'Briga de família' faz o Qatar ficar isolado no Golfo Pérsico

Crédito: Crédito Porto de Hamad, no Qatar
Porto de Hamad, no Qatar

DECLAN WALSH
DO "NEW YORK TIMES", EM DOHA (QATAR)

Para o emir do Qatar, existe pouco que o dinheiro não possa comprar.

Adolescente, ele sonhava em tornar-se o Boris Becker do mundo árabe. Seus pais chamaram o tenista alemão ao Qatar para lhe dar aulas. Fanático por esportes desde sempre, ele mais tarde comprou um time de futebol francês, o Paris Saint-Germain, que no ano passado desembolsou US$ 263 milhões pelo jogador brasileiro Neymar –o maior valor pago na história do esporte pelo passe de um jogador.

Por um custo estimado em US$ 200 bilhões, o emir ajudou a levar a Copa do Mundo de 2022 ao Qatar. Foi uma conquista enorme para um país que nunca antes se qualificara para sediar um torneio.

Agora, aos 37 anos, o emir, xeque Tamim bin Hamad al-Thani, se depara com um problema que não pode ser resolvido apenas com dinheiro.

Desde junho de 2017 o pequeno Qatar virou alvo de um rígido boicote aéreo e marítimo liderado por seus maiores vizinhos, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Da noite para o dia, aviões e navios cargueiros com destino ao Qatar foram obrigados a mudar de rumo, laços diplomáticos foram cortados e a única fronteira terrestre do Qatar, um trecho de 65 km de deserto que separa o país da Arábia Saudita, foi fechada.

Nem mesmo animais foram poupados. Cerca de 12 mil camelos qatarianos que pastavam pacificamente em terras sauditas foram expulsos, provocando um estouro na fronteira.

Os adversários do Qatar acusam o país de financiar terrorismo, cooperar com o Irã e abrigar dissidentes fugitivos. Eles detestam a Al Jazeera, emissora qatariana altamente influente e avessa a ser controlada. E, embora poucos o digam abertamente, parecem estar determinados a arrancar o jovem líder qatariano, Tamim, do trono.

Tamim nega as acusações e atribui a hostilidade a pura inveja.

"Eles não gostam do fato de sermos tão independentes", ele disse em entrevista em Nova York em setembro. "Enxergam isso como ameaça."

O boicote revelou ser o primeiro golpe de uma campanha ampla lançada pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, que está eletrizando o Oriente Médio. Determinado a remodelar seu país tradicional e preconceituoso e a refrear as ambições regionais de seu arqui-inimigo, o Irã, o jovem e enérgico saudita prendeu centenas de rivais em um hotel cinco estrelas em Riad, imprensou o primeiro-ministro do Líbano numa tentativa fracassada de atingir o Irã e intensificou a guerra saudita devastadora no Iêmen.

O príncipe saudita moldou a abordagem da administração Trump ao Oriente Médio. Seus esforços podem ter consequências de longo alcance, potencialmente elevando os preços da energia, turvando os esforços de paz israelo-palestinos e elevando as chances de uma guerra com o Irã.

A disputa com o Qatar talvez seja a parte menos compreendida da ação, mas tem um lado particularmente perverso.

Em setembro, numa reunião da Liga Árabe no Cairo, diplomatas sauditas e qatarianos trocaram insultos como "cão raivoso" e acusações furiosas de traição e até mesmo crueldade no trato de camelos. "Cale a boca quando eu falo!" gritou o ministro de Estado das Relações Exteriores qatariano, sultão Bin Saad al-Muraihkhi.

"Não, quem tem que calar a boca é você!" retrucou seu colega saudita.

O rancor altamente personalizado tem o cheiro inconfundível de uma vendeta familiar. Qatarianos, sauditas e árabes (dos Emirados Árabes Unidos) descendem das mesmas tribos nômades, compartilham a mesma religião e seguem a mesma alimentação. Sua disputa parece uma briga entre primos, embora sejam primos armados com bilhões de dólares e aviões de combate de fabricação americana.

A crise tomou um rumo preocupante na semana passada, quando os Emirados acusaram aviões de guerra qatarianos de assediar dois aviões comerciais quando atravessavam os céus do Golfo Pérsico. Mentira, disse o Qatar, retrucando com outra acusação: que aviões de guerra dos Emirados teriam invadido seu espaço aéreo em duas ocasiões.

PETRÓLEO

O fato de os outros países do Golfo se importarem com o Qatar a ponto de rejeitá-lo constitui uma relativa novidade.

