Síria-americana cria escola modelo em área controlada por braço da Al Qaeda

DA ASSOCIATED PRESS

Dirigindo uma escola em um enclave controlado pela organização filiada à rede terrorista Al Qaeda na Síria, a americana de origem síria Rania Kisar virou hábil em conseguir o que quer. Ou ela negocia com os extremistas ou faz resistência contra eles.

Quando ela estava preparando a formatura de seus alunos, o grupo radical enviou um inspetor que lhe disse para não tocar música na cerimônia. Kisar discutiu com ele. No dia da formatura, ela convidou o grupo a assistir ao evento.

A cerimônia começou com um gesto em direção à tradição, com uma leitura do Alcorão, conforme o que o inspetor havia pedido.

Mas, quando os estudantes subiram ao palco diante de uma plateia composta por seus familiares e autoridades locais, além de representantes do grupo militante, Kisar tocou "Pomp and Circumstance", o hino habitualmente tocado em cerimônias de formatura nos Estados Unidos.

Foi uma aposta calculada: ela apostou que os militantes não criariam confusão.

"Foi pragmático. Eles não fizeram nada", disse Kisar. Mas ela sabia por que a intervenção dos militantes acontecera, em primeiro lugar. "Se eles não interferirem, não serão vistos como poderosos", ela explicou.

A província de Idlib, no noroeste da Síria, é o último reduto importante da rebelião contra o ditador Bashar al-Assad que eclodiu em 2011.

O braço da Al Qaeda na região é a força mais poderosa nesse território: ela lidera uma aliança de facções conhecida como Hayat Fatah al-Sham (HFS) e domina a administração criada pela oposição para governar a província.

Mas o grupo é obrigado a pisar com cuidado, procurando um ponto de equilíbrio entre sua meta de controlar a região e o receio de provocar uma reação contrária da população e de outras facções.

Por enquanto, pelo menos, o grupo vem agindo com relativo pragmatismo: ele aproveita todas as oportunidades que aparecem para mostrar que é ele quem manda, mas não vem mostrando interesse em impor uma visão extremista da lei islâmica.

O grupo suspendeu os assassinatos públicos de criminosos. Não há polícia religiosa patrulhando as ruas, prendendo ou espancando pessoas, e as mulheres não foram forçadas a usar o niqab, o véu que cobre o rosto.

Tudo isso forma um contraste marcante com a milícia terrorista Estado Islâmico (EI), nas partes da Síria e do Iraque controladas pelo grupo militante rival nos últimos três anos.

Em vez disso, os administradores e combatentes da Al Qaeda procuram implementar algumas regras em pequena escala, evitando confrontos violentos e apresentando-se como defensores da "revolução" da Síria contra Assad.

Idlib hoje ocupa uma posição tênue no meio das potências internacionais e regionais que, na prática, estão dividindo a Síria entre elas.

As Forças Armadas de Assad haviam ameaçado lançar uma ofensiva contra Idlib, mas agora estão voltando sua atenção, em vez disso, contra os militantes do EI no leste do país.

Tropas turcas e suas aliadas sírias que controlam partes da província vizinha de Aleppo estariam se mobilizando para invadir Idlib, levando a HFS a repudiar qualquer tentativa nesse sentido.

Os Estados Unidos também têm sua própria campanha contra o EI, com a ofensiva contra Raqqa, e não está claro como os EUA e a Rússia, aliada de Assad, vão querer lidar com Idlib no futuro.

Enquanto isso, inchada depois de receber mais de 900 mil sírios deslocados de outras partes do país, Idlib virou o refúgio de um movimento oposicionista que esperava criar uma nova Síria e que apenas alguns anos antes parecia estar liderando o conflito.

Hoje Rania Kisar e outros como ela se esforçam para manter a influência da Al Qaeda à distância.

"Todo o mundo nos traiu", ela comentou recentemente em seu escritório em Istambul, para onde viaja regularmente.

Kisar disse que o medo que a comunidade internacional sente da possibilidade de islâmicos radicais tomarem conta da Síria é exagerado e reflete uma falta de entendimento da oposição síria.

Ela e outros argumentam que os militantes são necessários, que além de combatentes treinados eles estão fornecendo serviços e infraestrutura, mas que não terão apoio no futuro.

Kisar acreditou no levante desde o início. Depois que a revolta começou, em 2011, ela deixou seu emprego administrativo em uma universidade de Dallas e se mudou para a Síria para unir-se à oposição.

Ela viajou às linhas de frente com combatentes, dando assistência a civis deslocados. Organizou serviços em territórios controlados pela oposição. No meio disso tudo ela sobreviveu a um ataque aéreo e perdeu um colega que foi sequestrado por militantes do EI e que mais tarde teria sido morto.

Ela acabou se radicando em Maaret al-Numan, a segunda maior cidade da província de Idlib. Era um dos poucos redutos do moderado Exército Livre da Síria (ELS), grupo que engloba várias facções oposicionistas que recebem apoio internacional.

