Irã ganha terreno no Afeganistão com redução da presença dos EUA

CARLOTTA GALL
DO "NEW YORK TIMES", EM FARAH (AFEGANISTÃO)

Um policial que estava de guarda no subúrbio da cidade de Farah se lembra de um telefonema de seu comandante, para alertá-lo de que centenas de combatentes do Taleban estavam a caminho.

"Meia hora depois, começou o ataque", relembra o policial, Najibullah Amiri, 35. O Taleban se espalhou pelas plantações em torno de seu posto de patrulha e tomou o controle da margem oeste do rio, em Farah, capital da província afegã homônima.

Foi o começo de um cerco de três semanas de duração, em outubro, e só depois que apoio aéreo americano foi convocado e a fumaça dos bombardeios se dispersou as autoridades de segurança perceberam quem estava por trás do ataque-relâmpago: o Irã.

Quatro militares de uma unidade de operações especiais iranianas estavam entre os mortos, informaram agentes dos serviços de inteligência afegãos, apontando para informações sobre os funerais deles no Irã.

Muitos dos combatentes mortos e feridos do Taleban também foram carregados para o lado oposto da fronteira com o Irã, onde os insurgentes haviam sido recrutados e treinados, de acordo com informações prestadas por líderes de aldeias locais a membros do governo provincial afegão.

O ataque a Farah, coordenado com operações contra diversas outras cidades, era parte da mais ambiciosa tentativa do Taleban para retomar o poder, desde 2001. Mas também é um componente de uma campanha iraniana que está em aceleração, para aproveitar o vácuo deixado pela partida das forças norte-americanas, e representa a maior incursão iraniana ao Afeganistão em décadas.

O presidente Donald Trump recentemente lamentou que os Estados Unidos estejam perdendo sua guerra no Afeganistão, iniciada 16 anos atrás, e ameaçou demitir os generais norte-americanos que estão no comando por lá.

Não existe dúvida de que, agora que os Estados Unidos estão encerrando sua guerra no Afeganistão –a mais longa da história do país, com custo de US$ 500 bilhões e mais de 150 mil vidas perdidas, de todos os lados-, os adversários do país na região estão ganhando terreno.

Arábia Saudita e Paquistão continuam a ser os participantes mais importantes. Mas o Irã também está envolvido em uma jogada audaciosa para criar uma situação favorável ao país no Afeganistão.

Ao longo dos anos, os Estados Unidos eliminaram os principais inimigos do Irã em duas das fronteiras do país - o governo do Taleban, no Afeganistão, e Saddam Hussein, no Iraque. O Irã usou essa situação em seu favor, trabalhando discreta e incansavelmente para expandir sua influência.

No Afeganistão, o Irã tem por objetivo garantir que as forças estrangeiras saiam do país, e que o governo que vier a prevalecer no mínimo não represente ameaça aos seus interesses, ou, na melhor das hipóteses, que seja amigo ou se alinhe aos iranianos. Uma maneira de fazê-lo, dizem afegãos, é que o Irã ajude seus antigos inimigos, o Taleban, para garantir que tenha prepostos locais e para manter o Afeganistão desestabilizado mas sem revolucionar a ordem vigente. Isso é especialmente verdade ao longo da fronteira comum de 800 quilômetros entre os dois países.

O Irã vem conduzindo uma intervenção clandestina cada vez mais intensa, e boa parte de suas operações só está sendo revelada agora. Os iranianos fornecem armas, dinheiro e treinamento a insurgentes locais afegãos. Oferecem santuário aos comandantes do Taleban, e combustível para os caminhões da facção. As fileiras de combatentes da facção foram engrossadas pelo recrutamento de refugiados sunitas afegãos no território do Irã, de acordo com autoridades afegãs e ocidentais.

"A política regional mudou", disse Mohammed Arif Shah Jehan, um dirigente sênior dos serviços de inteligência afegãos que recentemente assumiu o governo da província de Farah. "O Taleban mais forte por aqui é o Taleban iraniano".

O Irã e o Taleban - duradouros rivais, um xiita e o outro sunita - não parecem ser companheiros de luta convincentes. Mas à medida que a missão da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão se expandia, os iranianos começaram a apoiar discretamente o Taleban de forma a sangrar os norte-americanos e seus aliados, aumentando o custo da intervenção ao ponto de convencê-los a deixar o país.

O Irã veio a encarar o Taleban não só como o menor de seus inimigos mas como um preposto forte. A chegada recente do Estado Islâmico -, que executou um ataque à sede do Legislativo iraniano este ano - ao Afeganistão só tornou mais atraente a aliança com o Taleban.

Nos salões de mármore vazios da embaixada iraniana em Cabul, o embaixador Mohammad Reza Bahrami negou que o Irã estivesse apoiando o Taleban, e enfatizou os mais de US$ 400 milhões investidos por seu país para ajudar o Afeganistão no acesso a portos do Golfo Pérsico.

"Somos responsáveis", ele disse, em entrevista no ano passado. "Um governo forte e bem estabelecido no Afeganistão é mais vantajoso do que qualquer outra coisa, para o fortalecimento de nossas relações".

Mas o Ministério do Exterior e o Corpo da Guarda Revolucionária iranianos agem como braços complementares da política do país –o primeiro semeando influência cultural e econômica abertamente, e o segundo agindo agressivamente de forma a exercer força subversiva nos bastidores.

O Irã enviou grupos de assassinos, treinou espiões sigilosamente e infiltrou as fileiras da polícia e do governo afegão, especialmente nas províncias do oeste do país, dizem autoridades afegãs.