Durante boa parte do século 20, o país não passou de uma área desértica do Golfo Pérsico antes atravessada por piratas. Seus habitantes eram paupérrimos; ganhavam a vida mergulhando para buscar pérolas, no verão, e pastoreando camelos no inverno. Durante décadas os qatarianos estiveram muito atrás de seus vizinhos sauditas, que viviam um boom petrolífero intenso. A família reinante, al-Thani, era dividida por rixas internas acirradas e sujeita a periódicos golpes de Estado.

Mas em 1971 o Qatar encontrou gás.

Num primeiro momento, a descoberta da maior reserva mundial de gás foi uma decepção enorme. "As pessoas esperavam por petróleo", explicou Ahmed bin Hamad al-Attiyah, um ex-ministro da Energia. Na década de 1990, porém, novas tecnologias passaram a possibilitar a liquefação do gás e sua exportação em navios-tanque.

O pai de Tamim, que era o emir na época, xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, apostou altíssimo. Ignorando os conselhos de céticos, investiu US$ 20 bilhões numa enorme usina de liquefação de gás em Ras Laffan, na costa norte do Qatar, com ajuda da gigante energética Exxon Mobil. A empresa era presidida na época por Rex Tillerson, hoje secretário de Estado dos EUA.

Os resultados foram espetaculares. O gás viveu um boom, e em 2010 o Qatar era responsável por 30% do mercado global.

Desde então os cidadãos do Qatar, que hoje são 300 mil, enriqueceram muitíssimo e em pouquíssimo tempo. A renda média per capita do país é US$ 125 mil, a mais alta do mundo, mais que o dobro dos EUA ou Arábia Saudita. O Estado provê os cidadãos de terrenos gratuitos, empregos bem pagos e universidades americanas. Limusines e automóveis de luxo circulam pela avenida de beira-mar de Doha, ladeada por palmeiras. É muito difícil encontrar um qatariano que seja pobre.

Para a Arábia Saudita e os Emirados –além do Bahrein e do Egito, que se uniram a eles no boicote–, o Qatar é uma nação de intrometidos irritantes, embriagada com sua própria riqueza e que precisa ser podada para as dimensões às quais faz jus.

Três figuras reais obstinadas estão ao centro da disputa.

O saudita Mohammed bin Salman, 32 anos, lidera uma campanha para reformar e energizar a entorpecida e rígida sociedade saudita; seu esforço inclui propostas esdrúxulas como a construção de uma cidade de US$ 500 bilhões às margens do mar Vermelho a ser administrada por robôs. Salman tem um aliado leal no xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan, 56, o agressivo príncipe herdeiro dos Emirados, que reforçou o poderio militar de seu pais e compartilha a hostilidade profunda de seu colega saudita em relação ao Irã.

Os dois príncipes estão unidos contra Tamim, o emir do Qatar. Figura eminente e dotada de modos diplomáticos, Tamim é sob muitos aspectos um soberano clássico do Golfo: formado na Real Academia Militar de Sandhurst, na Inglaterra, como seu pai, ele tem três esposas e dez filhos. Vive em vários palácios luxuosos em Doha, cidade futurista feita de altos edifícios envidraçados e avenidas sinuosas.

Sua ascensão ao poder em 2013, aos 33 anos, formou um contraste marcante com a gerontrocracia da Arábia Saudita, onde os governantes costumam continuar no trono até estar perto de morrer. E seus modos corteses escondem um caráter obstinado que seus vizinhos enxergam como sinal de uma figura perigosa, que cria problemas.

A disputa entre os três líderes é uma história tortuosa, repleta de ciberespionagem, propaganda política, intrigas palacianas e caçadas no deserto -algo digno de um drama de poder da antiguidade do Golfo. Travada entre homens riquíssimos trajando as vestes brancas longas conhecidas como "thobes", já foi descrita como "Game of Thobes". Mas também representa um profundo acerto de contas entre as ricas cidades-Estado do Golfo.

Tendo em grande medida escapado da turbulência da Primavera Árabe, em 2011, eles hoje se encaminham para uma ordem econômica e política nova e incerta. Ao centro dessa turbulência se encontra o Qatar, o concorrente minúsculo que há anos participa de uma disputa com adversários mais fortes que ele e hoje se descobre lutando por sua própria sobrevivência.

EXIBICIONISMO

Durante mais de um século os governantes do Qatar sofreram insegurança constante, geralmente provocada por seus próprios parentes.

