Apesar de Trump, milhões esperam ganhar na loteria do 'green card'

MICHAEL E. MILLER
THE WASHINGTON POST

Nesta terça-feira (2), mais de 14 milhões de pessoas ansiosas em todo o mundo estarão checando seus computadores e smartphones em um dos mais estranhos rituais do sistema de imigração dos EUA.

Quando o relógio marcar 12h em Washington, elas poderão entrar em um site do Departamento de Estado, digitar seu nome, ano de nascimento e número de identificação de 16 algarismos. Então clicar em "Submit" [Enviar] para saber se ganharam um dos prêmios mais cobiçados do mundo: o "green card" dos EUA, visto que dá direito a viver no país.

A cada ano, a Loteria de Vistos da Diversidade, como é chamada oficialmente, dá a 55 mil estrangeiros escolhidos ao acaso –menos de 1% dos que entram no concurso– a residência permanente nos EUA.

A loteria atual coincide com um intenso debate sobre a imigração e ocorre entre mudanças de políticas que tornaram o país menos receptivo aos estrangeiros. O presidente Donald Trump reprimiu a imigração ilegal e avançou em seus planos de construir um muro na fronteira com o México. Ele emitiu decretos que visam os trabalhadores estrangeiros, refugiados e viajantes de alguns países de maioria muçulmana.

Trump não disse nada sobre o sorteio do green card, mas seus dias podem estar contados. Ele parece entrar em conflito com o sistema de imigração "baseado em méritos" pedido pelo presidente. E pelo menos dois projetos de lei que estão no Congresso –controlado pelos republicanos– tentam eliminar o programa.

"A Loteria da Diversidade é cheia de fraudes, não promove interesses econômicos ou humanitários e nem sequer oferece a diversidade de seu nome", declara um comunicado de imprensa do senador republicano Tom Cotton, do Arkansas, um dos patrocinadores dos projetos.

Aos olhos de seus defensores, o sorteio dá aos EUA uma publicidade positiva, contrariando a ideia de que o país não vive mais de acordo com os ideais representados pela Estátua da Liberdade.
Para os antigos vencedores e os atuais concorrentes, a loteria é algo mais simples: um bilhete dourado que nem mesmo o atual turbilhão político americano pode manchar.

"Ela mudou minha vida", disse Victor Otero, 43, um contador da Venezuela que ganhou em 2009 e mudou-se para Maryland um ano depois. "Veja o que aconteceu [com a Venezuela] desde que estou aqui. Sinto-me privilegiado."

A ideia básica do concurso é simples. Ele não está ligado a ter emprego ou parentes nos EUA. A única exigência é que os candidatos sejam adultos com diploma de segundo grau ou dois anos de experiência de trabalho. Os vencedores podem levar seus cônjuges e filhos. Cidadãos de países que enviaram 50 mil pessoas aos EUA nos últimos cinco anos –como Canadá, China, Índia, Nigéria e México– não podem participar.

A loteria, que foi lançada em sua forma atual em 1995, é especialmente apreciada no Leste Europeu e na África. Nos últimos anos, as duas regiões tiveram mais de dois terços dos ganhadores do prêmio. Na Libéria e em outros países da África ocidental, quase 10% da população se inscrevem a cada ano.

Em todo o mundo, as empresas ligadas à loteria –internet-cafés, agências de viagens, estúdios de fotos para passaporte– cresceram bastante. Assim como os golpes, em que as pessoas são levadas a pagar para entrar no concurso, que é gratuito. Sites fraudulentos de aspecto oficial são comuns. Às vezes, as empresas inscrevem pessoas sem seu conhecimento, depois escondem sua informação de acesso e pedem resgate, disseram autoridades do Departamento de Estado.

Otero pagou a uma companhia US$ 150 para entrar. Quando ele ganhou, a empresa pediu mais US$ 3 mil, antes que um amigo americano lhe contasse que não tinha que pagar.

As inscrições caíram quando a loteria entrou online em 2003, mas desde então se recuperaram. Um software de reconhecimento facial hoje permite que o Departamento de Estado detecte inscrições repetidas, que não são permitidas. A cada ano, aproximadamente um quarto das inscrições são eliminadas.

