SIMON ROMERO
DO "NEW YORK TIMES", EM ALBUQUERQUE (NOVO MÉXICO)

Lenny Trujillo fez uma descoberta surpreendente quando começou a pesquisar sua origem em uma das famílias pioneiras no Novo México: um de seus ancestrais foi um escravo.

"Eu não sabia sobre o comércio de escravos no Novo México, por isso fiquei chocado", disse Trujillo, 66, um funcionário aposentado dos correios que vive em Los Angeles. "Então descobri que a escravidão foi uma característica que definiu a história da minha família."

Trujillo é um dos muitos latinos que estão encontrando conexões ancestrais com o florescente comércio de escravos na fronteira sanguinolenta que hoje é conhecida como o Sudoeste Americano.

Seus antepassados cativos eram indígenas americanos —frequentemente conhecidos como genízaros— que foram vendidos a famílias hispânicas quando a região esteve sob o controle espanhol, entre os séculos 16 e 19.

Muitos escravos indígenas continuaram nessa situação quando o México e mais tarde os EUA governaram o Novo México.

As revelações provocaram alguns momentos pessoais dolorosos sobre identidade e legado. Mas também alimentaram um amplo debate, carregado politicamente, sobre o significado de ser hispânico e americano nativo.

Um número crescente de latinos que fizeram essa descoberta está adotando seu passado indígena, desafiando uma antiga tradição no Novo México de as famílias valorizarem os ancestrais espanhóis.

Alguns começam a se identificar como genízaros. Os historiadores estimam que os genízaros representavam até um terço da população do Novo México, de 29 mil habitantes, no final do século 18.

"Estamos descobrindo coisas que complicam muito nossa história, exigindo que rejeitemos os mitos que nos foram ensinados", disse Gregorio González, 29, um antropólogo e autodenominado genízaro que escreve sobre o legado da escravidão indígena.

Crédito: Adria Malcolm/The New York Times Homem usa fantasia para o ritual dos Matachines, comum nos países latino-americanos, no Novo México
Homem usa fantasia para o ritual dos Matachines, comum nos países latino-americanos, no Novo México

COLÔNIA

Esse legado nasceu de uma história tortuosa de conquista colonial e assimilação forçada.

O Novo México, que teve o maior número de indígenas sedentários ao norte do México central, surgiu como um domínio cobiçado para os escravagistas quase ao mesmo tempo que os espanhóis começaram a se estabelecer aqui no século 16, segundo Andrés Reséndez, um historiador que detalha esse comércio em seu livro de 2016, "The Other Slavery" [A outra escravidão].

Os colonizadores inicialmente tomaram como escravos os indígenas locais, da etnia pueblo, levando a uma rebelião em 1680 que expulsou temporariamente os espanhóis do Novo México.

O comércio então evoluiu para incluir não apenas traficantes hispânicos, mas guerreiros a cavalo comanches e utes, que atacavam os assentamentos de apaches, kiowas, jumanos, pawnees e outros povos. Eles faziam prisioneiros, muitos deles crianças tiradas de suas casas, e os vendiam em leilões nas praças de aldeias.

A Coroa espanhola tentou proibir a escravidão em suas colônias, mas os traficantes costumavam contornar a proibição registrando seus cativos em documentos paroquiais como criados.

O negócio durou décadas mesmo depois da Guerra Mexicano-Americana (1846-1848), quando os EUA tomaram o controle de grande parte do Sudoeste.

Buscando reforçar a 13ª Emenda constitucional, que aboliu a escravidão em 1865, o Congresso aprovou a Lei de Servidão de 1867, ao saber que ricos moradores do Novo México possuíam centenas ou mesmo milhares de escravos indígenas, principalmente mulheres e crianças navajos.

Mas os estudiosos dizem que a medida, que visava especificamente o Novo México, de pouco serviu a muitos escravos no território.

Crédito: Adria Malcolm/The New York Times Gabriel John Lopez vê o mapa genealógico de sua família, que remonta a Cantillana, na Espanha
Gabriel John Lopez vê o mapa genealógico de sua família, que remonta a Cantillana, na Espanha

ANCESTRALIDADE

Muitas famílias hispânicas do Novo México sabem há muito tempo que tinham ancestralidade indígena, mesmo que algumas pessoas aqui ainda se chamem de "espanholas" para ressaltar seus laços ibéricos e diferenciar-se das 23 tribos do Estado, reconhecidas federalmente, assim como de imigrantes mexicanos e latino-americanos em geral.

Mas os testes genéticos estão oferecendo a visão de uma história mais complexa. O DNA da população hispânica do Novo México está muitas vezes na faixa de 30% a 40% americano nativo, segundo Miguel Tórrez, 42, um tecnólogo pesquisador no Laboratório Nacional Los Alamos e um dos mais importantes genealogistas do Novo México.