O avô de Tamim derrubou um primo do cargo de emir em 1972, mas foi deposto do trono em 1995 por seu próprio filho, Hamad. O emir afastado tomou conhecimento do que lhe acontecera enquanto estava de férias na Suíça. Denunciou seu filho como "homem ignorante" e foi para o exílio.

Quando o dinheiro do gás começou a chegar aos bilhões, a partir de cerca de 2000, as tensões familiares se acalmaram, abrindo o caminho para a chegada de um elenco de figuras reais reformistas e cheias de ambições.

A mãe de Tamim, Mozah bint Nasser al-Missned, 58, é uma das pessoas mais famosas do mundo árabe, conhecida por seus vestidos reluzentes, beleza atemporal e defesa de questões educacionais e sociais. Sheikha Mozah, como ela é conhecida, se comporta como uma primeira-dama ao estilo ocidental, discursando em conferências da ONU e visitando campos de refugiados usando roupas de safári, com a cabeça coberta por um lenço amarrado apenas levemente.

Ela criou sua própria base de poder por meio de uma fundação multibilionária que fundou uma orquestra filarmônica, contratando músicos de 30 países. Construiu um hospital de pesquisas de US$ 8 bilhões e ergueu subsidiárias de várias universidades americanas no Qatar, incluindo Georgetown, Northwestern, Carnegie Mellon e Texas A&M.

A irmã mais jovem de Tamim, Mayassa, é a czarina da cultura do país –uma gigante no mundo das artes, alguém que, aos 30 anos de idade, conta com orçamento anual estimado em US$ 1 bilhão (a título de comparação, o Metropolitan Museum of Art, de Nova York, normalmente gasta cerca de US$ 30 milhões por ano na aquisição de obras novas).

Em 2008 Mayassa convenceu o arquiteto I.M. Pei a abandonar a aposentadoria para erguer o aclamado Museu de Arte Islâmica em Doha, e mais tarde ela arrematou grandes obras de Gauguin, Francis Bacon e Damien Hirst.

Em 2011, quando ela adquiriu "Jogadores de Baralho", de Cézanne, com sua cena nada islâmica de pessoas bebendo e jogando, por estimados US$ 250 milhões, o quadro se tornou a pintura mais cara do mundo.

Mas no Oriente Médio os governantes do Qatar vêm utilizando sua riqueza para afirmar a independência qatariana de seus vizinhos maiores.

Durante décadas a Arábia Saudita, 186 vezes maior que o Qatar, tratou o Qatar com praticamente um Estado-vassalo. Nos anos 1940 os governantes sauditas tomaram uma parte da modesta receita petrolífera qatariana; mais tarde, tomaram posse de uma pequena parte do território do país e ditaram sua política externa e de defesa.

Hamad, o pai de Tamim, acusou os sauditas de tentar arrancá-lo do poder em um golpe fracassado em 1996 –um episódio amargo que marcou as décadas de rivalidade fervilhante desde então.

Atuando por conta própria, o Qatar primeiro exerceu o papel de pacificador regional, convertendo Doha em uma espécie de "Genebra à margem do Golfo Pérsico", um lugar onde protagonistas de guerras no Sudão, Líbano e Somália podiam debater suas divergências em hotéis cinco estrelas.

O país abraçou os Estados Unidos, e desde 2003, o ano da Guerra do Iraque, abriga uma enorme base aérea americana. Além disso, conquistou influência popular com a emissora Al Jazeera, cujo estilo provocante desagradou a praticamente todos os governos árabes.

Os qatarianos receberam líderes do grupo militante palestino Hamas, levando autoridades israelenses a descrever Doha como um "Club Med para terroristas".

Mas foi a Primavera Árabe, em 2011, que realmente diferenciou o Qatar dos países em volta. Com movimentos de base contra a ordem estabelecida se alastrando por todo o Oriente Média, os sauditas e os Emirados ficaram alarmados com a força crescente dos islâmicos políticos, como a Irmandade Muçulmana egípcia, que eles temiam que pudessem disseminar o caos em seus próprios países.

O Qatar apoiou os islâmicos.

"Nós nos posicionamos do lado do povo", disse Tamim ao programa de TV norte-americano "60 Minutes" em outubro. "Eles ficaram do lado dos regimes. Achei que nós escolhemos o lado certo."

O emir podia se dar ao luxo de ser ousado. Seu país possuía riqueza imensa, uma grande base aérea americana a poucos quilômetros de seu palácio e praticamente nenhuma oposição interna.