Nos últimos anos, facções radicais como a Al Qaeda viram sua influência crescer e marcaram presença na região. Mas a população de Maaret continuou, em sua maioria, a apoiar o ELS. Os moradores promoveram protestos repetidos sempre que os combatentes da Al Qaeda se excediam, prendendo jornalistas ou reprimindo opositores.

Em 2015 Kisar criou sua própria fundação: o Instituto Humanitário Sírio de Empoderamento Nacional, ou Shine (a sigla em inglês).

A entidade oferece cursos de computação, programação e web design para adultos. Registrada em Dallas e financiada com doações da Turquia e de pessoas físicas nos EUA e outros países, a fundação já formou 237 estudantes até agora.

Kisar se orgulha profundamente do resultado: um "pelotão geek" de homens e mulheres que entendem de tecnologia e sabem consertar smartphones e computadores.

É um conhecimento de grande importância em áreas sob controle da oposição, onde não há linhas telefônicas fixas e a população depende da internet via satélite para se comunicar.

"Não há institutos privados, não há universidades, não há hospitais", disse Kisar. "Somos apenas nós, um bando de moradores locais, de voluntários que nos oferecemos, dizendo, ok, vou fazer a limpeza da rua, vou ser voluntário em um hospital, vou construir uma escola. Esse é o meu papel a cumprir. É minha honra cumpri-lo."

Kisar teve sua primeira desavença com os militantes quando precisou explicar o trabalho que faz para conseguir credenciamento da burocracia que eles controlam.

Ela discutiu com um funcionário, argumentando que os assuntos da população civil não deveriam ser controlados por grupos armados. O funcionário não a olhou nos olhos, já que ela é mulher.

Mas, contou Kisar, "quando ouviu que eu vim da América, disse: 'É uma honra para nós que uma muçulmana americana esteja aqui e queira estar aqui'".

Mesmo quando discute acaloradamente com os militantes, Kisar sempre conserva o tom respeitoso, e isso ajuda para que sua escola continue a funcionar.

Outra coisa que ajuda é o fato de ela ser mulher. "Acabo conseguindo várias coisas por conta disso", ela contou, dando uma risadinha. "Sou tratada com muito mais leniência pelo fato de ser mulher."

Os militantes ultraconservadores acharam preocupante que o Shine dá aulas para homens e mulheres.

Para a escola poder continuar funcionando, Kisar segregou o espaço –os homens no piso de baixo, as mulheres no andar superior. Quando o andar de cima foi atingido em ataques aéreos, Kisar criou uma área separada para as mulheres no térreo.

Os militantes enviam inspetores para garantir que sua interpretação das leis islâmicas seja respeitada nas aulas. Kisar disse que o programa de sua escola, focado estritamente sobre computação, não contém nada que possa ofender os militantes. "Eles querem interferir em tudo", ela observou.

A Hayat Fatah al-Sham vem intervindo cada vez mais nos assuntos diários de Idlib e de grupos da sociedade civil, confiscando mercadorias e assumindo o controle das casas de câmbio, disse Sam Heller, especialista na Síria junto à Fundação Century.

Ele disse que os esforços da HFS para exercer um papel na oferta de ajuda emergencial alarmaram a comunidade humanitária.

Ao mesmo tempo, a entidade está dividida em relação à sua identidade de movimento islamita de linha dura e sua ambição de liderar a rebelião com as diversas facções que a compõem, escreveu outra observadora da Síria, Mona Alalami, em artigo recente do think tank Atlantic Council.

Crédito: CONFLITO NA SÍRIAControle territorial do país está fragmentado após seis anos de guerra

Quando esse equilíbrio não é conservado, o resultado pode ser uma explosão de violência.

A cidade de Maaret al-Numan foi abalada em junho quando eclodiram batalhas campais entre militantes da Al Qaeda e o ELS, provocando assassinatos retaliatórios brutais e deixando pelo menos seis civis mortos. Combatentes da HFS abriram fogo sobre moradores que protestaram contra a presença deles nas ruas.

O caos parece ter abalado Kisar momentaneamente. "Vai tudo explodir", ela disse ao telefone na época. "Todo o mundo está lutando contra todo o mundo."

Ela deixou a cidade por vários dias, "para respirar".

A calma acabou voltando graças a uma reconciliação tênue, mas que fez a influência dos militantes crescer: a facção da FSA que administrava a cidade teve que deixar sua sede, dando lugar a uma agência vinculada à Al Qaeda.

Rania Kisar retomou seu trabalho –e seu próprio esforço para encontrar um ponto de equilíbrio. Desta vez ela estava preparando as festividades com que as crianças locais iam comemorar um importante feriado muçulmano.

"Você precisar ver os vídeos", ela comentou, rindo. "É como uma Disneylândia. É uma Shinelândia. É majestoso".

Tradução de CLARA ALLAIN

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