Ataque na Síria acaba com reinício da relação dos EUA com a Rússia

ELI LAKE
DA "BLOOMBERG VIEW"

O reinício que o presidente Donald Trump queria dar na relação dos EUA com a Rússia enfrenta problemas sérios.

Essa é uma das mensagens de um dossiê de quatro páginas sobre o ataque com armas químicas lançado pelo governo sírio em 4 de abril, que matou até cem pessoas e deixou um número muito maior de feridos.

Redigido pelo Conselho Nacional de Segurança, o documento traz detalhes da avaliação feita pelos EUA de que o regime sírio foi responsável pela atrocidade.

Mas o texto também representa uma mudança pública da posição da administração Trump, que, como sua predecessora, esperava melhorar as relações dos EUA com a Rússia.

O dossiê traz poucas informações específicas. E faz silêncio sobre se os russos tiveram conhecimento prévio do ataque, como concluíram algumas agências de inteligência dos EUA.

Mas faz questão de refutar a desinformação russa, que lançou diversas afirmações enganosas. Estas variam desde dizer que o gás foi liberado após um ataque aéreo a um depósito de armas químicas pertencente a forças da oposição até alegar que o próprio incidente foi inteiramente forjado.

"O regime sírio e sua maior fonte de apoio, a Rússia, procuraram confundir a comunidade mundial em relação a quem foi responsável por usar armas químicas contra a população síria neste ataque e em ataques anteriores", diz o dossiê.

Outro trecho do documento diz que a resposta de Moscou ao incidente de 4 de abril "segue um padrão já conhecido de resposta russa a ações hediondas: ela divulga relatos múltiplos e conflitantes, com a finalidade de criar confusão e semear a dúvida na comunidade internacional".

O dossiê também ironizou a "sequência de alegações absurdas" vindas da Síria e seus aliados, numa alusão clara à Rússia.

O relatório refuta a alegação russa de que o ataque foi contra um depósito de armas químicas pertencente à oposição. Ele observa que imagens de vídeo feitas por satélite comercial mostram uma cratera na estrada e nenhum ataque a um depósito de armas químicas.

Observa, também, que a Rússia disse que o ataque ocorreu entre 11h30 e 12h30 do dia 4 de abril, mas que alegações sobre o ataque surgiram nas redes sociais já às 7h pelo horário local.

Quanto a comprovar a culpa do regime sírio, o documento, ao qual o "Bloomberg View" teve acesso, diz que o governo dos EUA acumulou dados interceptados de comunicações e "inteligência geoespacial", uma análise de imagens e outros dados que revelam que a ordem do ataque em Khan Shaykun partiu do ditador sírio, Bashar al-Assad.

O dossiê revela que o governo obteve provas de "amostras fisiológicas colhidas de múltiplas vítimas" do ataque com sarin. E ele observa que há um grande volume de dados de fonte aberta, variando desde depoimentos de testemunhas oculares no local até muitos vídeos postados na internet em tempo real, que contradizem o relato russo.

Mas o que mais chama a atenção é o fato de o dossiê condenar a resposta russa ao incidente. Trump vem procurando reiniciar o relacionamento dos EUA com Moscou, como o presidente Barack Obama quis fazer em 2009 e 2010.

Agora, me disse um funcionário americano, membros do governo russo, em contato com americanos, andam repetindo em conversas particulares os mesmos argumentos de propaganda política que seu governo divulga em público. "Isso gerou muita frustração nos mais altos escalões do governo", disse o funcionário.

O incidente sírio já teve consequências diplomáticas. O secretário de Estado, Rex Tillerson, não iria reunir-se com o presidente russo Vladimir Putin na visita que faria a Moscou na terça-feira. O discurso de Tillerson vem ficando mais intransigente na última semana, também no que diz respeito à Síria.

Falando com jornalistas na Itália antes de embarcar para Moscou, ele disse: "Está claro para todos nós que o reinado da família Assad está chegando ao fim".

Essa virada mais recente nas relações entre EUA e Rússia encerra uma ironia que dá margem a esperança.

No dia 30 de março o ex-funcionário do FBI Clint Watts disse ao Comitê de Inteligência do Senado que na campanha eleitoral, Trump e sua campanha às vezes repetiram notícias falsas geradas por agentes russos, como um suposto ataque terrorista à base aérea de Incirlik, na Turquia.

A avaliação feita pela comunidade de inteligência sobre a operação lançada pela Rússia para afetar a eleição de 2016 também observou que um componente dessa campanha foi a geração e distribuição de notícias falsas para prejudicar a candidata democrata, Hillary Clinton.

O próprio Trump não condenou a Rússia por esse tipo de truque sujo. Mas agora seu Conselho de Segurança Nacional vai divulgar um documento que expõe o fato de a Rússia ter divulgado notícias falsas sobre a atrocidade cometida por seu aliado.

Em vista da ambivalência do próprio Trump em relação à desinformação russa, até agora, essa notícia constitui uma notícia real, e não falsa.

ELI LAKE é colunista do "Bloomberg View". Ele foi o correspondente sênior de segurança nacional do The Daily Beast" e cobriu segurança nacional e inteligência para o "Washington Times", o "New York Sun" e a UPI.

Tradução de CLARA ALLAIN.

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