Hacker alemão mostra como é o cotidiano de Julian Assange

ELLEN NAKASHIMA
SOUAD MEKHENNET
GREG JAFFE
DO "WASHINGTON POST", EM LONDRES

Os passageiros que desceram de um voo da Lufthansa vindo de Frankfurt, Alemanha, no mês passado caminham diretamente para as máquinas que scaneiam passaportes e permitem a residentes europeus entrar no Reino Unido rapidamente e sem interação humana.

Uma figura solitária de jeans e moletom preto com capuz se separa do grupo.

"São informações biométricas demais", diz Andy Müller-Maguhn, olhando para as câmeras nas máquinas que poupam tempo dos viajantes.

Ele veio a Londres, como faz quase todos os meses, para encontrar o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, o mais controverso fornecedor mundial de segredos governamentais. Assange está há quase seis anos encerrado na embaixada do Equador em Londres, temendo que, se sair, será extraditado para os Estados Unidos para ser processado sob a Lei de Espionagem.

O Equador recentemente concedeu cidadania a Assange, mas as autoridades britânicas dizem que ele será detido se sair da embaixada.

Crédito: Peter Nicholls - 05.fev.2016/Reuters O fundador do WikiLeas, Julian Assange
O fundador do WikiLeaks, Julian Assange

Müller-Maguhn é um dos poucos pontos de contato de Assange com o mundo externo. Ele geralmente leva livros, roupas e filmes a Assange. Uma vez, em 2016, levou um pendrive que, segundo diz, continha mensagens pessoais para o fundador do WikiLeaks, que deixou de usar e-mail por questões de segurança.

Essas visitas chamaram a atenção dos serviços de espionagem dos EUA e europeus, que têm tido dificuldade em entender como opera a organização de Assange e como exatamente o WikiLeaks teve acesso a grande número de mensagens de e-mail do Partido Democrata, que o grupo divulgou em momentos chaves da campanha presidencial de 2016.

As três principais agências de inteligência dos EUA (a CIA, o FBI e a Agência de Segurança Nacional, NSA) aventaram "com alto grau de confiança" que a Rússia entregou ao WikiLeaks materiais que roubara do Comitê Nacional Democrata e de figuras seniores do Partido Democrata. No ano passado, o então diretor do FBI James Comey disse que o birô acreditava que os materiais tinham sido transferidos por meio de um ou vários intermediários humanos.

O modo exato como os russos entregaram os e-mails ao WikiLeaks é alvo de uma investigação que está sendo feita por agentes de inteligência dos EUA e Europa. Como parte do esforço para entender como são realizadas as operações do WikiLeaks, esses agentes se interessaram em Müller-Maguhn, que visita Assange mensalmente, disseram autoridades americanas.

Müller-Maguhn insiste que nunca esteve de posse do material antes de ele ser colocado online e que não o transportou.

"Isso seria uma insensatez", ele diz.

As autoridades americanas, que inicialmente enxergaram o WikiLeaks como pouco mais que uma irritante máquina de propaganda e Assange como um figura anti-establishment extravagante, hoje têm uma visão muito mais sombria do grupo.

"Está na hora de descrever o WikiLeaks como o que ele realmente é: um serviço de inteligência não estatal hostil", disse o diretor da CIA, Mike Pompeo, no ano passado, depois de o grupo ter divulgado documentos descrevendo ferramentas de hacking usadas pela CIA. Ele reiterou essa visão em dezembro, descrevendo o WikiLeaks como ameaça à segurança nacional e sugerindo que Assange não pode proteger as pessoas que lhe passam segredos de Estado.

"Ele deveria sentir menos confiança em relação a isso", disse Pompeo.

Em entrevista que deu na embaixada equatoriana no mês passado, Assange insistiu que Müller-Maguhn nunca esteve de posse dos e-mails roubados do Comitê Nacional Democrata e descreveu as declarações de Pompeo como "muito estranhas e bombásticas".

Müller-Maguhn é mais cauteloso. "Quantos de vocês não ficariam morrendo de medo quando o diretor da CIA os declarasse o próximo alvo?", ele pergunta.

O hacker de 46 anos caminha pelo aeroporto de Heathrow como um homem ciente de que governos poderosos estão rastreando cada movimento seu. Um repórter do "Washington Post" o acompanha quando ele passa pelo controle de passaportes.

Müller-Maguhn desliga seu celular, temendo que as autoridades de imigração britânicas possuam tecnologia capaz de roubar seus dados. Ele poderia entrar no Reino Unido com sua carteira de identidade alemã, mas prefere usar seu passaporte. "O documento de identidade traz meu endereço", explica.

