Papel da ONU na Coreia do Norte deve ser 'discreto', diz secretário-geral

GILLIAN TETT
DO "FINANCIAL TIMES"

O nono secretário-geral da ONU está sentado em uma sala no 38º andar da torre da organização em Nova York e indica com a mão uma coleção de pratos de porcelana brancos com o logotipo azul da ONU.

"Sinto muito, a comida é péssima", disse ele. "Realmente péssima."

Olho para ele, em silhueta contra o céu de Nova York, e rio. Neste raro momento de mau humor, António Manuel de Oliveira Guterres atingiu o limite. Na última hora, estivemos almoçando em sua sala de jantar privativa, e a comida estava realmente horrível: uma salada insossa, um peixe branco insípido e uma torta indigesta. Insossa, insípido e indigesta: palavras que, num dia ruim, poderiam ser aplicadas à ONU.

A ONU não é um lugar onde as pessoas costumam falar francamente, já que é cheia de regras burocráticas, siglas e amenidades. O perigo aguarda os sinceros.

Em 2004, o então secretário-geral, Kofi Annan, viu-se travando uma batalha com o governo Bush por sua sobrevivência profissional, depois de ousar sugerir em uma entrevista à BBC que a guerra contra o Iraque era ilegal. Embora Guterres esteja no comando, é um prisioneiro do protocolo —e se sente frustrado.

Se houve um tempo em que o mundo precisou de uma liderança global coordenada e sincera é hoje. Nesta semana, Guterres esteve na Europa, tentando convencer os chefes de governo a se dedicar mais à mudança climática. Ele também pediu ajuda para combater a ameaça da guerra nuclear na península da Coreia, a crescente instabilidade no Oriente Médio, o conflito na Ucrânia e os combates no Golfo.

O que tornou a situação ainda mais aguda é que os EUA estão se retirando de seu papel de policial global do pós-guerra: como explicou Donald Trump em sua recente viagem à Ásia, ele está forjando políticas com base em "os EUA primeiro". "A situação é extremamente imprevisível hoje na Coreia do Norte, admite Guterres.

Mas alguém vai escutá-lo? A ONU está mais uma vez enfrentando uma crise de credibilidade.

Nos últimos anos ela foi repetidamente denunciada como ineficiente e inchada; as forças de paz da ONU na República Democrática do Congo foram acusadas de abuso sexual e autoridades em todo o mundo foram denunciadas por corrupção.

E enquanto secretários-gerais anteriores como Annan ou Boutros Boutros-Ghali tentaram deixar sua marca no mundo o último mandatário, Ban Ki-moon, foi praticamente invisível: mais secretário que general, como gostavam de observar os críticos de administrações anteriores do órgão.

Na teoria, Guterres está bem situado para superar a marca de Ban. Ele passou a última década como chefe do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), que reestruturou com certa aprovação, e conquistou o apoio político de diversos países em defesa dos refugiados. Mas como ex- primeiro-ministro de Portugal Guterres não tem a posição prepotente de Trump.

"Não sou um tuiteiro profissional", diz ele.

Nem tem o comando autoritário de líderes como Xi Jinping ou Vladimir Putin. Ele tem de operar com a bênção do Conselho de Segurança da ONU e dentro das restrições de seus membros permanentes.

Então como um homem que não pode controlar nem seu próprio cozinheiro pode realmente relançar a ONU?

Vestindo terno escuro e gravata vermelha, o homem de 68 anos que me cumprimenta parece um padre de paróquia ou um professor universitário. Eu lhe digo que já entrei nessa sala de jantar privativa, quando entrevistei Ban. Ele pensou em mudar a decoração séria?

Guterres balança a cabeça. Ele quer pendurar obras de arte contemporânea portuguesas nas paredes com lambris de madeira; sua segunda mulher é ministra da Cultura em sua Lisboa natal. Mas ele ainda não entendeu os obstáculos burocráticos que têm de ser superados para pendurar arte. "Leva tempo —tudo leva tempo", diz, rindo.

Ele se senta numa cadeira com apoio para as costas; tantas viagens aéreas parecem ter cobrado seu preço. Um garçom traz vinho tinto. "[Do] vale do Douro", observa Guterres. "Na minha opinião, o melhor vinho de mesa português; 2011 foi um ano excelente; 2013 foi bom; 2012 mediano." Ele faz uma pausa, examina de perto a garrafa e suspira. "Este é 2012."
Sugere que eu beba do branco. Eu provo, e parece perfeitamente agradável ao meu paladar não especializado. Mas o prato inicial —salada verde— é insípido.

Então, pergunto, por que o senhor quis este cargo? Guterres ignora a salada e começa a falar decididamente, juntando as pontas dos dedos sobre o prato, como se estivesse rezando ou em meditação.

