Quando o canal de notícias russo RT, que tem o apoio do Estado russo, tornou-se a primeira organização noticiosa a passar de 1 bilhão de hits no YouTube, em 2013, ele festejou a realização com uma retrospectiva de seus vídeos mais populares e a presença de um convidado especial: um dos executivos seniores do YouTube, que pertence ao Google.
Robert Kyncl, vice-presidente do YouTube que desde então se tornou diretor comercial, conversou com um âncora da RT em um estúdio. Ele elogiou a RT por criar um relacionamento com seu público, pelo fato de lhes oferecer conteúdos "autênticos", em vez de "agendas ou propaganda".
Mas hoje, quando investigadores em Washington examinam o alcance e grau de interferência russa na política dos Estados Unidos, a relação antes íntima entre RT e YouTube está atraindo escrutínio mais intenso.
O YouTube é a plataforma de vídeos mais visitada do mundo e pertence a uma das corporações mais poderosas e influentes dos Estados Unidos.
Ele desempenhou papel crucial em ajudar a construir e promover a expansão da RT, organização que a comunidade americana de inteligência descreve como "a principal emissora internacional de propaganda" do Kremlin e peça chave nas operações de guerra de informações conduzidas pela Rússia pelo mundo afora.
Enquanto agentes alinhados com o Kremlin construíam secretamente grupos no Facebook para fomentar divisões e desencadeavam multidões de bots no Twitter para alimentar críticas a Hillary Clinton, a RT trabalhava abertamente, fortalecida por um dos maiores públicos online de qualquer organização noticiosa do mundo e por um lugar de destaque nos resultados de buscas empreendidas no YouTube.
Quando a campanha eleitoral presidencial americana estava esquentando, na primavera de 2016, a RT divulgou constantemente reportagens de teor negativo sobre Hillary Clinton, segundo fontes de inteligência dos EUA.
As narrativas divulgadas incluíam alegações sobre suposta corrupção na fundação da família Clinton e sobre supostos laços da candidata com o extremismo islâmico, cobertura frequente de e-mails roubados por agentes russos do presidente da campanha de Hillary e acusações de que Hillary estaria em saúde física e mental precária.
O canal russo foi uma das primeiras organizações noticiosas a reconhecer o poder do YouTube e a desenvolver conteúdos que visam especificamente funcionar bem nessa plataforma.
A RT carrega vídeos frequentemente, incluindo vídeos virais leves sobre desastres —acidentes de avião, tsunamis, a queda de um meteorito— para ganhar mais "curtidas" e para ser vista por mais tempo, algo que o algoritmo do YouTube lhe recompensa com uma colocação melhor entre os resultados de buscas e as recomendações.
Em muitos casos pegos emprestados de outras fontes, os vídeos virais ajudaram a aumentar a base de assinantes da RT, e esses assinantes tornaram-se parte da plateia visada pelo Kremlin para receber mais conteúdos políticos.
O YouTube também proporcionou à RT vários tipos de mordomias reservadas às fontes que publicam grande volume de materiais, incluindo segundos planos customizados para o canal em seus primórdios e um "sinal de tique" que designava a RT como sendo uma fonte de notícias verificadas.
Até recentemente, a RT também fazia parte de um grupo seleto de organizações noticiosas incluídas no conjunto de fontes de jornalismo classificadas pelo Google como suas preferidas, algo que lhe garantia acesso a receita garantida dos maiores anunciantes. Na prática, esses anunciantes subsidiavam o braço depropaganda política internacional da Rússia.
No mês passado o Google tirou a RT de sua lista de fontes preferidas.
Andrea Faville, uma porta-voz do Google, disse que a decisão não teve relação com o inquérito do Congresso americano e que se deveu a "uma atualização padrão de algoritmo". Mas o Google também observou que não está impondo nenhuma outra limitação à RT: esta ainda poderá vender anúncios em seus vídeos, como de praxe, e o downgrade de seu status preferido se aplica apenas aos Estados Unidos.
Kirill Karnovich-Valua, o vice-editor executivo da RT, disse que a organização não foi informada da decisão do Google e estava perplexa, sem entender por que foi tirada da lista de preferidas, apesar de ser "um dos canais do YouTube mais vistos no mundo".
"Isso revela a pressão política inusitada que está sendo aplicada cada vez mais a todos os parceiros e relacionamentos da RT, em um esforço coordenado para expulsar nosso canal do mercado americano, completamente e através de todos os meios possíveis", escrever Karnovich-Valua via e-mail.
No mês passado, a RT disse que o Departamento de Justiça dos EUA exigiu que uma empresa privada filiada à RT America se cadastrasse como "agente estrangeiro" —termo derivado de uma lei promulgada originalmente em 1938 com a finalidade de barrar a propaganda política nazista.
Na quinta-feira, depois de ter se esgotado o prazo final dado pelas autoridades americanos, uma porta-voz da RT disse que a organização estava "fazendo todo o possível para evitar que a RT seja obrigada a se cadastrar".
O cadastramento como agente estrangeiro pode obrigar a RT a revelar muitas informações a seu respeito, algo que representaria um incômodo especial para uma organização de mídia que produz conteúdos frequentes.
O presidente russo, Vladimir Putin, reagiu de modo mais enfático, dizendo na semana passada que, se os EUA impuserem restrições à mídia russa, a Rússia agirá "de modo simétrico e rápido".
Também está sendo investigado o uso feito pela RT de outras plataformas de tecnologia. No mês passado, representantes do Twitter disseram a um Comitê de Inteligência do Senado que três contas da RT voltadas a uma plateia americana, com uma audiência conjunta de cerca de 6 milhões de usuários, gastaram US$274.100 para promover tuites em 2016.
Alguns parlamentares, incluindo o senador Mark Warner, querem mais regulamentação e que as plataformas de mídia social sejam obrigadas a divulgar informações sobre seus anúncios políticos. Mas a forte presença da RT no YouTube mostra como pode ser difícil limitar a influência estrangeira.
"Não é um segredo. Não é nada muito difícil, mas eles o estão fazendo muito melhor", disse Christoph Burseg, que comanda a consultoria estratégica e analítica VeeScore.com, que rastreia o uso do YouTube.
"A não ser que o YouTube decida intervir manualmente, a RT vai continuar a estar muito presente. Ela não está fazendo nada de errado, está apenas aproveitando os algoritmos."
Tradução de CLARA ALLAIN
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.