Monumento confederado dá lugar a estátua de mulher negra em Baltimore

ISABEL FLECK
ENVIADA ESPECIAL A BALTIMORE (EUA)

Na manhã seguinte à retirada da estátua dos generais confederados Robert E. Lee e Thomas "Stonewall" Jackson de um parque em Baltimore, a 60 km de Washington, um morador recrutava os curiosos que tiravam fotos do pedestal vazio para erguer uma escultura em seu lugar.

Em pouco mais de um minuto, cerca de dez pessoas colocaram a escultura de uma mulher negra grávida, que carrega o outro filho nas costas, no local onde ainda se lê "tão grande é a minha confiança no general Lee que quero seguí-lo cegamente".

A estátua dupla de Lee e Jackson em seus cavalos foi uma das quatro retiradas de Baltimore na madrugada desta quarta (16), sob ordem da prefeita, Catherine Pugh, em meio à recente escalada de violência envolvendo os símbolos confederados —lado na Guerra Civil (1861-1865) que defendia a manutenção da escravidão.

A ameaça de remoção de outra estátua de Lee, em Charlottesville, foi a motivação oficial da marcha que reuniu supremacistas brancos na cidade da Virgínia e que terminou com uma morte no último sábado (12). É também o mote de outra manifestação da extrema direita convocada para 16 de setembro em Richmond.

No domingo, moradores de Baltimore tinham protestado para fazer avançar a remoção dos monumentos, discutida desde 2015.

Além de Baltimore, o prefeito de Lexington (Kentucky) também disse nesta semana que vai acelerar o processo de retirada de estátuas, e autoridades de Dallas (Texas), Memphis (Tennessee) e Jacksonville (Flórida) anunciaram iniciativas para remover símbolos confederados.

Em Durham, na Carolina do Norte, grupos que contestam a presença dos monumentos ligados à escravidão não esperaram uma decisão das autoridades e derrubaram, com uma corda, a estátua de um soldado confederado na noite de segunda (14).

Quatro pessoas foram detidas sob a acusação de participação em motim para destruição de propriedade. "Se as pessoas decidem que querem remover uma estátua como essa, isso deveria ser seu direito", disse o Partido Mundial dos Trabalhadores, em nota em defesa de uma das acusadas, que é integrante do grupo.

Pelo menos 60 símbolos confederados já foram removidos ou renomeados pelo país desde 2015, quando o assunto ganhou notoriedade após um supremacista branco matar nove negros em uma igreja em Charleston, na Carolina do Sul. Depois disso, a bandeira confederada foi retirada da frente da sede do Legislativo na capital do Estado.

Ainda há mais de 700 monumentos confederados nos EUA, segundo a organização Southern Poverty Law Center.

A jornalistas, nesta quarta, a prefeita de Baltimore disse que acelerou a retirada das estátuas e ordenou as operações de madrugada para "proteger a cidade". "Com o clima do país, é importante agirmos rápido e silenciosamente", afirmou Pugh. A prefeita faz parte dos quase 65% da população de Baltimore que é negra.

Além da estátua dos generais Lee e Jackson, foram retiradas uma que representava soldados confederados anônimos e outra que homenageava mulheres que lutaram pelos confederados na Guerra Civil.

No pedestal do primeiro, o Monumento aos Soldados e Marinheiros Confederados, ainda se podia ver, nesta quarta, marcas deixadas por manifestantes: tinta vermelha espalhada, imitando sangue, e adesivos do movimento "Black Lives Matter" (vidas negras importam).

No lugar do quarto monumento retirado, o do membro da Suprema Corte Roger B. Taney —que em 1857, determinou que nem mesmo negros livres poderiam se tornar cidadãos americanos—, um morador colocou um cartaz com uma cronologia que lembrava a controversa decisão de Taney.


MONUMENTOS CONFEDERADOS EM XEQUE
Algumas cidades já iniciaram a retirada das estátuas, outras debatem o que fazer; entenda quem são os personagens homenageados em monumentos por todo o país

Robert E. Lee (1807-1870)
Exímio estrategista militar, o general foi vencido na famosa batalha de Gettysburg. Sua rendição é considerada o marco inicial da derrota dos confederados.p(erramos).

Thomas "Stonewall" Jackson (1824-1863)
Subordinado a Lee, é reconhecido por suas habilidades de comando. Ganhou o apelido "parede de pedra" pela posição defensiva de suas tropas em uma batalha.

