Longe do pai, Marine Le Pen tenta 'desdemonizar' a extrema direita

EMMA-KATE SYMONS
DA "FOREIGN POLICY"

O patriarca da extrema direita francesa, Jean-Marie Le Pen, e sua filha e herdeira, Marine Le Pen, parecem não estar se falando. No entanto, no início deste ano, estiveram lado a lado durante quase duas horas diante de um magistrado em uma audiência secreta de arbitragem, na qual o pai se ergueu em defesa da filha.

Estavam em questão os impostos devidos por algumas propriedades da família Le Pen, principalmente a mansão e extensas terras de Montretout, no elegante distrito de Saint-Cloud, a oeste de Paris, onde Marine cresceu e seu pai ainda mora. O fisco francês afirmou que os Le Pen declararam em milhões de euros a menos o valor da propriedade dinástica.

Se o juiz considerar que ela fez isso, Marine Le Pen não apenas seria atingida por uma vultosa conta de impostos, e mais um escândalo político inconveniente em meio às crescentes investigações de suas finanças pessoais e as de seu partido, como poderia até enfrentar uma pena de prisão.

Ela de vez em quando, e com muita fanfarra, demite candidatos do partido, autoridades eleitas e "apparatchiks" que são apanhados disseminando o ódio antissemita —o chefe do partido em Nice, Benoît Loeuillet, foi rapidamente suspenso por Le Pen no mês passado, por exemplo, depois de ser filmado secretamente afirmando que não houve "tantas mortes" no Holocausto.

Em 2015, ela expulsou dramaticamente seu pai do partido que ele fundou por causa da última de suas arengas periódicas. Ela retirou o nome da família, juntamente com a marca Frente Nacional, de sua atual campanha eleitoral, preferindo adotar o slogan "Marine presidente".

E na última década Le Pen supervisionou uma mudança das ideias econômicas relativamente liberais de seu pai e da ênfase em um governo enxuto, em direção a um programa fortemente protecionista e populista que ela chama de "patriotismo econômico".

Sua retórica é linha-dura no que se refere aos muçulmanos —ela os descreveu em 2010 como uma "ocupação" semelhante aos nazistas por rezarem nas ruas da França— e imigrantes em geral, mas nunca adotou o discurso de ódio antissemita de seu pai e evita com afinco sua homofobia. Ainda no mês passado Marine insistiu que "não tem relacionamento" com Jean-Marie.

Os esforços parecem ter recompensado. Hoje, Le Pen, 48, está lado a lado nas pesquisas com o candidato independente de centro Emmanuel Macron pelo primeiro lugar no primeiro turno da eleição presidencial francesa, graças em parte à "dédiabolisation".

E a estratégia conquistou para Le Pen fãs improváveis: antigos esquerdistas, jovens desiludidos e alguns astros do cinema francês, como Alain Delon e Brigitte Bardot. O colunista do "New York Times" Ross Douthat escreveu no mês passado favoravelmente sobre Le Pen, afirmando que ela "tentou ativamente afastar seu movimento do tipo de preconceito tóxico com que a campanha de Trump achou vantajoso flertar" e que ela "talvez realmente mereça vencer".

HOLOCAUSTO

Mas essa análise pode ser generosa demais. Uma onda pré-eleitoral de jornalismo investigativo e pesquisa pintou uma imagem de uma organização que, em seu nível mais alto, está cheia de admiradores de Hitler e nacionalistas de extrema direita que negam o Holocausto, inclusive no círculo íntimo de Marine, que poderão trabalhar no Palácio do Eliseu se ela vencer em 7 de maio.

"Os franceses devem saber", disse uma antiga figura de proa da Frente Nacional, Aymeric Chauprade —que falou aos jornalistas Marine Turchi e Mathias Destal para seu livro "Marine sabe de tudo", publicado no mês passado—, "se votarem em Marine Le Pen, que ela não é livre" e que seus assessores mais próximos adotam um "antissemitismo visceral".

Esse livro, reportagens recentes na TV e no rádio e um artigo no jornal "Le Canard Enchainé" se concentraram no veterano assessor de Le Pen Frédéric Chatillon. Como relatou o "Canard", e é salientado no livro de Turchi e Destal, o sigiloso ex-colega de Marine na faculdade de direito da Sorbonne é um entusiasta de Hitler que já foi citado pela inteligência francesa por fazer a saudação nazista em uma comemoração da guerra da Argélia.

Ele também celebrou o aniversário de Hitler e organiza festas à fantasia a que os convidados vão vestidos como judeus detidos nos campos da morte na Segunda Guerra Mundial. Um admirador de ditadores de Moscou a Damasco, ele fez negócios com o regime do ditador sírio, Bashar al-Assad.

Quando surgiram os Panama Papers em 2016, Chatillon foi citado em relação a uma operação de lavagem de dinheiro envolvendo mais de US$ 318 mil. Ele foi acusado de dirigir um complexo sistema de fraudes nas finanças de campanha da Frente Nacional nas eleições de 2012, e desde então foi legalmente proibido de trabalhar para o partido.

Mas um artigo intitulado "O pequeno nazista na porta de Marine Le Pen", no "Canard Enchainé" do mês passado, relatou que Chatillon ainda é um membro remunerado da equipe de campanha de Marine.