"A ideia prevalente era que os governantes do Qatar podiam fazer o que quisessem, desde que desembolsassem o suficiente", disse Kristian Coates Ulrichsen, autor de "Qatar and the Arab Spring". "A autoconfiança deles estava no auge."

Mas em Riad e Abu Dhabi, a frustração era crescente.

DOIS PRÍNCIPES

A aliança entre o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, e seu colega dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Zayed, foi celebrada cerimonialmente com uma caçada com falcões, um rito tradicional e respeitado da realeza do Golfo que envolve grandes cortejos e grandes despesas. Um único falcão caçador pode custar US$ 250 mil.

Em fevereiro de 2016, os dois príncipes viajaram ao deserto oriental da Arábia Saudita num safári de caça, seguido por expedições de caça no verão na França e no País de Gales. As aventuras selaram a aliança entre o hiperativo príncipe saudita de 32 anos e o líder mais velho dos Emirados. Além de uma visão modernizadora para seus dois países, eles compartilham um apreço por drama shakespeareano.

Depois de Mohammed bin Sultan ter afastado seu rival ao trono, em junho, fotógrafos reais filmaram o príncipe beijando a mão e depois o joelho de seu rival, em sinal de respeito. Horas mais tarde o rival estava trancado em seu palácio.

A aliança militar entre Salman e Zayed lhes valeu acusações de excessos. No Iêmen, onde eles lideram uma guerra aérea devastadora, mas ineficaz, contra a facção houthi, aliada do Irã, suas forças são acusadas de cometer crimes de guerra e provocar a fome generalizada.

"Eles são duas figuras iguais. Ambos enxergam a necessidade de ações incomuns em tempos incomuns", comentou David B. Roberts, especialista no Golfo no King's College London.

Outro elemento que os une é o desejo de colocar Tamim em seu devido lugar.

A rivalidade é fundamentalmente de natureza política. Não importa que o Qatar tenha perdido suas apostas em relação à Primavera Árabe: em toda a região, forças islâmicas financiadas por Doha foram derrotadas ou estão recuando. Mesmo assim, os países vizinhos encaram o Qatar com desconfiança quase patológica.

Essa desconfiança explodiu em 2014, quando Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos retiraram seus embaixadores de Doha, desencadeando uma crise diplomática que terminaria nove meses mais tarde com uma garantia de Tamim de que ele responderia às preocupações sauditas e árabes.

No ano passado, inesperadamente, as tensões voltaram a se acirrar.

Crédito: Mandel Ngan - 21.mai.2017/AFP Tamim bin Hamad al-Thani e Donald Trump se encontram em hotel em Riad, Arábia Saudita
Tamim bin Hamad al-Thani e Donald Trump se encontram em hotel em Riad, Arábia Saudita

DISPUTA

A crise que desencadeou o maior confronto no Golfo em décadas começou com uma série de acontecimentos aleatórios e aparentemente não ligados. E, de maneira típica de 2017, envolveram fake news e o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Em março explodiu uma disputa acirrada em torno do destino de Alaa Alsiddiq, dissidente dos Emirados que vive em Doha desde 2013. Depois de ela publicar no site da Al Jazeera um artigo sobre os direitos das mulheres no Golfo, os Emirados, que tinham cancelado seu passaporte, voltaram a exigir que Tamim a enviasse para casa.

O emir não atendeu o pedido, dizendo a um embaixador ocidental que temia que Alsiddiq pudesse ser torturada ou morta. A fúria dos Emirados cresceu.

Um segundo caso envolveu um resgate enorme. Em abril um jato particular qatariano transportando US$ 300 milhões aterrissou no Iraque para libertar um grupo de 26 caçadores qatarianos com falcões, incluindo nove membros da família real, sequestrados por uma milícia pró-iraniana. Embora ainda não se saiba quem acabou sendo beneficiado, os críticos de Tamim apontaram para o episódio como prova de sua disposição insensata de ceder às exigências de extremistas.

O incidente também forneceu um argumento poderoso a ser apresentado ao novo presidente dos EUA.

Mesmo antes de Trump aterrissar na Arábia Saudita, em maio, na primeira viagem internacional de sua Presidência, ele já parecia ter tomado inequivocamente o partido dos sauditas. As lideranças saudita e dos Emirados vinham há meses cultivando laços estreitos com Jared Kushner, assessor e genro do presidente.

Neófito em política externa, Kushner absorveu a visão dos príncipes sobre a região, incluindo a hostilidade deles em relação ao Qatar, disse um funcionário sênior do Departamento de Estado, que descreveu os relacionamentos como sendo muito próximos.

