Contra obscurantismo de Trump, há a luminosidade da razão

ARIEL DORFMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Abaixo a inteligência! Viva a morte!"

Sempre foi importante recordar as palavras iracundas proferidas pelo general Millán Astray no auditório da Universidade de Salamanca em 12 de outubro de 1936, mas o exercício da memória importa, hoje, mais por aquilo que revela sobre urgências do presente do que por aquilo que nos diz sobre o passado.

De fato, 81 anos depois de o general, amigo e mentor do ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975), dizer frases tão infames, elas ganham nova relevância e servem para nos conduzir para dentro da guerra que o presidente americano, Donald Trump, promove contra a ciência.

Nunca na história dos EUA se havia produzido um ataque tão feroz contra a verdade objetiva e a racionalidade.

Ainda que o historiador Richard Hofstadter (1916-70) tenha denunciado a tendência ianque a desprezar os intelectuais em seu livro clássico "Anti-Intelectualismo nos Estados Unidos" (Paz e Terra), de 1963, ele não poderia ter adivinhado que um dia a Casa Branca seria ocupada por alguém que ostentasse uma mistura tão tóxica de ignorância e hipocrisia.

A retórica de Trump durante a campanha presidencial ("os especialistas são horríveis; vejam a enrascada em que nos meteram todos os especialistas que temos") pressagiou as figuras obscurantistas, visceralmente hostis ao conhecimento, de que ele encheu seu gabinete.

Não deveriam nos surpreender, portanto, os imensos cortes orçamentários para os institutos que realizam descobertas e avanços na medicina, estudos do clima, segurança no trabalho e exploração espacial, e tampouco a supressão de informações especializadas nos portais da Casa Branca e de muitos de seus departamentos (Agricultura, Educação, Ambiente, Energia, Interior, Trabalho e Departamento de Estado) para que desapareçam tantas análises inconvenientes.

Com consequências letais.

Há trabalhadores que morrerão porque os regulamentos aplicados por Barack Obama contra a sílica, o mercúrio e o berilo foram suspensos, e mineiros de carvão que correrão perigo de vida porque haverá menos inspeções dos poços para mineração.

Famílias inteiras na região dos montes Apalaches sofrerão de câncer, defeitos congênitos e enfermidades respiratórias porque as academias de ciências foram instruídas a não estudar os efeitos da destruição das montanhas sobre a saúde.

E muitas outras existências se verão truncadas porque mais de 30 normas de eficiência comprovada contra a poluição foram revogadas, o que permitirá que elementos químicos e gases contaminem o ar, o solo e a água.

Mas é no que diz respeito ao aquecimento global que os danos serão irreparáveis.

Trump e o seu czar do meio ambiente, o troglodita Scott Pruitt, negam que o dióxido de carbono seja responsável pela mudança do clima e fizeram o impossível para que a situação já desastrosa da Terra piore ainda mais, abandonando o Acordo de Paris sobre o clima (2015) e permitindo mais emissões de metano e a utilização de pesticidas venenosos.

Se a essas políticas mortíferas, que ameaçam milhões de humanos e poderiam afetar catastroficamente outros bilhões, somarmos a maneira pela qual Trump jurou "destruir totalmente" a Coreia do Norte, demonstrando ignorância criminosa quanto aos tratados e protocolos internacionais assinados pelos Estados Unidos sobre o uso de armas nucleares, seria lícito suspeitar que Millán Astray reencarnou nessas novas bestas do apocalipse.

Abaixo a inteligência! Viva a morte!

O que fazer diante de tamanha estupidez, aprovada por grande parte da população norte-americana?

Nessa luta contra o obscurantismo, devemos encontrar inspiração na resposta de um dos presentes ao discurso de Millán Astray na Universidade de Salamanca, no mesmo 12 de outubro de 1936.

O notável intelectual Miguel de Unamuno respondeu da seguinte maneira ao desafio do general: "Vencereis, pois tendes força bruta de sobra, mas não convencereis".

Ainda que a valentia de Unamuno mereça elogios, talvez faça sentido inverter os termos de sua resposta.

Nesta época instável e confusa, é necessário, mais que nunca, confiar em que a inteligência que permitiu que a humanidade derrotasse a morte, criasse milagres médicos e invenções assombrosas, construísse templos maravilhosos e escrevesse livros de gloriosa complexidade, seja capaz de nos salvar uma vez mais.

Há de se nutrir a esperança de que o cérebro que nos converteu em quem somos possa usar as gentis graças da ciência e da arte para provar que a verdade não pode ser destruída com tanta facilidade, e que anuncie aos obscurantistas, com a mesma serenidade de Unamuno.

NÃO vencereis, e nós encontraremos, SIM, o modo de convencer, da forma que for, com toda a luminosidade ao nosso alcance, os inimigos da razão.

Antes que nossa vida se vá.

ARIEL DORFMAN, escritor e dramaturgo chileno autor de "A Morte e a Donzela" (Paz e Terra) e "A Cidade em Chamas" (Rocco), entre outros, mora em seu país e nos EUA, onde é professor emérito de literatura na Universidade Duke

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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