O programa –que é operado de um centro consular em Williamsburg, no Kentucky– já esteve perto de ser cancelado. Ele foi criticado em 2002, quando se soube que um terrorista egípcio que matou duas pessoas em Los Angeles estava nos EUA por meio do visto da diversidade de sua mulher. Mohamed Atta, também egípcio e um dos pilotos suicidas do 11 de Setembro, entrou no concurso duas vezes antes de ingressar no país com um visto para estudar –aviação.

"Se você é uma organização terrorista e consegue que algumas centenas de pessoas se inscrevam em vários países, a probabilidade é que uma ou duas delas sejam sorteadas", disse ao "The Washington Post" em 2011 o deputado republicano da Virgínia Bob Goodlatte, depois de apresentar um projeto malfadado para encerrar o programa.

Autoridades do Departamento de Estado insistem que os vencedores da loteria são sabatinados minuciosamente, assim como outros potenciais imigrantes aos EUA.

Em 2013, na última vez que o Congresso tentou a reforma bipartidária da imigração, uma lei apresentada pelo senador democrata Charles Schumer, de Nova York, teria abolido o programa. Quando a reforma da imigração morreu, a loteria teve mais uma chance de vida.

Desde sua criação, o concurso levou mais de um milhão de pessoas para os EUA. Mas nem todos os vencedores acabam ganhando o green card. Alguns não apareceram, outros não conseguiram apresentar os documentos necessários, falharam nas entrevistas pessoais nas embaixadas ou consulados locais, ou ficaram com medo.

Ganhar é muitas vezes uma felicidade mista. Quando recebem o visto, os vencedores têm apenas seis meses para se mudar para os EUA. Eles devem resolver seus negócios rapidamente, deixar para trás profissão e parentes e escolher um novo lugar para viver.

Tarig Elhakim estava na faculdade de medicina no Sudão quando seu pai o convenceu a se inscrever, no outono de 2014. Ele ficou surpreso quando ganhou. Começou a estudar história e geografia dos EUA, preparando-se para a mudança. E passou meses lutando com a burocracia sudanesa para conseguir os documentos, que tiveram de ser traduzidos para o inglês.

Sua entrevista só ocorreu em agosto do ano passado. Na embaixada americana, ele viu vários candidatos saírem reprovados da sala de entrevistas. Mas na sua vez o oficial carimbou os papéis e disse: "Bem-vindo aos EUA".

"Fiquei com o corpo inteiro arrepiado", disse Elhakim, 22. "Foi um dos momentos mais felizes da minha vida."

Mas os EUA estavam mudando. Em 2015, o candidato presidencial republicano Donald Trump pediu a proibição da entrada no país de muçulmanos como Elhakim. Depois Trump foi eleito presidente, em novembro.

Elhakim decidiu que era melhor mudar-se para os EUA antes que Trump assumisse o cargo. Ele voou para Washington em 28 de dezembro, menos de um mês antes da posse. Hoje vive em Arlington, na Virgínia, e estuda para tirar a licença médica e poder trabalhar como médico.

Mesmo que a loteria do green card sobreviva a mais uma temporada legislativa, as proibições de Trump barradas pelos tribunais já semearam confusão sobre o programa. Dos seis países de maioria muçulmana incluídos na proibição mais recente, cidadãos de dois deles –Irã e Sudão– estavam entre os maiores vencedores de vistos da diversidade em 2016.

"Se a suspensão da proibição de viagens for levantada, ela se aplicaria a esse programa, e ninguém dos países banidos poderia entrar", disse Ben Johnson, diretor-executivo da Associação Americana de Advogados de Imigração. Mesmo que a proibição não entre em vigor, as ameaças do governo de "verificação radical" poderão tornar o processo tão lento que os vencedores não consigam ir para os EUA, acrescentou Johnson.

Entre os que aguardam ansiosamente os resultados deste ano está o colega de quarto de Elhakim, Abdelsalam Khalafalla, 24. Nascido na Arábia Saudita de pais sudaneses, ele cresceu lá, mas não tem a cidadania saudita e está nos EUA com um visto de estudante que irá expirar um dia.

"Voltar ao Sudão ou à Arábia Saudita não é uma opção para mim", disse ele.

Assim, nesta terça-feira, como milhões de outras pessoas, Khalafalla acessará o site do Departamento de Estado, clicará em "Submit" e saberá se a sorte sorriu para ele.

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