Um funcionário da imigração examina o passaporte de Müller-Maguhn e olha para a tela do computador por vários segundos.

"Por que o senhor está no Reino Unido?", ele pergunta.

"Vou visitar pessoas", responde Müller-Maguhn.

O funcionário digita alguma coisa no computador. Várias pessoas esticam o pescoço para ver o homem vestido de preto que bloqueou a fila normalmente ágil de passageiros a caminho de reuniões de trabalho matinais.

Após alguns minutos, o funcionário chama Müller-Maguhn para passar. Müller-Maguhn já está caminhando para a saída quando o funcionário se lembra de lhe fazer uma última pergunta.
"Senhor, senhor, de onde é mesmo que o senhor está vindo?", ele grita.

"Frankfurt", responde Müller-Maguhn.

E ele se foi. Lá atrás, o funcionário da imigração ainda está digitando. Os viajantes que olharam rapidamente para Müller-Maguhn já estão olhando para seus telefones outra vez ou andando para seus destinos. Müller-Maguhn se dirige ao trem expresso para Londres.

'DUPLA ESTRANHA'

O relacionamento de Müller-Maguhn com Assange data de sua adolescência, nos anos 1980, quando, voltando a pé da escola, em Hamburgo, ele passava diante do escritório do Chaos Computer Club.

A organização encarnava as convicções antifascistas da Alemanha do pós-guerra e o éthos libertário do underground de hackers. Hoje o maior clube de hackers da Europa, ela se descreve como "uma comunidade galáctica de formas de vida independentes de idade, sexo, raça ou orientação social, que luta pela liberdade de informação atravessando fronteiras".

Em pouco tempo Müller-Maguhn virou amigo, confidente e conselheiro do fundador do grupo, Wau Holland. "Os dois eram uma dupla estranha", disse Peter Glaser, membro do clube, jornalista e amigo de ambos. "Andy era muito jovem e agia como adulto. Wau era mais velho e se comportava como criança."

Mais tarde Müller-Maguhn aplicou seu interesse por computadores e espionagem em uma empresa que co-fundou em 2003 que produzia telefones encriptados. Ele esperava vender o telefone a jornalistas e dissidentes, mas não demorou a descobrir que agências militares e de inteligência da Europa, Ásia e Oriente Médio eram os únicos clientes que entendiam a tecnologia e se dispunham a pagar por ela.

"Isso foi no tempo em que eu estava seguindo o caminho do capitalismo", ele disse, sorrindo, durante uma de várias entrevistas longas que deu em Berlim.

Müller-Maguhn passou dez anos vendendo os telefones, antes de deixar a empresa. "Você pode imaginar que conheço pessoas muito estranhas de lugares muito estranhos", ele acrescenta. Hoje em dia, diz Müller-Maguhn, ele dirige um centro de dados que sedia websites e administra e-mails para empresas. Também trabalha como consultor de segurança, ajudando empresas e governos a proteger seus segredos. Entre seus clientes está a China, conhecida por suprimir a internet e submeter seus dissidentes a vigilância.

Para Müller-Maguhn, o governo chinês, nominalmente comunista, representa uma ameaça menor que os Estados Unidos e tem tendência menor de praticar violência no exterior. "A China não quer aplicar seus padrões ao resto do mundo nem fazer com que outros sigam seu exemplo. Logo, há uma diferença grande."

Nos últimos anos o trabalho de consultoria e assessoria de Müller-Maguhn o levou a várias partes do mundo, incluindo Moscou, onde em 2016 e 2017 ele assistiu a uma conferência de segurança organizada pelo Ministério da Defesa russo.

A caminho de Londres para seu encontro com Assange, ele menciona casualmente que acaba de voltar de uma viagem de três dias ao Brasil.

"Foi uma viagem de trabalho", ele fala, mas não revela mais que isso.

Ele salta de um táxi em Knightsbridge, uma área chique de Londres onde ficam a loja de departamentos Harrods, a embaixada equatoriana e Julian Assange. Nesse dia frio de dezembro, as lojas estão enfeitadas para o Natal. Müller-Maguhn ergue uma câmera com teleobjetiva e mira um prédio a pouca distância do edifício da embaixada onde Assange está confinado desde 2012.

Ele faz algumas fotos com a câmera Nikon, na esperança de localizar equipamentos de vigilância voltados para Assange e a embaixada. Mulheres usando casacos de pele caminham ao lado, enquanto Bentleys e Rolls-Royces passam na rua movimentada. Müller-Maguhn desce um pouco pela calçada para conseguir um ângulo melhor, faz mais algumas fotos e então pendura a Nikon no ombro.

