Descrição de chapéu The New York Times

No Quênia, meninas são salvas de doloroso rito de passagem

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

JINA MOORE
DO "NEW YORK TIMES"

Na primeira vez que a temporada de corte chegou, Nice Lengete e sua irmã mais velha fugiram e se esconderam a noite toda em uma árvore. Na segunda vez, a irmã não quis se esconder.

Para as famílias massai, a cerimônia de corte do clitóris é uma celebração que transforma as meninas em mulheres e marca as filhas como noivas disponíveis. Mas para Nice, de 8 anos, parecia uma ameaça: ela seria imobilizada por mulheres fortes e seu clitóris seria cortado. Ela sangraria muito. A maioria das meninas desmaia. Algumas morrem.

Mas a irmã dela cedeu.

"Eu tentei lhe dizer: 'Estamos fugindo por algo que vale a pena'", lembra-se Lengete, hoje com 27 anos. "Mas não pude convencê-la."

Lengete nunca esqueceu o que sua irmã sofreu, e quando ela cresceu se decidiu a proteger as outras garotas massai. Ela fundou um programa que vai de aldeia em aldeia, colaborando com idosos e meninas para criar um novo rito de passagem, sem a chamada circuncisão feminina.

Em sete anos, ela ajudou 50 mil meninas a evitar o ritual de excisão.

Seu trabalho reflete tendências nacionais e globais. Os índices de corte genital feminino em todo o mundo caíram 14% nos últimos 30 anos. Aqui no Quênia, os casos caíram mais que o dobro.

Novas leis fizeram uma diferença, aqui e em outros lugares. O Quênia proibiu a circuncisão feminina em 2011, e uma unidade especial para investigar casos de corte, inaugurada em 2014, processou 76 casos em seus primeiros dois anos.

Mas as leis feitas na capital muitas vezes têm pouco efeito na cultura da zona rural, onde os costumes são mais enraizados e o poder masculino é virtualmente absoluto.

No território massai, os homens idosos aplicam os costumes, e o corte é há muito tempo um dos mais importantes. Existe a crença de que as mulheres não são mulheres se não forem cortadas, o que significa que os homens não podem se casar com elas. Grande parte da organização da sociedade massai depende desse ritual, de uma maneira ou de outra.

Por isso a luta contra o corte genital feminino, segundo especialistas, precisa de trabalho como o de Lengete: convencer aldeia após aldeia, idoso após idoso, a derrubar o costume secular.

"Cada comunidade tem seu motivo para cortar suas meninas", disse Christine Nanjala, que lidera a unidade de processo especial. "Você está lidando com cultura, e assim lida com a identidade de uma comunidade."

"Alguns idosos na zona rural nos perguntam: 'Como vamos chamar a mulher que é adulta, casada, tem filhos e não é circuncidada?'", acrescentou ela. "Eles não têm um nome para esse tipo de mulher."

Crédito: Andrea Bruce/The New York Times Maasai girls attend an education program about their rights and the risks of female genital cutting, in Lenkisem, Kenya, Dec. 7, 2017. As a young girl, Nice Leng?ete hid to avoid the mutilation.
Professoras dão aulas para meninas massai em Lenkisem, no Quênia

A comunidade de Lengete tinha um nome para ela. "É uma palavra muito feia em minha língua nativa", disse ela, que pode envergonhar a família inteira.

Essa vergonha é um motivo pelo qual as famílias pressionam as meninas relutantes. O avô de Lengete, seu guardião, adotou uma abordagem mais delicada e pediu a ela, depois da segunda fuga, que se explicasse.

"Eu tenho só 8 anos", ela lembra que lhe disse. "Espere até eu ter 9." "Eu tentei barganhar", acrescentou ela.

Mas quando ele falou a respeito de novo ela ainda se recusou.

"Eu disse a ele: 'Eu nunca voltarei, mesmo que tenha de ser uma menina de rua'", disse ela. "Quando ele percebeu que eu queria fugir para sempre, disse: 'Vamos deixá-la. Quando ela quiser ir, ela dirá'.", lembrou Lengete.

