Discurso inflamado nas redes sociais alimenta islamofobia na China

Crédito: Gerry Shih - 17.mar.2017/Associated Press A mesquita de Nangang, em Hefei, foi ameaçada por moradores movidos por discurso islamofóbico
A mesquita de Nangang, em Hefei, foi ameaçada por moradores movidos por discurso islamofóbico

GERRY SHIH
DA ASSOCIATED PRESS, EM HEFEI (CHINA)

A enxurrada de discurso antimuçulmano irado nas redes sociais foi o primeiro sinal da forte oposição de moradores de classe média desta cidade da região central da China ao plano de construção de uma mesquita em seu bairro.

Os comentários se intensificaram rapidamente para se tornar algo mais sinistro. Pouco depois, uma cabeça de porco foi enterrada no terreno da futura mesquita de Nangang, no auge de um protesto de dezenas de moradores.

Em seguida, o imã da mesquita recebeu uma ameaça de morte por mensagem de texto: "Caso alguém de sua família morrer, já tenho um caixão pronto. Mais que um, se for preciso."

"Como foi que as coisas deterioraram a este ponto?" perguntou o imã, Tao Yingsheng, em entrevista recente. "Quem já tinha sequer ouvido falar na mesquita de Nangang até agora?"

Nas planícies secas do coração da China, a disputa da mesquita exemplifica o aumento do sentimento antimuçulmano que vem se espalhando por comunidades de todo o país, exacerbando as tensões que levaram à violência no passado.

Essas tensões viraram um dilema para o Partido Comunista, que há anos vem deixando a islamofobia correr solta na internet como parte de sua campanha para justificar a repressão na conturbada região de Xinjiang.

"Com isso se deixou o gênio escapar da garrafa", comentou James Leibold, professor da universidade La Trobe, na Austrália, que estuda o alastramento do discurso de ódio antimuçulmano na internet chinesa.

Entrevistas com moradores e um estudo das redes sociais revelam que algumas queixas on-line isoladas feitas por moradores locais evoluíram para se transformarem em uma campanha orquestrada para difundir o ódio.

Um elemento chave em tudo isso foi um proponente inesperado, influente, do discurso antimuçulmano: um funcionário da máquina de propaganda política chinesa, em Xinjiang, a 2.500 quilômetros de distância.

Seus posts incendiários em mídias sociais ajudaram a levar pessoas às ruas no dia do Ano-Novo, resultando em uma operação de repressão da polícia.

TENSÃO ÉTNICA

Uma inscrição em pedra diante do portão revela que a mesquita original de Nangang foi erguida na década de 1780 pela minoria hui, descendentes de comerciantes da Rota da Seda que se radicaram na China séculos atrás.

Em sua forma atual, a mesquita é frequentada há décadas pelos 4.500 huis da região. Sua silhueta com cúpula fica parcialmente oculta pela vegetação do campo que se estende a partir das últimas ruas pavimentadas de Hefei.

A cidade vem sendo urbanizada nos últimos dez anos; o desenvolvimento reconfigura a paisagem e a demografia. Há anos os líderes da comunidade hui fazem pressão para transferir sua mesquita para um local urbano mais conveniente.

Em novembro, finalmente, os responsáveis pelo planejamento da cidade escolheram um terreno adjacente ao conjunto de apartamentos residenciais Hangkong New City, construído recentemente, com apartamentos de dois dormitórios, estilo falso mediterrâneo e uma revendedora Volvo do outro lado da rua.

Os donos dos apartamentos no complexo são, em sua grande maioria, membros da maioria étnica chinesa han, e começaram a reclamar no Weibo, popular site chinês de microblogging.

Alguns disseram que a mesquita ocupará um espaço que teria sido reservado para um parque. Outros alegaram que a segurança na área será comprometida.

Ainda outros se posicionaram sem rodeios: um morador que identificou-se em mensagens à AP por seu sobrenome, Cheng, escreveu em abaixo-assinado em dezembro que os residentes han estão incomodados com o fato de que um centro da vida comunitária hui ficará a menos de cem metros de distância de seus prédios.

