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Viés antirrusso contamina obra hercúlea sobre fome na Ucrânia

Tragédia ocorrida em 1932-33 foi resultado de política da ditadura de Stálin

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A Fome Vermelha - A Guerra de Stálin na Ucrânia

  • Preço R$ 97,90
  • Autor Anne Applebaum
  • Editora Ed. Record

Se vivemos numa época em que fatos que ocorrem ante câmeras se tornam vítimas das chamadas guerras de narrativas, imagine tentar relatar um assunto que causa polêmica há quase 90 anos?

É o que se propôs a jornalista e historiadora Anne Applebaum em seu mais recente livro, “Fome Vermelha - A Guerra de Stálin na Ucrânia”, publicado em 2017 e que agora chega ao Brasil.

Como em outras obras da americana especializada no espaço ex-soviético, como “Cortina de Ferro”, o melhor e o pior desse tipo de empreitada se apresentam.

Aqui, Applebaum reconta a história do Holodomor, a grande fome que matou 3,9 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933. A autora parte de uma minuciosa coleção de documentos e depoimentos de sobreviventes a comissões dedicadas ao tema desde que o país separou-se da União Soviética, em 1991.

É um vespeiro. Ainda que não existam negacionistas do fato em si, há divergências entre historiadores e políticos acerca do que levou à tragédia. Não para Applebaum.

Além do subtítulo do livro, seu lado está posto na etimologia que apresenta para Holodomor, como notou o historiador americano Mark Tauger.

Ucranianos acendem velas em memória das vítimas do Holodomor em cerimônia em Kiev
Ucranianos acendem velas em memória das vítimas do Holodomor em cerimônia em Kiev - Sergei Supinsky - 23.nov.13/AFP

Para ela, uma combinação de “holod” (fome) e “mor”, que seria “extermínio”, enquanto a tradução do ucraniano seja “praga” e o termo signifique “morte pela fome”.

Casada com um importante político polonês, Applebaum é uma conhecida intelectual contrária ao governo de Vladimir Putin na Rússia.

Historiadores, mais ou menos famosos, fizeram resenhas duras acerca das falhas e contradições do texto, a maioria inquestionável.

Isso não tira o brilho sombrio da descrição que faz de como atos políticos da ditadura de Josef Stálin (1878-1953) emaciaram uma nação.

Há pouco a discutir sobre o resultado do ocorrido. O debate acadêmico é mais sobre a extensão do dolo da liderança soviética. A coletivização das fazendas e a perseguição aos kulaks, camponeses mais abastados, tomou a Ucrânia na década de 1920. O objetivo era aumentar a produção de grãos.

Houve resistências, e a paranoia stalinista de que o celeiro do império socialista era um ninho de espiões poloneses e agitadores czaristas levou a medidas drásticas.

Com o recolhimento de grãos da população, a fome veio avassaladora.

A questão é que Applebaum insere isso numa espécie de grande plano da Rússia para exterminar o povo e a vontade nacional dos ucranianos, criando uma linha do tempo que vai de perseguições do czar Alexandre 2º no século 19 à atualíssima crise entre Moscou e Kiev.

Essa é a linha prevalente na elite ucraniana, para quem o Holodomor tem papel análogo ao que o Holocausto tem para Israel na formação da identidade nacional.

Na mão contrária, por óbvio, o establishment russo da era Putin nega a ideia de que o Kremlin possa ter arquitetado de propósito uma tragédia humana e econômica.

Sem prejuízo ao relato do crime stalinista e à memória das vítimas, mesmo dados no livro insinuam nuances e há lacunas importantes. Se Stálin e seus asseclas tinham claros preconceitos contra a república, também os tinham contra outras regiões soviéticas atingidas, como o Cazaquistão.

Mesmo o central elemento político, presente no pioneiro clássico “Colheita de Amargura” (1986), de Robert Conquest, é visto como lateral na maioria dos estudos sobre a industrialização soviética.

Há incômodos pontuais também. Applebaum diz não ser aplicável ao Holodomor, segundo a lei internacional, a acepção de genocídio, só para depois ressaltar que soviéticos participaram da confecção do entendimento.

A confusão fez com que a autora divulgasse uma nota para refutar a resenha feita pela grande historiadora australiana Sheila Fitzpatrick (“A Revolução Russa”), que no jornal britânico The Guardian disse que Applebaum não comprava a visão ucraniana pelo valor de face.

A Ucrânia é um dos temas mais contenciosos nas relações entre a Rússia e o Ocidente porque é, antes de tudo, uma obsessão do Kremlin desde os Románov. Além de muito fértil e da origem cultural comum, é um espaço geopolítico a separar forças europeias do território russo.

Ao fim, o trabalho hercúleo de Applebaum tem bom ritmo e resume obras anteriores para o leitor menos próximo do tema, mas as implicações da bússola política que o guia são amplas demais para serem ignoradas como mero detalhe.

Se lido com esse alerta, o livro traz à luz com detalhes o relato pungente de uma das grandes tragédias do século passado. 

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