Mais adiante na mesma quadra, mais perto da embaixada, ele aponta para o alto, para um edifício onde desconfia que os espanhóis, irritados com tuites de Assange expressando apoio aos separatistas catalães, possam ter instalado uma equipe de vigilância.

Então ele sobe correndo os degraus do edifício da embaixada do Equador, lança um último olhar sobre o ombro e toca a campainha. Um guarda na porta o reconhece imediatamente e lhe dá as boas-vindas.

Müller-Maguhn conheceu Assange através do Chaos Computer Club em 2007, quando o fundador do WikiLeaks procurava apoio para sua organização então incipiente.

Naquela época inicial, Assange descreveu sua criação como um grupo engajado com a missão de publicar materiais originais direto da fonte, para que os cidadãos do mundo pudessem ter acesso à "evidência da verdade" sobre corporações globais e seus governos.

Passando pela porta da embaixada, um guarda pede a Müller-Maguhn que desligue todos seus aparelhos eletrônicos —câmeras, celulares— e entregue seu relógio e as chaves de seu carro.

"Na última vez eles examinaram até frutas que eu estava levando", conta Müller-Maguhn. "Esses caras têm um trabalho a realizar. Eles recebem suas instruções. Eu não reclamo."

Desde os primórdios do WikiLeaks, o círculo de contatos de Assange encolheu muito. Alguns aliados (como Daniel Domscheit-Berg, que primeiro convidou Assange para o Chaos Computer Club e se tornou porta-voz do WikiLeaks), romperam com o WikiLeaks em 2010, depois de Assange divulgar centenas de milhares de páginas de documentos militares dos EUA sem ocultar os nomes de afegãos locais que tinham ajudado as forças americanas e poderiam virar alvos do Taleban.

Outras pessoas deixaram de apoiar a organização após os problemas legais de Assange, as alegações de que ele teria cometido agressão sexual na Suécia e sua visão de mundo maniqueísta.

Ainda outros alegaram que a organização se deixou utilizar como ferramenta pelos russos em sua campanha para influenciar a eleição presidencial americana de 2016.

"Ele já incomodou tantas pessoas. Não faço ideia de quantas pessoas ele ainda tem como amigas", fala Müller-Maguhn.

Assange continua a temer que será levado a julgamento pelos Estados Unidos, e por essa razão tem medo de deixar a embaixada, dizendo que isso o levaria a ser extraditado.

Segundo pessoas familiarizadas com o assunto, o Departamento de Justiça estuda mover uma ação contra ele. Vários meses atrás, disse Domscheit-Berg, o FBI procurou entrevistar Assange em conexão com uma investigação de um grande júri sobre a publicação de telegramas do Departamento de Estado pelo WikiLeaks.

Domscheit-Berg disse em entrevista que Assange recusou o pedido. "Independentemente das divergências que Julian e eu tivemos, não vou falar com ninguém sobre o que aconteceu", ele disse.

'CAOS'

Com o encolhimento do WikiLeaks e o isolamento de Assange longe da vista pública, as agências de inteligência ocidentais passaram a ter mais dificuldade para visualizar o modo de operação do grupo.

Um relatório interno da CIA de novembro passado dizia que a comunidade de inteligência dos EUA "conseguiu poucos bons insights sobre o funcionamento interno do WikiLeaks". A agência previu que a visão negativa de Assange em relação a Washington levará o grupo a continuar tendo os EUA como seu alvo "desproporcional".

Antigos apoiadores do WikiLeaks dizem que o grupo é regido pelos caprichos de Assange. "O WikiLeaks pode ser visto como sempre e apenas um caos", disse um antigo ativista do WikiLeaks que exigiu anonimato para falar, para poder oferecer uma opinião franca e evitar represálias de Assange. "Não existem sistemas. Não há procedimentos —não há papéis formais nem horários de trabalho. Tudo se resume a Julian e o que ele está com vontade de fazer."

Durante a campanha de 2016, Assange divulgou que queria material sobre a candidata democrata Hillary Clinton. "Ele estava meio que pedindo a todo o mundo: 'Dá para conseguirmos alguma coisa para a eleição?'", recorda Müller-Maguhn.

Assange aprova todas as publicações do WikiLeaks, mas não revê tudo que chega ao grupo. "Ele não quer fazer isso por razões de segurança", diz Müller-Maguhn. Mas Müller-Maguhn é vago quando fala do funcionamento interno do WikiLeaks.

Um antigo associado do WikiLeaks disse que em 2016 Müller-Maguhn e um colega organizaram os materiais recebidos pelo WikiLeaks através de seu servidor de recebimento anônimo de materiais. Mas Müller-Maguhn nega esse envolvimento.