Jefferson Davis (1808-1889)
Foi ministro da Guerra, senador e general do exército do Estado de Mississippi. Em 1861, foi escolhido presidente da Confederação, cargo que ocupou até 1865.


'MADRE LUZ'

Mas foi o espaço deixado pela remoção do monumento aos generais que chamou mais atenção. Durante todo o dia, pessoas passaram para tirar fotos e deixar mensagens de apoio a Pugh.

"Querida prefeita, 69 anos atrás quando eu tinha 9 anos, eu estava vestida em um vestido amarelo () e fui conduzida para deixar rosas amarelas no pedestal durante a inauguração da estátua. Hoje deixo rosas no pedestal em homenagem à Prefeitura por sua decisão sábia e discreta", dizia o trecho de uma carta deixada no local pela moradora Clarinda Harriss.

O artista plástico Pablo Mattioli, 40, que fez a escultura com jornais que agora ocupa o lugar da estátua dos generais diz esperar que a obra, batizada de "Madre Luz" e iniciada em 2015, ajude "a mudar alguma coisa". "Queria que ela mostrasse o valor da paz, da liberdade e do respeito", disse à Folha logo após a sua instalação.

Para a escritora Stephanie Podue, 31, uma das moradoras que foi conferir nesta quarta como havia ficado o local sem a estátua dos generais, o monumento já não representava o "espírito" de Maryland. "E ela não tinha sido colocada aqui para lembrar a história, mas porque uma pessoa quis homenagear os generais", disse.

A estátua fora encomendada por Henry Ferguson, um empresário da cidade, em seu testamento, e inaugurada em 1948.

Alguns curiosos que foram ao local, como o morador que quis se identificar apenas como Jim, no entanto, disseram que não sabiam o que o monumento significava até que ela foi retirada. "Cresci me referindo a ela como a estátua de dois homens sobre dois cavalos", disse.

RELATO HONESTO

Especialistas ouvidos pela Folha se dividem sobre a necessidade de retirar os monumentos confederados -uma decisão que, todos eles defendem, deve ser de cada cidade.

"Como historiador, sou invariavelmente a favor de permitir que mesmo memoriais controversos permaneçam em seus locais, mas acompanhados, onde for possível, de um texto que explique o seu contexto", diz Robert O'Neil, professor de História da Universidade da Virginia, em Charlottesville.

A também historiadora Daina Berry, da Universidade do Texas, concorda que é preciso haver uma explicação sobre esses monumentos e memoriais. "É perigoso deixá-los lá sem um relato honesto da história, do que esses símbolos representam", diz Berry.

"Um dos muitos pontos que está sendo deixado de fora do debate é o contexto histórico: quem são esses generais que estão sendo celebrados? Quem tomou a decisão de erguer esses monumentos e quando foram instalados?", afirma.

A professora de Direito Caroline Corbin, da Universidade de Miami, defende a retirada dos monumentos, que, na sua opinião, nunca deveriam ter sido erguidos. "Se a Alemanha não tem problema em lembrar do Holocausto sem monumentos ao regime nazista, eu não vejo por que os EUA não podem lembrar da Guerra Civil sem os memoriais aos confederados", afirma.

Já Salvatore Mercogliano, professor de História da Campbell University, na Carolina do Norte, destaca que o que está em discussão não é a retirada de símbolos confederados de cemitérios ou museus, mas sim de parques públicos.

"Ninguém está defendendo remover os confederados da história dos EUA", diz, apesar de destacar que considera "ilegais" ações como a retirada a força, por ativistas, da estátua em Durham. "É difícil apagar a história, e temos que ser cuidadosos com a forma como se tenta conduzir isso", afirma.

Aos pés da nova escultura em Baltimore, a garçonete Hanna Shiflett, 24, classificou a remoção da antiga estátua como "muito necessária". "Elas podem ir para um museu ou um memorial, se é para lembrar a história."

A prefeitura considera transferir as quatro peças para um dos cemitérios de confederados de Marlyand.

Erramos: o texto foi alterado
É incorreto afirmar que o general norte-americano Robert E. Lee tivesse pouca perícia militar. Historiadores divergem sobre sua decisão de combater a União na Guerra Civil dos EUA, mas ele é apontado como um exímio estrategista militar. O texto foi corrigido.
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