Emprego e autonomia são desafios para famílias venezuelanas no interior

Bem acolhidos no PR, imigrantes relatam saga por trabalho, vaga em creche e vinda de parentes

A venezuelana Vilse Vergara, 37, grávida de quatro meses, e a filha, Verônica, 4, no sítio da ONG Aldeias Infantis em Goioerê 
A venezuelana Vilse Vergara, 37, grávida de quatro meses, e a filha, Verônica, 4, no sítio da ONG Aldeias Infantis em Goioerê  - Zanone Fraissat/Folhapress
Estelita Hass Carazzai e Marcelo Toledo
Goioerê (PR), Palhoça (SC) e Ribeirão Preto (SP)

Annibel Rodriguez, 5, já sabe cantar parabéns a você. Em português.

A menina venezuelana, que imigrou em abril para o Brasil e passou seis meses com a família em abrigos na fronteira, encontrou um lar em Goioerê (a 523 km de Curitiba), no Paraná, onde comemorou seu aniversário de cinco anos, um dia antes de receber a reportagem da Folha.

O município de 30 mil habitantes integra o esforço de interiorização dos venezuelanos que chegam à fronteira brasileira, em Roraima.

Desde abril, pelo menos 3.300 pessoas já deixaram a região rumo a outros 13 estados do país, num projeto promovido pela ONU e pelo governo federal. O objetivo é reduzir a pressão sobre os serviços públicos de Roraima, onde já houve episódios de violência e xenofobia.

Os venezuelanos ouvidos pela Folha no interior do Paraná e de Santa Catarina afirmam terem sido bem acolhidos, têm poucos ou nenhum relato de discriminação e a maioria conseguiu emprego —parte deles já tem casa alugada e se organiza para trazer mais parentes ao país.

Brayan José, 23, trabalha em uma fábrica de tingimento em Goioerê, no interior do Paraná
Brayan José, 23, trabalha em uma fábrica de tingimento em Goioerê, no interior do Paraná - Zanone Fraissat/Folhapress

Mas a crise prossegue (cerca de 300 pessoas atravessam diariamente), e as cidades que os recebem temem enfrentar um gargalo mais à frente.

“A minha preocupação é com os próximos”, afirma a secretária de Assistência Social de Goioerê, Simone Coelho, que defende o acolhimento, mas diz estar apreensiva e pede uma estratégia nacional. “No momento, estamos conseguindo atender. Mas a gente não sabe se vai parar no 100, no 200. A crise lá [na Venezuela] não vai ser resolvida tão rápido.”

Para ser incluído no programa, o venezuelano precisa ter a documentação regularizada e ter sido vacinado. O deslocamento é feito com recursos do Exército e da Acnur, braço da ONU para refugiados, em parceria com ONGs, igrejas ou empresas locais. Elas oferecem apoio aos imigrantes, como moradia, alimentação e recolocação profissional, por no mínimo três meses.

“Toda vez que eu vejo esse prato de comida, eu penso: ‘Valeu a pena’”, diz a venezuelana Vilse Vergara, 37, diante de uma refeição com arroz, feijão, ovo e frango.

Mãe de dois filhos, à espera de um terceiro, ela e o marido deixaram o país natal no início do ano. Em Goioerê, onde foram acolhidos pela ONG Aldeias Infantis, têm casa e comida até que consigam um emprego e tenham condições para alugar um lar por conta própria.

Feito o acolhimento inicial, uma das principais preocupações é com vagas em creches. Deixar as crianças menores na escola abre a possibilidade para as mães trabalharem, facilitando a autonomia das famílias.

“As mais sacrificadas são as mulheres, porque acabam abrindo mão do emprego para cuidar dos filhos”, diz Sergio Marques, coordenador do programa de interiorização na ONG Aldeias Infantis, que já recebeu 612 pessoas, em oito estados pelo país.

A mãe de Annibel, Alvelys Rodriguez, 25, tem outros dois filhos e ainda não conseguiu um emprego. Levou dois meses para que ela arranjasse creche para a filha mais nova, de um ano —numa instituição beneficente, e não pública, onde ainda há filas para conseguir uma vaga. Segundo Marques, para os venezuelanos, “encontrar creche é mais difícil que emprego”.

Em Goioerê, a maior parte dos imigrantes já está empregada —em padarias, supermercados, indústrias de tecelagem e cooperativas agrícolas. O objetivo é que, assim que ganharem familiaridade com a língua e puderem revalidar diplomas, eles passem a trabalhar em suas áreas.

Dono de um supermercado, o empresário Wiliam Biondi Okumura, se identificou com a situação dos venezuelanos porque, anos atrás, também foi imigrante no Japão.

“Assim como eles, eu também fui buscar uma melhoria de vida. Só que não fui forçado a sair. Aquilo me comoveu.” O mercado empregou três venezuelanos.

A imigrante Ruth Salaverria, 31, então grávida de nove meses
A imigrante Ruth Salaverria, 31, então grávida de nove meses - Zanone Fraissat/Folhapress

Apesar da receptividade, parte da população do município reclamou quando soube da notícia. “Tem muito zunzum na cidade, de que eles tiram emprego dos brasileiros, furam fila”, diz Luiz Medeiros Carvalho, coordenador do projeto em Goioerê. “Não tem privilégio. Eles estão correndo atrás, e têm direitos como todo brasileiro.”

Nas redes sociais, houve quem criticasse “ter que dividir emprego, saúde e recursos básicos com uma população que só acordou para reagir quando era tarde”. “Isso tem um nome: comunismo”, disse um morador.

O prefeito de Goioerê, Pedro Coelho (PPS), foi às rádios pedir o acolhimento, e fez o mesmo em reunião com os secretários municipais. Com o apoio de igrejas e grupos beneficentes, conseguiu reverter a opinião pública.

Em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, a prefeitura diz ainda sentir os reflexos da entrada em massa de estrangeiros e, por isso, pediu intervenção federal. Os abrigos não são suficientes para dar conta da demanda, e há queixas de aumento da criminalidade.

Segundo o município, há de 80 a 100 venezuelanos que ainda buscam trabalho, morando nas ruas da cidade, e não há recursos para auxiliá-los.

“Lá tem muito venezuelano, demasiado”, diz a imigrante Ruth Salaverria, 31, que hoje vive em Goioerê com o marido. Suas lembranças da fronteira não são boas. Diz ter sido discriminada nas ruas, e não conseguia atendimento nos postos de saúde.

Grávida, ela chegou a Goioerê com quase nove meses de gestação. Mas não fizera uma ecografia, nem sabia o sexo do nenê —uma menina, de nome Antonella, nascida dez dias depois que a reportagem da Folha a visitou.

O próximo desafio é lidar com a demanda espontânea: adaptadas, as famílias começaram a trazer parentes. Na casa de Alvelys, o cunhado e seus filhos chegaram no início do mês. Ela ainda quer trazer a mãe, que continua na Venezuela.

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