Quando lhe é pedido que explique o processo de revisão de materiais recebidos, ele responde: "Não quero".

A única maneira confiável de entrar em contato com Assange, ele diz, é através do serviço de mensagens diretas do Twitter. "Parece que ele vive no Twitter", diz Müller-Maguhn, que não esconde seu desdém pela plataforma. "No Twitter você segue as pessoas, e é isso que a história alemã nos proíbe de fazer."

As finanças do WikiLeaks e o número de profissionais que trabalham para a organização também são desconhecidos. Nem Müller-Maguhn nem Assange revelam quantas pessoas trabalham para o grupo ou onde elas vivem. "Parece que é uma equipe pequena", diz Müller-Maguhn.

O WikiLeaks acumulou uma reserva em bitcoin, moeda digital que possibilita transações anônimas, que não passam por bancos. Esta semana a reserva está valendo cerca de US$18 milhões, mas no final de dezembro, com a valorização intensa do bitcoin, o grupo tinha US$25 milhões em seus cofres, segundo livros-caixa públicos online que registram essas transações.

Nos últimos anos a Fundação Wau Holland, criada em 2003 após a morte do fundador do Chaos Computer Club, arrecadou centenas de milhares de dólares para o grupo de Assange.

Müller-Maguhn integra o conselho de direção da fundação, que se propõe a promover "a liberdade de informação e a coragem civil de várias formas". Ele diz que a fundação apoio algumas das instâncias em que o WikiLeaks divulgou materiais, como a revelação no ano passado das ferramentas de hacking da CIA, conhecida como "Vault 7".

Ele descreve a divulgação do Vault 7 como um serviço público, dizendo que a CIA estava "mexendo com os computadores de outras pessoas e fazendo parecer que terceiros o haviam feito".

Para Assange, qualquer sugestão de que Müller-Maguhn possa ter atuado como intermediário para entregar os e-mails do Comitê Nacional Democrata não passa de uma "tentativa desajeitada" das agências de inteligência americanas de prejudicar a Fundação Wau Holland, que é um canal importante para doações livres de impostos na Europa.

A ameaça é ainda mais importante porque a única outra fonte de doações livres de impostos, a Freedom of the Press Foundation, com sede nos EUA, cortou seus vínculos com o WikiLeaks.

Müller-Maguhn diz que não pode afirmar com certeza o que estava contido no pendrive que entregou a Assange. "Como posso provar o que estava nele? Não posso." Mas acrescenta que seria arriscado e pouco prático entregar arquivos sensíveis em mãos, em lugar de usar canais encriptados.

"Uma entrega clássica em mãos? Você anda vendo filmes demais dos anos 1970", ele diz.

Müller-Maguhn diz que suas visitas à embaixada equatoriana hoje são motivadas por algo que é cada vez mais raro no mundo de Julian Assange: amizade. Os visitantes de Assange incluem celebridades, como a atriz Pamela Anderson, e políticos, como Nigel Farage, defensor acirrado da saída do Reino Unido da União Europeia, e o deputado republicano Dana Rohrabacher, da Califórnia.

Quando conversa com visitantes, Assange liga um aparelho gerador de ruído branco na sala de conferências da embaixada, para impossibilitar a ação de possíveis aparelhos de escuta. Ele aponta para uma câmara sobre a porta e indica que mensagens de teor delicado devem ser comunicadas unicamente por bilhetes manuscritos, escondendo o texto da câmera com uma mão ou um caderno.

No dia 3 de julho de 2016, Müller-Maguhn foi à embaixada para comemorar o 45º aniversário de Assange. Dentro da embaixada, crianças equatorianas usando trajes tradicionais tocaram para Assange com violões e flautas de pan.

Enquanto as crianças cantavam, Müller-Maguhn pensou em como será o futuro.

"Tive uma visão horrível. Eu me vi ali, assistindo a pessoas de 50 anos fazendo música para nós, enquanto Julian ainda estava ali dentro."

Depois de passar duas horas dentro da embaixada, no mês passado, Müller-Maguhn emerge do prédio carregando sua bolsa de couro preto cheia de documentos e sua câmera Nikon. Ele abre caminho rapidamente entre as pessoas que fazem suas compras de Natal e se dirige a Heathrow, de onde embarcará num voo noturno de volta à Alemanha.

Ele tenta minimizar o tempo que passou no Reino Unido. "Não gosta de passar a noite em um país que me vê com hostilidade", explica.

Tradução de CLARA ALLAIN

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.