Mais recentemente, os iranianos estão agindo com tanta agressividade para reforçar a insurgência do Taleban que forças norte-americanas tiveram de ser levadas às pressas para a província de Farah em janeiro, a segunda intervenção desse tipo, a fim de debelar um ataque do Taleban.

"O jogo iraniano é muito complicado", disse Javed Kohistani, um analista militar em Cabul.

Que as forças armadas norte-americanas tenham combatido guerras longas e dispendiosas cujo resultado foi derrubar os principais inimigos de Teerã serviu muito bem aos interesses iranianos. Mas agora, a utilidade dos norte-americanos e de seus aliados para o Irã desapareceu, e os iranianos adotaram uma estratégia de sangrar o adversário por meio de numerosas ações de pequeno porte, "que drenam suas forças e têm custo pesado".

EXPANSÃO AMBICIOSA

A força dos elos entre o Irã e o Taleban foi exposta inesperadamente no ano passado. Uma aeronave de pilotagem remota (drone) norte-americana atacou um táxi em uma estrada deserta no sudoeste do Paquistão, matando o motorista e o único passageiro do veículo.

O passageiro era ninguém menos que o líder do Taleban, o mulá Akhtar Muhammad Mansour. Terrorista procurado por cuja captura os Estados Unidos ofereciam recompensa, e parte da lista de sanções das Nações Unidas desde 2001, Mansour estava viajando sem seguranças ou armas, confiante e se sentindo bem em casa no Paquistão.

O ataque expôs pela segunda vez, desde a descoberta do esconderijo de Osama bin Laden na cidade paquistanesa de Abbottabad, o nível de cumplicidade do Paquistão para com terroristas procurados. Foi a primeira vez que os Estados Unidos conduziram um ataque na província paquistanesa do Baluchistão, santuário permanente do Taleban mas até então proibida para ações de drones norte-americanos por conta de protestos paquistaneses.

Ainda mais momentoso era o fato de que Mansour estivesse de retorno de uma viagem ao Irã, onde se reuniu com representantes funcionários do governo russo.

Tanto a Rússia quanto o Irã admitiram ter participado de reuniões com o Taleban, mas sustentam que o único propósito desses encontros foi obter informações.

O principal propósito das viagens de Mansour ao Irã era a coordenação tática, de acordo com Bruce Riedel, antigo analista da Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana e pesquisador da Brookings Institution, em Washington. Na época, em 2016, o Taleban estava preparando ofensivas em oito províncias afegãs. Farah era vista como fruta especialmente madura.

O Irã facilitou um encontro entre Mansour e funcionários do governo russo, segundo autoridades afegãs, o que permitiu que ele obtivesse dinheiro e armas de Moscou para os insurgentes. O cultivo do Irã por Mansour, como fonte de armas, era conhecido do Paquistão, disse um antigo comandante do Taleban que pediu que seu nome não fosse revelado porque desertou recentemente da facção.

O Paquistão estava ansioso por dividir o peso político e financeiro de seu apoio ao Taleban, e encorajou o relacionamento entre a facção e o Irã, disse Haji Agha Lalai, assessor do presidente do Afeganistão e vice-governador da província de Kandahar.

Em sua última visita ao Irã, Mansour foi à capital do país, Teerã, para uma reunião com alguém muito importante - possivelmente o líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei, disse o antigo comandante do Taleban, que afirma ter obtido a informação de membros do círculo íntimo de Mansour.

Mansour estava quase certamente negociando uma expansão da assistência iraniana e russa, pouco antes de sua morte, disseram Lalai e outros funcionários do governo afegão. Mas a reunião com os russos parece ter sido um passo além do que seria aceitável, dizem as autoridades afegãs. O relacionamento dele com o Irã e a Rússia havia se intensificado a ponto de ameaçar o controle do Paquistão sobre a insurgência.

Os Estados Unidos estavam cientes dos movimentos de Mansour, entre os quais suas incursões ao Irã, há algum tempo, antes do ataque, e informações quanto a isso estavam sendo fornecidas ao Paquistão, disse Seth Jones, diretor associado da organização de pesquisa Rand. O Paquistão também havia fornecido informações úteis, ele acrescentou. "Eles apoiavam ao menos em parte um ataque direto contra Mansour".

O coronel Ahmad Muslem Hayat, antigo assessor militar afegão em Londres, disse acreditar que as forças armadas norte-americanas estivessem tentando enviar uma mensagem, ao atacar Mansour em seu retorno do Irã. "Foi inteligente fazê-lo, para lançar suspeitas sobre o Irã", ele disse. "O objetivo era criar distância entre o Irã e o Taleban".

Mas se a intenção era essa, disse Lalai, a manobra não deu certo, a julgar pela maneira com que o novo líder do Taleban, Mawlawi Haibatullah Akhundzada, vem levando adiante o trabalho de seu predecessor.

"Não creio que o contato tenha sido interrompido", ele disse. "Haibatullah continua recorrendo ao Irã. Eles precisam desesperadamente de dinheiro, se querem estender suas operações".

Não há lugar no Afeganistão em que a influência iraniana seja sentida de maneira mais intensa do que na cidade de Herat, no oeste do país e bem próxima da fronteira com o Irã. Há três milhões de afegãos morando e trabalhando no Irã, hoje.

MohammadAsif Rahimi, o governador da província de Herat, alertou que a interferência iraniana havia crescido a ponto de colocar todo o país em risco de tomada de controle pelo Taleban.

Isso poderia ter sido prevenido, na opinião de Timor Sharan, antigo analista sênior do International Crisis Group no Afeganistão e agora parte do governo do país.

"O fato é que os Estados Unidos criaram esse vazio", ele disse. "E o vácuo encoraja países a se envolverem".

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