"E quanto menos for dito sobre o que acontece no Eid al-Adha, melhor", escreveu Chang, aludindo ao feriado islâmico em que animais são abatidos para um banquete. "É chocante."

A história não demorou a chamar a atenção de Cui Zijian, um funcionário do setor de propaganda política em Xinjiang que escreve em sua conta no Weibo, na qual tem quase 30 mil seguidores, sobre o perigo do extremismo religioso.

No dia 16 de dezembro, Cui sugeriu que os donos dos apartamentos pressionem as autoridades locais para barrar a construção da mesquita, sugerindo: "Se isso não funcionar, que tal uma cabeça de porco ou sangue de porco".

Algumas horas mais tarde, Cui lançou outro post repetindo várias vezes os quatro caracteres chineses que indicam sangue de porco e cabeça de porco. Ele atraiu centenas de reações.

Cui foi criticado por alguns internautas no Weibo, mas outras pessoas em número maior —entre elas pelo menos mais um funcionário governamental de propaganda política— aproveitaram seu post para criticar e vilipendiar os huis.

INTERFERÊNCIA RELIGIOSA

A disputa em torno da mesquita foi apenas a questão mais recente a inflamar o movimento antimuçulmano cada vez mais ativo nas mídias sociais da China.

Em maio, um vídeo de uma menina hui recitando versos do Alcorão em árabe provocou indignação diante da chamada infiltração terrorista em escolas, levando as autoridades a anunciar uma "proibição estrita" de manifestações religiosas.

Ativistas on-line bloquearam o esforço de um funcionário público hui de regulamentar o setor de alimentos halal, argumentando que a religião estava se infiltrando no Estado chinês, oficialmente ateu.

Os han, que compõem 95% da população, se queixam há anos do fato de que as minorias reconhecidas recebem vantagens nos vestibulares ou são isentos dos limites impostos ao tamanho das famílias. Mas as críticas abusivas online vêm tendo como alvo, cada vez mais, os muçulmanos.

A ascensão da islamofobia se dá enquanto os chineses são bombardeados com notícias sobre ataques terroristas na Europa, ao mesmo tempo em que, em seu país, a violência em Xinjiang e outras regiões é atribuída a muçulmanos.

Reagindo à insurgência sangrenta travada há anos pela minoria muçulmana uigur em Xingiang, Pequim impôs mais restrições à expressão islâmica, numa iniciativa que, avisam grupos de defesa dos direitos humanos, tem o potencial de radicalizar os muçulmanos moderados.

Essas políticas também atraíram promessas de retaliação por parte da milícia terrorista Estado Islâmico e da Al Qaeda.

Acadêmicos avisam que a hostilidade étnica só pode se aprofundar quando o governo barra a discussão da situação dos muçulmanos ou das políticas étnicas, ao mesmo tempo em que permite que o discurso de ódio e antimuçulmano seja propagado livremente.

Em 2014 o acadêmico uigur Ilham Tohti, que havia fundado um site para abrigar debates sobre as tensões étnicas em Xinjiang, foi sentenciado à prisão vitalícia, acusado de separatismo.

Os censores do governo reprimem relatos de violações cometidas contra muçulmanos, mas, segundo William Nee, pesquisador na China da Anistia Internacional, que lançou apelos pela libertação de Tohti, "não é preciso procurar muito para encontrar coisas incrivelmente islamofóbicas que parecem não sofrer censura alguma".

Segundo observadores políticos, a ascensão de uma facção do Partido Comunista que defende linha dura em questões religiosas coincidiu com a ascensão de comentaristas ligados ao governo que avisam sobre os perigos do islã.

"Grupos de interesses especiais vêm promovendo a islamofobia ativamente nas regiões do interior, visando criar um ambiente nacional que justifique a campanha antiterror travada em Xingiang", explicou Ma Haiyun, professor de história na Frostburg State University, em Maryland, especializado na população muçulmana da China. "Existe um movimento islamofóbico que visa semear o caos e até conflitos ao nível local."

