Na África, queda dos longevos Mugabe e Santos entusiasmam
Jekesai Njikizana/AFP | ||
População protesta contra Mugabe, neste sábado (18), no Zimbábue |
Zimbábue e Angola passam por transformações profundas e inesperadas.
No primeiro, bastou um desfile de tanques e alguns disparos perto da residência oficial para destituir Robert Mugabe, 93, no poder desde 1980. No segundo, João Lourenço, 63, o sucessor de José Eduardo dos Santos, 75, precisou de apenas 50 dias para iniciar o desmantelamento da estrutura de poder familiar do antecessor, que capturou o Estado por quase 30 anos.
O Zimbábue de Mugabe era uma ditadura inequívoca. As últimas presidenciais, em 2012, foram uma farsa repleta de fraudes e violência.
A Angola de Santos era uma democracia de fachada. O governo gastou US$ 60 milhões na campanha presidencial de 2012, orquestrada pelo marqueteiro João Santana e financiada em parte pela Odebrecht, para legitimar o regime aos olhos da comunidade internacional.
Mugabe nunca se importou de ser visto como tirano. Santos foi sempre cioso da imagem. Ambos integravam o clube restrito de ditadores longevos da África. Tiveram papel irrisório na luta pela independência de seus países, mas se colocavam como líderes da geração que libertou o continente do jugo colonial.
Apesar de ter adotado o mantra Marxista-Leninista nos anos 1980, Santos preservou os interesses das multinacionais petroleiras. Numa ironia da história, militares cubanos a serviço do regime pró-soviético de Santos chegaram a defender zonas petrolíferas angolanas controladas por empresas americanas dos ataques dos rebeldes pró-americanos da Unita, comandada por Jonas Savimbi.
No fim dos anos 1990, Mugabe, para consolidar seu poder, acelerou o confisco das fazendas dos antigos colonos britânicos, essenciais para a produção agrícola do Zimbábue, um celeiro da África.
A medida levou ao colapso produtivo, e a inflação atingiu 24.000%. Em 2008, o caos econômico se somou à repressão brutal nas eleições. Governos ocidentais impuseram sanções, e Mugabe virou símbolo da degeneração dos regimes pós-coloniais.
Já Santos aproveitou o fim da guerra civil em 2002 e a decolagem das commodities para lançar um faraônico projeto de reconstrução nacional. Maior exportador de petróleo para a China e primeiro parceiro do Brasil na África, Angola virou símbolo do alegado renascimento africano.
Embora os dois regimes projetassem imagens distintas, poucos duvidavam que o modo de operar era similar.
Santos e Mugabe promoviam quadros dos respectivos partidos, MPLA e Zanu-PF, para controlarem as alavancas do Estado, e cooptavam serviços de segurança e militares pela conversão de senhores de guerra em empresários. A corrupção servia para se perpetuarem no poder.
SUCESSÃO
Os destinos de Santos e Mugabe voltaram a se cruzar.
Em 2014, o preço do petróleo despencou, Angola mergulhou numa crise inédita, e Santos foi obrigado a acelerar os planos para a sucessão.
No Zimbábue, os militares começaram, na surdina, a debater a transição politica, apesar de Mugabe assegurar que iria continuar governando mesmo após os cem anos.
Santos optou pela saída negociada. Em agosto, após outra eleição de fachada, cedeu o poder ao general João Lourenço em troca da manutenção da filha Isabel na presidência da petrolífera estatal Sonangol e do filho Filomeno no comando do Fundo Soberano de Angola, dotado de US$ 5 bilhões.
Mugabe foi pelo caminho oposto. Despreocupado com os sentimentos dos dirigentes políticos e militares, tentou emplacar sua mulher, Grace, 52, como sucessora.
Ambos descobriram na semana passada que os regimes autoritários são estáveis, até o dia em que se tornam totalmente imprevisíveis.
Numa demonstração de força inesperada, João Lourenço expulsou do governo a família do antecessor. Após quase quatro décadas acatando as decisões de Mugabe, o Exército decidiu frear a sucessão familiar e pôs o presidente em prisão domiciliar.
É cedo para entender se o novo presidente está mudando o modo de governar em Angola ou se a junta militar no Zimbábue apoiará eleições livres. Mas, após décadas de platitude autoritária, é impossível não se entusiasmar.
O fracasso dos dois em perpetuar seu poder é um alerta para outros governantes.
Jacob Zuma, presidente da África do Sul desde 2009, lançou Nkosazana Dlamini-Zuma, sua ex-mulher, para presidência do partido no poder, o ANC. A disputa, em dezembro, é a última chance para a legenda de Nelson Mandela (1918-2013) tomar um caminho diferente dos demais partidos políticos oriundos dos movimentos de libertação.
Se a África do Sul se livrar da tentativa do seu presidente de se agarrar ao poder, 2017 pode ficar na história como ponto de virada na luta pela democracia na África Austral.
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