seja moderado.

A Autoridade Palestina, que conta com apoio amplo no Ocidente, parece estar se voltando ao exterior em busca de maneiras de avançar em seu futuro próximo, incluindo persuadir o mundo a reconhecer o Estado da Palestina, ameaçando com ações nas Nações Unidas e incentivando boicotes de Israel.

Os líderes do Hamas, considerado um grupo terrorista pelos Estados Unidos e muitos outros países, não se beneficiam do mesmo apoio do Ocidente.

Entrevistas com políticos e empresários, acadêmicos e cidadãos comuns apontam apenas para uma estratégia básica: procurar melhorar a vida dos moradores do território, enquanto seus líderes adiam ao máximo a próxima guerra, que consideram inevitável, e a travam, quando ela acontecer. Para os críticos do Hamas, a vida poderia ser melhor se a organização gastasse menos com preparativos para uma guerra.

Crédito: Said Khatib - 19.fev.2017/AFP Palestinos andam em rua de uma das favelas da cidade de Khan Yunis, no sul da faixa de Gaza
Palestinos andam em rua de uma das favelas da cidade de Khan Yunis, no sul da faixa de Gaza

Mahmoud Zahar, um representante sênior do Hamas, disse que, depois de anos de negociações fracassadas, assentamentos israelenses em expansão na Cisjordânia e a aparente ambivalência de Trump em relação a um Estado palestino, "temos duas opções: cooperar com a ocupação ou resistir. Não existe opção. Onde está a solução de dois Estados?"

Entrevistas deixam claro que existe uma distância crescente entre a faixa de Gaza e a Cisjordânia, e essa distância, diz Israel, é uma das razões principais de por que negociações seriam impossíveis. O Hamas venceu as eleições parlamentares palestinas em 2006 e assumiu o controle de Gaza em 2007.

"Hoje a faixa de Gaza é uma coisa e a Cisjordânia é outra", disse Ibrahim al Madhoun, colunista da organização noticiosa "Al Risala", filiada ao Hamas. "É um fato. Não há como conectar as duas realidades. Você se perderia. As coisas mudaram."

Madhoun e vários outros levantaram uma possibilidade, uma aposta com muito poucas chances de êxito, que poderia concebivelmente ser aceitável para a extrema direita de Israel: que algum dia a faixa de Gaza —com fronteiras definidas, sem ocupação israelense e sem colonos— pudesse tornar-se a base de um Estado palestino, enquanto os assentamentos israelenses continuam a consumir o território da Cisjordânia.

"Se vai haver um Estado palestino, será a faixa de Gaza", disse Mkhaimar Abusada, professor de ciência política na Universidade Al Azhar, em Gaza. "Não é justo, politicamente falando. Mas é o que vai acontecer."

Se não for assim, ele disse, "acho que não existe nenhuma estratégia maior para definir o que será a faixa de Gaza em dez ou 20 anos. Sei que o Hamas nunca vai querer abrir mão do território, enquanto puder manter o controle."

Tradução de CLARA ALLAIN

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