Depois de ter moderado temporariamente suas declarações sobre mesquita de Nangang, em fevereiro Cui retomou suas críticas, publicando ensaio em que alegou que seu dever profissional e patriótico era resistir ao extremismo. Ele disse que sua mensagem online sobre muçulmanos faz parte desse trabalho.

"Por fazer isso, somos rotulados de difamadores de muçulmanos", escreveu Cui. "Mas são aqueles que instigam o medo do islã —ou seja, os terroristas e extremistas— que estão difamando os muçulmanos."

Contatado em maio, um funcionário do departamento de propaganda em que Cui trabalha se negou a comentar o envolvimento de seu colega na controvérsia.

Mas parece que ele agora está ainda mais bem posicionado para influir sobre o pensamento público: seu colega disse que Cui foi transferido para a administração do ciberespaço, a agência encarregada de censurar o discurso on-line.

CALMA

O imã Tao, de 50 anos, se recordou do dia em dezembro em que soube que sua mesquita de repente era tema de milhares de posts e centenas de comentários no Weibo, um serviço que ele mal utiliza. Em pouco tempo ele estava tendo que acalmar huis locais que o procuravam, assustados com o que estavam vendo on-line.

"Diziam que pessoas estavam planejando pendurar uma cabeça de porco diante de nossa mesquita. Falei: 'Nós a tiraremos de lá'. Falaram que as pessoas iam enterrar uma cabeça de porco no chão. Falei: 'Por que não a desenterramos, simplesmente?'", disse Tao.

Quando manifestantes concretizaram a ameaça na manifestação do dia de Ano Novo, a polícia deteve dois líderes do protesto durante 15 dias e convocou outros para serem interrogados, segundo moradores.

Desde então o sentimento de revolta dos hans se acalmou um pouco. "As pessoas se assustaram e silenciaram", comentou Cheng, o vendedor de chá, da etnia han.

No conjunto Hangkong New City, os moradores repetiram que o slogan do governo sobre unidade étnica é importante, mas reclamaram que as autoridades sacrificam os interesses deles para apaziguar uma minoria.

"Se 99% dos moradores de nosso conjunto são hans, não parece correto que ergam uma mesquita do nosso lado", disse uma mulher de meia idade que deu seu sobrenome como sendo Han.

Ma Jianhua, funcionário do setor de planejamento distrital de Nangang, disse à AP que a construção da mesquita vai seguir adiante depois que seu departamento der o tratamento apropriado às petições dos moradores.

A disputa em torno da mesquita deixou a comunidade hui na defensiva. Muitos se esforçam para destacar seu desejo de conviver pacificamente com seus vizinhos hans e a confiança em que o governo saberá resolver a situação.

Em uma fazenda que começa depois do campo de colza que separa o conjunto habitacional da via Huimun Lu (Estrada do Povo Hui), cheia de lixo, os trabalhadores em um dos poucos estabelecimentos comerciais de huis que não foram demolidos para dar lugar a prédios de apartamentos disse estar surpreso com a disputa em torno da mesquita, considerando a história de miscigenação étnica na região.

"Estamos presentes aqui há muito tempo", disse um trabalhador de sobrenome Tao, mas que não é parente do imã, enquanto carregava sacos de carne seca. "Cuidamos das nossas vidas e eles cuidam das deles. Não criamos problemas e eles também não criam."

Mas Tao, o imã, reconheceu que as atitudes em relação aos muçulmanos vêm endurecendo nos últimos anos.

"É possível que a situação tenha ficado mais complicada naquele lugar sobre o qual todos sabemos", ele comentou, aludindo a Xinjiang, mas sem ousar citar a região por seu nome.

Mesmo assim, ele se esforça para não ter raiva dos manifestantes hans.

"Não critico os moradores locais. Acho que eles foram influenciados", disse o imã, sentado sob fotos emolduradas que o mostram saudando vários funcionários governamentais do setor de assuntos religiosos.

"Quero que saibam que os muçulmanos somos pessoas virtuosas. Somos pacíficos. Somos razoáveis. Somos tolerantes. E somos bons chineses."

Tradução de CLARA ALLAIN

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.