"Se você examinar minha vida, é uma espécie de movimento alternado entre o humanitário e o político", diz ele. "Quando eu era estudante colegial [na classe média portuguesa], queria ser um pesquisador em física. Então fui à universidade e estávamos no final da ditadura. Fiquei fortemente envolvido em obras sociais nos cortiços de Lisboa... e decidi me envolver em política."

Mais especificamente, ele entrou para o Partido Socialista, servindo durante muitos anos em cargos eleitos antes de se tornar primeiro-ministro em 1995. Em seu primeiro mandato ele foi popular em Portugal, forjando o consenso para reformas internas.

Também deixou sua marca nas Relações Exteriores, negociando a transferência de Macau à China e forçando a ONU a agir na antiga colônia portuguesa de Timor Leste.

Então, em 2002, quando os socialistas perderam um punhado de assentos legislativos, Guterres renunciou inesperadamente, dizendo que queria "evitar o caos político". Durante um período ele desapareceu de vista. Muitos anos depois, jornalistas descobriram que estava fazendo trabalho voluntário anônimo em um bairro pobre de Lisboa. "Eu ensinava matemática aos migrantes. Mas absolutamente não queria aparecer. Nunca me importei com legados.

"Quando eu deixei o cargo em Lisboa, fui atacado por muita gente, mas eu não disse nada", explica. "Hoje, é claro, todo mundo diz coisas bonitas sobre mim —mas só porque eu deixei Portugal!"

Guterres assumiu a chefia da Acnur em um momento difícil: a instituição era uma burocracia gigantesca, e uma onda de refugiados ao redor do mundo esgotava seus recursos. Mas, à sua maneira discreta, Guterres decidiu reformá-la. "Quando comecei na Acnur, 14% de nossos custos [eram] na sede; quando saí, 6%", lembra. "Quando comecei, 41% eram custos de pessoal; quando saí, 22%. E isso enquanto reassentávamos 100 mil refugiados por ano."

Esse histórico de reestruturação lhe conquistou respeito entre governos ocidentais preocupados com custos. Ele também era adepto de forjar parcerias com países não ocidentais, como a China.

Isso lhe serviu bem na corrida pelo cargo máximo da ONU: embora se acreditasse em geral no início de 2016 que o cargo deveria ir para uma mulher e/ou um europeu do leste, Guterres venceu porque era apreciado por todos os membros do Conselho de Segurança.

E qual é sua maior conquista nos primeiros 11 meses? De modo improvável, ele aponta para Donald Trump. "Evitamos a ruptura com os EUA."

Enquanto um garçom retira nossas saladas, Guterres explica que quando o novo presidente chegou a Washington parecia hostil à ONU. "No início do ano recebi cartas dizendo que o financiamento dos EUA à ONU seria cortado, juntamente com outros órgãos", lembra ele.

Não foi uma ameaça vazia. Há muito frustrados pelo multilateralismo da ONU —e a percepção de que ela joga com o poder dos EUA—, governos presidenciais tentavam cortar as contribuições à ONU havia três décadas, falhando repetidamente.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES
p(gallery). Momentos da campanha de Trump

Quando Trump chegou ao cargo, declarou que cortaria em 40% as verbas para todos os grupos multilaterais. Desde então, Washington disse que se retiraria da Unesco e causou confusão com a OMC.

Mas no mês passado Guterres visitou a Casa Branca e, contrariando as expectativas, encantou Trump, levando-o a fazer um gesto de apoio: o presidente declarou que a ONU "tem o poder de unir as pessoas, como nada mais", prevendo que "vão acontecer com a ONU coisas que nunca vimos".

Como ele persuadiu Trump a mudar de tom? "Meu truque é simples: apenas seja autêntico. Diga a verdade às pessoas, de um modo que elas possam compreender." Verdade? Guterres sorri e admite que Nikki Haley, a persistente e altamente ambiciosa embaixadora dos EUA na ONU, também desempenhou um papel chave. "Ela é uma pessoa muito prática, muito construtiva."

E que dizer de Trump? Tenho curiosidade para ver como o introspectivo Guterres cria uma relação com o presidente. "Trump também é um homem muito prático", responde Guterres, deslizando suavemente para a moderação do político tarimbado. "É claro que há coisas sobre as quais absolutamente não concordamos, como a mudança climática. Absolutamente não. Mas não posso mudar isso." Ele encolhe os ombros. "Os EUA estão pagando tudo o que devem. Temos uma relação funcional. É um relacionamento funcional."

Um garçom chega com o prato principal: uma tira de peixe branco, um monte de arroz amarelo e um pouco de acelga cozida demais. Guterres equilibra o garfo e a faca na borda do prato.

Ele acha mais fácil lidar com os chineses? Guterres assente. "Acredito que os chineses me consideram um amigo." Ele teve um relacionamento estreito com os líderes chineses durante muitos anos, enquanto a China se tornava cada vez mais poderosa no palco mundial. "A China está adotando medidas ousadas em relação à mudança climática", continua Guterres, afirmando que Pequim está "exercendo um papel de segurança muito maior" e até se envolvendo em missões de manutenção da paz.