Ele e outros pesquisadores cruzam testes de DNA com registros de batismo, certidões de casamento, relatórios do censo, histórias orais, descobertas etno-musicológicas, títulos de propriedade de terra e outros documentos de arquivos.

O próprio exame de Tórrez em suas origens mostra como essas pesquisas podem gerar resultados imprevistos. Ele descobriu um ancestral que era provavelmente da tribo ojibwe, de terras ao redor dos Grandes Lagos, a aproximadamente 1.500 quilômetros de distância, e outro de origem grega entre os primeiros colonizadores que dominaram o Novo México para a Espanha.

"Eu tenho ancestrais navajos, chippewas, gregos e espanhóis", disse Tórrez, que chama a si mesmo de "mestizo". "Não posso dizer que sou indígena, assim como não posso dizer que sou grego, mas é ao mesmo tempo fascinante e perturbador ver como várias culturas se juntaram no Novo México."

As revelações sobre como a escravidão indígena foi uma característica definidora do Novo México colonial podem ser perturbadoras para alguns moradores do Estado, cujas autoridades muitas vezes tentaram perpetuar uma narrativa de coexistência relativamente pacífica entre hispânicos, indígenas e anglos, como geralmente são chamados aqui os brancos não hispânicos.

Apontando sua história, alguns descendentes dos genízaros estão se unindo para declarar que merecem o mesmo reconhecimento que as tribos nativas nos EUA. Um desses grupos no Colorado, o Nações Afiliadas Genízaros, com 200 membros, organiza danças anuais para comemorar seu legado.

"Não se trata da quantidade de sangue ou testes de DNA para nós, já que essas coisas podem ser padrões de medida imprecisos", disse David Atekpatzin Young, 62, o presidente tribal da organização, que atribui sua ancestralidade aos povos apache e pueblo. "Nós sabemos quem somos, e o que queremos é soberania e nossa terra de volta."

Alguns aqui são contra chamar os genízaros de escravos, afirmando que as autoridades do Novo México foram relativamente flexíveis ao absorver os cativos indígenas.

Crédito: Adria Malcolm/The New York Times Igreja em Abiquiú, povoado no Novo México fundado pelos genízaros, onde tentam recuperar herança
Igreja em Abiquiú, povoado no Novo México fundado pelos genízaros, onde tentam recuperar herança

RITUAIS

Em uma importante diferença da escravidão africana em partes das Américas, os genízaros podiam às vezes alcançar a independência econômica e até assimilar-se às classes hispânicas dominantes, adotando o sobrenome de seus senhores e abraçando o catolicismo.

Em Abiquiú, fundada por genízaros no século 18, as pessoas usam pintura facial e penas todo mês de novembro para realizar a "dança dos cativos", sobre as origens indígenas da aldeia —em um dia de homenagem a um santo católico.

"Alguns nativos dizem que os indígenas de Abiquiú são falsos", disse Tórrez, o genealogista. "Mas quem pode dizer que os descendentes dos genízaros, das pessoas que um dia foram escravas, não podem recuperar sua cultura?"

Os esforços de alguns descendentes dos genízaros para ser chamados de indígenas em vez de latinos indicam um debate mais amplo sobre como os americanos nativos são identificados, envolvendo às vezes fatores polêmicos, como a afiliação tribal, o que constitui práticas culturais indígenas e a pele clara de alguns hispânicos de origem indígena. Alguns americanos nativos também se irritam com os ganhos que alguns hispânicos aqui buscaram ao priorizar seus laços ancestrais com os colonos espanhóis.

Apontando a amplidão do comércio escravagista no Sudoeste, alguns historiadores também documentaram como os colonos espanhóis foram capturados e escravizados por traficantes indígenas, e às vezes adotaram a cultura de seus senhores comanches, pueblos ou navajos.

Kim TallBear, uma antropóloga da Universidade de Alberta (Canadá), advertiu contra o uso de testes de DNA somente para determinar a identidade indígena. Ela enfatizou que tais testes podem apontar de modo geral para origem nativa em algum lugar das Américas, em vez de origens tribais específicas.

"Há uma mistura de raça com tribo que é realmente enfurecedora", disse TallBear, que é membro da tribo Sisseton Wahpeton Oyate, da Dakota do Sul, e escreve sobre afiliação tribal e testes genéticos. "Eu não acho que só a ancestralidade seja suficiente para definir alguém como indígena."

A descoberta de ancestrais indígenas escravos pode ser qualquer coisa menos simples, como percebeu Trujillo, o ex-funcionário dos correios.

Primeiro, ele encontrou sua conexão com um homem genízaro na aldeia de Abiquiú. Mergulhando em registros batismais do século 18, ele descobriu que seu ancestral de alguma forma se livrou da servidão forçada e comprou três escravos.

"Fiquei totalmente chocado ao saber que tinha um escravagista e escravos em minha árvore genealógica", disse Trujillo. "Esse nível de complexidade é demais para algumas pessoas, mas faz parte da história de quem eu sou."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.