Uma série de reportagens na mídia sugere que o suposto pária permaneceu próximo de Le Pen e foi apelidado de "o onipresente Chatillon", porque está quase sempre no quartel-general da campanha e faz aparições regulares em importantes eventos internos da Frente Nacional.

Não somente isso. Chatillon oferece conselhos estratégicos a Le Pen sobre finanças, comunicação política e política externa, segundo ex-autoridades contrariadas da Frente Nacional.

Quando Le Pen cumprimentou a Rússia e a China por se oporem à intervenção contra Assad na Síria, ela supostamente estava papagueando temas de discurso de Chatillon, que entrou para um grupo de figuras políticas da direita dura francesa que visitaram o ditador em Damasco em março de 2016.

Chatillon também foi vital para agitar um financiamento muito necessário para o partido, embora de maneiras que frequentemente voltaram a assombrá-lo. Hoje ele está ligado a diversas investigações de suposta fraude financeira por parte da Frente Nacional. Em 2012, ele chefiou um plano para tomar emprestados mais de US$ 10 milhões de um banco italiano, que mais tarde fracassou.

Os jornalistas também se concentraram em Axel Loustau, o tesoureiro da FN, que serve como advogado na Grande Paris e foi encarregado da fraude do financiamento de campanha, e o principal assessor de Le Pen, Philippe Peninque.

Loustau e Peninque, juntamente com Chatillon, são ex-membros do Grupo União Defesa, formado por jovens ultranacionalistas de direita, que foi virulentamente anti-Israel e acabou debandado à força.

Juntos, Loustau e Chatillon visitaram o finado político belga e colaborador das Waffen-SS nazistas Léon Degrelle para prestar seus respeitos. Em 1992, Chatillon visitou Degrelle na Espanha duas vezes, segundo um relatório da inteligência obtido pelos autores de "Marine Le Pen sabe de tudo".

Os homens frequentaram noitadas de extrema direita em que um ex-membro da Frente Nacional entrevistado pelo programa de TV "Envoyé Spéciale" disse que "eles riam sobre Auschwitz, disseram que havia um campo de futebol e uma piscina para os judeus e que os deportados não foram mortos em câmaras de gás. Simplesmente morreram de doença e exaustão".

FACÇÕES

Essas figuras extremistas disputam o poder entre várias facções internas da Frente Nacional, que incluem um grupo rival liderado pelo assessor de Le Pen mais moderado, abertamente gay, mas ferozmente anti-imigrantes, Florian Philippot, e outro de sua sobrinha católica e socialmente conservadora Marion Maréchal-Le Pen.

Mas, na opinião de Chauprade, Chatillon e outros como ele têm influência porque "têm poder sobre as finanças da FN". A própria Le Pen os protege e se recusa a cortá-los, disse ele, mesmo que deixem o partido aberto a uma nova demonização, com seu pendor para piadas sobre o Holocausto e a admiração pelo nacional-socialismo.

Antigos laços com amigos e parentes contam muito para Le Pen. O comparecimento com seu pai na audiência sobre impostos ocorreu menos de um mês depois que a Frente Nacional confirmou que Jean-Marie Le Pen havia concordado em ajudar a financiar a campanha presidencial de sua filha com um empréstimo de mais de US$ 6 milhões, por intermédio de seu próprio veículo de financiamento de campanhas —o pai também contribuiu com uma das 500 assinaturas de que a filha precisava para se qualificar oficialmente para a disputa pelo cargo máximo da França.

Como disse um membro da FN frustrado com a influência de Chatillon, "nós expulsamos o diabo Le Pen pela porta, mas os demônios de Marine voltaram pelas janelas".

Le Pen pode ter tido êxito em remodelar a imagem da Frente Nacional fora da França. Nos EUA, ela é festejada por republicanos como Steve King. Na Holanda, formou uma aliança europeia com o político anti-islâmico e anti-imigração Geert Wilders, que antes fazia questão de manter distância da Frente Nacional.

Mas a maioria dos eleitores franceses continua cética sobre a "dédiabolisation" da FN, segundo a historiadora Valérie Igounet, que lançou dois livros neste ano, "Ilusão nacional" e "A França primeiro".

Os livros se baseiam em anos de pesquisa e entrevistas com apoiadores da FN, mostrando que "embora os slogans possam ter mudado, Marine Le Pen ainda canta a mesma canção" de nacionalismo, xenofobia e lei e ordem que seu pai.

A cobertura na mídia estrangeira se concentrou nos novos convertidos à FN: ex-esquerdistas irritados por terem perdido com a globalização e furiosos com os partidos da corrente dominante, ou jovens desempregados. Mas uma ampla área do partido continua fiel aos valores da Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen.

Igounet prevê que Marine perderá nesta primavera porque a FN ainda é considerada extremista pela maioria dos franceses. "O partido não está pronto, e a maioria dos eleitores ainda a teme", disse ela. "Os cidadãos franceses não são idiotas." De fato, as pesquisas ainda mostram que Le Pen perde para seu provável adversário, Emmanuel Macron, por uma grande margem no segundo turno.

Mas a margem não deverá ser tão ampla quanto na derrota de seu pai para Chirac há mais de dez anos. Muitos no eleitorado continuam mais decididos a votar na candidata da Frente Nacional do que em Macron —um sinal de que, embora os cidadãos franceses possam não ser idiotas, a "dédiabolisation" ainda parece convencer alguns deles.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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