Então a China pode usar o papel realçado para reduzir as tensões na Coreia do Norte? O sorriso de Guterres desaparece e ele pressiona as pontas dos dedos com força acima do prato. "Estou muito preocupado", diz.

Deveria ser possível encontrar uma solução pacífica para a península da Coreia, diz, mas não é otimista: "Os riscos de imprevisibilidade são muito altos".

A ONU pode ter um papel nas negociações? Há uma longa pausa. "Só poderemos ter um papel se for extremamente discreto", observa ele finalmente. "É tão discreto que não posso responder à sua pergunta."

Ele se encontrará com Kim Jong-un? "Não vejo, no momento atual, qualquer circunstância em que isso teria sentido."

Outra pausa. Como um pedaço do peixe e Guterres me diz que visitou a Coreia do Norte uma vez, há 30 anos, como parte de uma delegação parlamentar. "Fomos convidados a um estádio para ver um espetáculo do que é chamado de Ginástica em Massa. Ele incluiu, durante uma hora e meia, 15 mil crianças fazendo todo tipo de coisas complicadas, ginástica acrobática... e não houve um só movimento errado. Isso lhe mostra o tipo de sociedade..."

E sobre o Irã? Ele parece relaxar um pouco. A situação, segundo diz, não é "crítica". Mas ele é desanimado pelas ameaças de Trump de se retirar do acordo para suspender as sanções ocidentais ao Irã em troca de um congelamento do desenvolvimento nuclear.

O acordo do Irã "reduz o risco de proliferação", diz ele. "A combinação da situação na Coreia do Norte com essa situação no Irã é que... poderíamos sofrer um sério golpe na não proliferação. Isso seria um desastre."

Uma obsessão particular para ele nesta semana será a guerra cibernética. "Acredito que se tivermos uma guerra séria no futuro haverá um ataque cibernético enorme primeiro, para desorganizar as capacidades do outro lado, por exemplo, paralisar a rede elétrica de um país", diz ele. "Na Primeira Guerra Mundial, as batalhas começavam com uma barragem de artilharia. Na Segunda, eram os aviões bombardeando antes que as tropas avançassem. Hoje são os ciberataques."

Um garçom retira nossos pratos com o peixe não comido e serve a sobremesa: uma torta amarela e doces pesados. Eles ficam quase intocados enquanto Guterres fala sobre suas fontes de inspiração. Uma delas é a parábola dos talentos na Bíblia; ele é um católico da vida toda. Outra é uma frase atribuída a Jean Monnet, um dos fundadores da União Europeia: "Não sou otimista, não sou pessimista, sou apenas determinado".

Com sua primeira mulher, que morreu há 20 anos, Guterres aprendeu outras técnicas, mais sutis. Ela era psicanalista, e incentivou Guterres a colocar os políticos —e a política— em um divã metafórico durante as negociações.

"Uma lição crucial para minha vida política é esta análise [psicológica] muito simples", explica ele. "Quando você tem duas pessoas em uma sala, não tem duas, tem seis: o que cada pessoa é; o que cada uma pensa que é; e o que cada uma pensa que a outra é. É por isso que as relações pessoais são tão complexas. Mas o que vale para pessoas também vale para grupos e países", acrescentou.

"É por isso que há ataques preventivos. Então o que é essencial para mim [com] a Rússia e os EUA, ou a Coreia do Norte e os EUA, é garantir que esses seis se tornem dois, que a percepção se alinhe com as realidades." Isso é difícil, observo. "Muito difícil", ele suspira.

Uma das muitas reformas que Guterres está tentando adotar na ONU visa levar mais mulheres à ação. Deu certo? Ele encolheu os ombros. No topo ele fez um progresso considerável. O desafio, porém, é mais abaixo nas fileiras: nas entranhas da burocracia, há um sistema rígido implantado que não pode ser reformado facilmente, em relação a gênero ou qualquer outra coisa. "A pressão é enorme e a máquina é pesada demais."

"Às vezes o senhor não sente que é um pouco sem esperança?", pergunto. Ele balançou a cabeça. "Este [sistema] é pesado, muito pesado. Mas por outro lado, se você conseguir em certo momento convencer duas pessoas teimosas a fazerem a paz, e evitar que milhares de pessoas sejam mortas..."

Se esse é o sonho da ONU, exige um grau significativo de pragmatismo. Enquanto falamos, Guterres lembra as palavras do falecido político brasileiro Tancredo Neves. "Certa vez lhe perguntaram: 'Quais são as dez qualidades mais importantes em um político?' Ele disse que não sabia dez, mas apenas sete: paciência, paciência, paciência, paciência, paciência, paciência e paciência!"

A sala está escura, mas lá fora o sol brilha sobre a cidade. "Se você quiser reformar a ONU, precisa ser paciente e persistente."


Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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