Em Riad, Trump assinalou o relacionamento crescente, posando ao lado do rei Salman, de 81 anos, com as mãos de ambos sobre um globo reluzente. A imagem visava projetar solidariedade, mas lhes deu a aparência de vilões do cinema e inspirou inúmeros memes na internet.

Trump também se reuniu com Tamim, e o líder qatariano pensou que o encontro tivesse sido positivo. Mas dois dias mais tarde, de volta a Doha, o emir foi despertado com uma notícia preocupante: alguém tinha invadido o site da agência de notícias estatal Qatar e postado uma reportagem sobre o emir descrevendo o Irã como superpotência, elogiando o Hamas e especulando que Trump poderia não continuar no poder por muito tempo.

A reportagem era pura ficção, mas os vizinhos do Qatar a descreveram como sendo verdadeira. Em questão de minutos, analistas de emissoras de televisão dos EUA e sauditas estavam falando da perfídia do Qatar e fazendo críticas acaloradas. Tamim telefonou a seus ministros e mandou tirar a reportagem do site imediatamente.

Pensando que o problema tivesse sido resolvido, acomodou-se para assistir a uma partida de basquete da NBA entre os Golden State Warriors e os San Antonio Spurs. Na realidade, seus problemas mal tinham começado.

Nas semanas seguintes, emissoras sauditas e dos EUA intensificaram os ataques ao Qatar, acusando o país de ameaçar a estabilidade no Golfo. Vários "think tanks" conservadores de Washington engrossaram o coro. E então, no dia 5 de junho, sem qualquer aviso prévio, o Qatar foi atingido pelo boicote de quatro países.

Trump se mostrou ansioso por levar o crédito.

"Em minha viagem recente ao Oriente Médio, declarei que não pode mais haver financiamento da Ideologia Radical", ele escreveu em um tuite no dia seguinte. "Líderes apontaram para o Qatar - vejam!"

Autoridades de inteligência dos EUA determinaram que a reportagem falsa tinha sido orquestrada pelos Emirados, que vinham defendendo um boicote do Qatar desde 2016, segundo um funcionário americano disse ao "New York Times".

Citando briefings de autoridades de inteligência, ele disse que as provas contundentes apontavam para Abu Dhabi, sede do príncipe herdeiro Mohammed bin Zayed. "Não há ambiguidade." E, segundo o funcionário, o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, tivera conhecimento anterior da manobra e assinalara sua aprovação.

Yousef al-Otaiba, embaixador dos Emirados em Washington, disse que seu país "negava categoricamente" qualquer envolvimento na manobra. O governo saudita não respondeu a um pedido de declarações sobre o assunto.

BOICOTE

O boicote prejudicou o Qatar. Com sua única fronteira terrestre fechada, seus navios impedidos de passar por portos dos Emirados e seus aviões impedidos de sobrevoar o espaço aéreo vizinho, os custos dos produtos importados subiram vertiginosamente.

A bolsa de valores perdeu um quinto de seu valor no ano passado. Trabalhadores estrangeiros, sem poder fazer festa em Dubai nos fins de semana, se queixam de sentir claustrofobia na comportada Doha. E as dificuldades para viajar vêm separando famílias cujos membros há séculos habitam nos dois lados da fronteira.

Mas o cotidiano em Doha não mudou muito. Vinhos caros continuam a ser servidos nos hotéis cinco estrelas, as obras do novo metrô continuam, e o belo Museu Nacional, na forma de uma série de discos gigantes que se interseccionam, se prepara para tornar-se a mais recente maravilha arquitetônica da cidade.

Nos fins de semana os rapazes qatarianos se divertem praticando o chamado "dune bashing" –pilotando veículos de tração nas quatro rodas "envenenados" em corridas em alta velocidade no topo de dunas montanhosas, com capotamentos ocasionais. O banco central qatariano diz que tem reservas de US$ 340 bilhões para ajudar o país a suportar a crise.

E o boicote vem tendo alguns resultados contrários aos pretendidos. As restrições comerciais obrigaram o Qatar a aprofundar seus laços econômicos com o Irã, e Tamim virou objeto de admiração intensa. Sua imagem enfeita outdoors pendurados de arranha-céus e ele é louvado em canções que saúdam sua liderança firme. "Ele é a encarnação do rei filósofo", disse Dana al-Fardan, autor de uma dessas baladas.