Seu avô era um líder idoso e não podia ser contrariado. Mas a comunidade ainda a pôs no ostracismo.

"As famílias não me deixavam brincar com suas filhas", disse ela durante o almoço em um café em Nairóbi. "Todo mundo me considerava um mau exemplo, alguém que desrespeitou sua família e foi contra os costumes da comunidade."

As coisas foram diferentes para sua irmã. Depois da cerimônia de corte, ela foi retirada da escola e, aos 12 anos, casada com um homem mais velho e abusivo. Teve três filhos.

Enquanto isso, Lengete começou a refazer sua reputação.

Tradicionalmente, as mulheres não podem se dirigir aos idosos. Lengete percebeu que tinha uma possibilidade de contradizer a tradição depois que os idosos a enviaram para uma oficina sobre saúde sexual e adolescente dirigida pela Amref, uma organização de saúde queniana.

Ela disse aos idosos que tinha o dever de compartilhar com a aldeia o que havia aprendido. Foi sua primeira moeda de troca, e quase deu certo. Eles lhe deram autorização para falar com os homens mais moços, mas nenhum deles ficou para escutá-la.

"Nenhuma menina tinha sido corajosa antes para desafiar a situação vigente, desafiar os homens", lembrou Douglas Meritei, um desses homens.

Ela continuou tentando durante mais dois anos. Tornou-se algo tão incômodo que os idosos disseram aos jovens que a escutassem. Mas somente três falavam com ela.

Lengete se recusou a desanimar. "Eu pensei: 'Na última vez tive zero, desta vez são três, não é tão ruim'", disse.

Aos poucos, mais rapazes vieram conversar com ela e os assuntos se expandiram —da prevenção do HIV à gravidez adolescente e suas complicações para a saúde, ao casamento precoce, atritos na escola e, finalmente, o corte do clitóris.

"No início, eu achei o que ela dizia totalmente absurdo, e nem pensei duas vezes", disse Meritei, que foi um de seus primeiros aliados. Ela o conquistou falando sobre as consequências físicas dessa prática.

"Sua compreensão das condições médicas me convenceu", disse ele —mesmo em detrimento de sua estatura social. "Meus amigos se perguntavam se eu estava enfeitiçado, por permitir ser levado por tal insensatez", acrescentou ele.

Fazendo um exemplo de si mesma e do que ela havia conseguido, Lengete convenceu os homens mais jovens de que o corte genital não era bom para a comunidade, e os transformou em emissários, que ajudaram a convencer os idosos.

Finalmente, depois de quase quatro anos de diálogo, os idosos da aldeia mudaram centenas de anos de cultura e abandonaram o hábito. Ela havia convencido os homens, e com eles a aldeia, de que todo mundo seria mais saudável e mais rico se as meninas ficassem na escola, se casassem mais tarde e tivessem filhos sem as complicações que o corte do clitóris pode criar.

Ela e os idosos planejaram um tipo diferente de cerimônia para celebrar as meninas, e no ano seguinte o número de meninas na escola disparou. Os idosos reconheceram o trabalho de Lengete com um objeto de grande poder —um "esiere", uma bengala preta que simboliza a liderança.

"Você pode comandar pessoas com essa bengala", disse ela, sorrindo.

Sua campanha se espalhou para aldeias vizinhas e acabou no mais alto nível de poder dos massai, o conselho de idosos que se reúne ao pé do monte Kilimanjaro. Lengete, cujos vizinhos não falavam com ela porque não era circuncidada, tornou-se a primeira mulher da história a falar aos idosos na montanha.

Em 2014, eles modificaram a Constituição secular que dirige 1,5 milhão de massais no Quênia e na Tanzânia e formalmente abandonaram a operação genital feminina.

Ao forçar a derrubada de um mandamento cultural, ela descobriu que seu próprio orgulho cultural era seu mais forte argumento.

"Simplesmente o corte era errado", disse ela. "Todas as outras coisas —bênçãos, roupas tradicionais, danças*–, tudo isso é lindo. Mas qualquer coisa danosa, que cause dor, que tire os sonhos de nossas meninas— vamos acabar com ela."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.