Convertendo uma necessidade em vantagem, seus ministros estão desenvolvendo novos laços comerciais e de transportes. Para compensar pelo leite saudita perdido, criaram uma nova indústria leiteira no deserto a partir do zero. Numa cena surreal vista um dia em julho, vacas alemãs desceram a rampa de um Airbus da Qatar Airways no aeroporto de Doha, os primeiros animais de cerca de 4.000 cabeças de gado trazidas ao país da Europa, Austrália e Califórnia.

Um nacionalismo acirrado tomou o lugar do discurso antigo sobre laços "fraternos" entre os países. Peregrinos qatarianos disseram que foram impedidos de fazer a viagem a Meca, na Arábia Saudita. Demonstrar simpatia pelo Qatar virou um delito criminal no Bahrein, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Qualquer esperança de que a administração Trump pudesse encerrar a crise foram descartadas pela política externa caótica dos EUA. Os esforços de mediação de Rex Tillerson, que teve décadas de experiência no Qatar como executivo do setor energético, foram repetidamente boicotados por Trump, que, em um evento de levantamento de fundos em Washington, chegou a zombar da pronúncia da palavra "Qatar".

Embora Trump tenha parado de atacar o país desde então e tenha se caracterizado como mediador, alguns de seus assessores seniores continuam com a postura negativa. A Breitbart News Network, até recentemente comandada pelo ex-assessor incendiário de Trump Stephen Bannon, publicou dezenas de artigos atacando o Qatar como suposto aliado irresponsável.

GUERRA FRIA NO DESERTO

Para Tamim, o objetivo último de seus vizinhos é afastá-lo do poder. Na entrevista ao "New York Times", ele citou como precedente a tentativa de golpe de 1996 contra seu pai patrocinada pelos sauditas. "Esse sempre foi o aviso que continuava na nossa cabeça", ele disse.

É possível que seus temores sejam justificados. No início do boicote, disseram dois funcionários dos EUA, os líderes sauditas e dos EAU estudaram a possibilidade de ação militar contra o Qatar. Os detalhes precisos não ficaram claros, mas a discussão foi séria o suficiente para levar Rex Tillersona a intervir pessoalmente, aconselhando os líderes dos EAU e Arábia Saudita a não adotarem ações precipitadas. Trump reiteraria o conselho em um telefonema aos líderes sauditas.

Yousef al-Otaiba, o embaixador dos EAU em Washington, negou em entrevista que tivesse existido qualquer plano militar. "Nunca cogitamos disso", falou.

Mas a simples sugestão de ação militar mostrou até que ponto as regras antigas foram jogadas por terra no Golfo. O Conselho de Cooperação do Golfo, órgão regional formado por seis países e que deveria supostamente resolver esse tipo de disputas, tem estado invisível durante a crise. Em lugar disso, os sauditas vêm promovendo uma sucessão de empresários qatarianos exilados como possíveis rivais políticos de Tamim.

Os qatarianos parecem ter lançado fogo contra fogo no front do hacking. Órgãos de mídia dos EUA vêm há meses recebendo e-mails roubados que visam causar constrangiment a Otaiba, o embaixador dos Emirados. Os e-mails aparentam ter origem na Rússia, mas relatos na mídia saudita atribuem a responsabilidade ao Qatar.

O Qatar nega qualquer envolvimento no roubo dos e-mails. "Por política e por princío o Qatar não pratica crimes cibernéticos nem promove o 'fake news'", disse o governo no domingo em comunicado ao "New York Times".

Os dois lados estão fortalecendo sua capacidade militar. Desde junho, Tamim encomendou 36 aviões de combate F-15 dos Estados Unidos, 24 jatos Typhoon do Reino Unido e 24 caças Rafale da França –multiplicando por sete uma força aérea dotada de apenas 12 aeronaves.

Em dezembro seus adversários anunciaram uma nova aliança militar e econômica entre Arábia Saudita e EAU. A iniciativa coloca ainda mais de escanteio o Conselho de Cooperação do Golfo, que inclui o Qatar.

Dias mais tarde, Tamim promoveu um banquete para o presidente francês, Emmanuel Macron, no Idam, restaurante francês no último andar do Museu de Arte Islâmica, com vista deslumbrante do horizonte de Doha.

No banquete suntuoso preparado pelo chef celebridade Alain Ducasse, os dois líderes brindaram os acordos que tinham firmado pela manhã. O emir tinha encomendado mais 12 caças franceses.

Tradução de CLARA ALLAIN

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